a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/08/2015

A cada baixada, não download, baixada (ou então que título se dá a isto?)

Hoje à tarde visitou-me uma vontade súbita de cozinhar à qual obedeci. Sopa de agrião que é a minha preferida de todas e uma lasanha de atum a pedido (eu antes queria ervilhas com ovos), e depois fui buscar um frasco de quatrocentos gramas de grão de bico cozido. Escorri o líquido conservador de propriedades de grão de bico cozido e deitei as bolinhas amarelo desmaiado sem as contar para dentro de uma taça (de que cor é a taça?). Com uma ferramenta de esmagar batatas e movimentos de cima para baixo, lentos, a arte de cozinhar ainda não se revelou para mim, mas sei que não quer nada com pressas e eu lembro-me disto à medida que baixo a ferramenta de esmagar batatas e pressiono os grãos, com jeitinho, ao mesmo tempo apercebo-me de que a oportunidade de os contar, a cada baixada, não download, baixada, esvai-se definitivamente, processo irreversível no qual nasce mais um pedaço de entropia, os grãos se esfumando ante os meus olhos castanhos de encantos tamanhos, ai não é, as cascas soltam-se dos interiores macios que se ligam entre eles com boa vontade, tanta que a transmitem à taça feita há muitos anos de um plástico amarelo gema de ovo (é esta a cor), ou seja, íamos na quarta ou quinta esmagadela de grãos agora continuamente desmaiados no seu amarelo único quando ao levantar de novo a ferramenta vem tudo atrás, é a união a fazer a força que vence a gravidade e eu já se sabe gosto disto, a ferramenta há-de ter um nome que não faz falta conhecer para que ela dê serventia enterrando-se docemente na massa de grãos com cascas à solta, também gosto de coisas à solta, mas ela soltar-se nada, é um daqui não saio daqui ninguém me tira, vem tudo acima agarrado à ferramenta já se sabe de quê, grãos em massa una e taça a dar-lhes colo côncavo, de forma que lhe deito outra mão a segurar os ânimos, separar os materiais, mas o que vem a ser isto. 

Sem saber ainda que aquilo ia dar o maior parágrafo da minha vida, juntamos-lhe cinco colheres de sopa de flocos de aveia dos meus, que parecem incontáveis pedacinhos de papel de impressora de oitenta gramas por metro quadrado, ter deixado o blogue encher-se de pó dá nisto (ou foi o carro?), uma avalanche de ideias soltas que se atropelam, xô, portanto cinco colheres de sopa de aveia em flocos, vamos pôr uma colher de café de gengibre, filha, toma, substitui-se essa coisa que está na receita que eu não faço ideia o que é (não disse? a arte de cozinhar etc), e depois a abóbora. 

Que não me seduz por aí além, mas a receita diz que sim, abóbora esmagada (claro), depois de cozida, junta-se ao preparado dos parágrafos precedentes. De qualquer forma estamos quase no fim, que só faltam as ervas que diz que são ervas verdes. Juro, ervas verdes, não estou a inventar, aliás eu invento muito menos do que parece. Reuni a comissão de opiniões e decidimos que ia ser salsa em pó e umas folhas de caril de um verde acastanhado (paciência) e também, naturalmente, esmagadas.

Agora frigorífico com a taça amarela gema de ovo e seu conteúdo para que durante a noite façam o que tiverem a fazer e amanhã hambúrgueres disto para o jantar, é uma receita vegetariana pois é.

Depois conto como foi. Os grãos não, esses não me lembrei de os contar.

(nota muito póstuma: para quem leu, dois posts atrás, a palavra "fluida" sem acento no i e fez "tss tss esta mulher não sabe escrever", queria informar que é propositado, eu cá detesto aquele acento no i e no meu blogue mando eu, mas como o Xilre inventou de escrever fluídos - por acaso acho que ele me anda a imitar - eu tive a boa ideia de fazer a nota muito póstuma)

26/08/2015

Bastante sexy

Ainda não regressou toda a gente de férias e a cantina arrancou a meio vapor. Meio porque o número de pratos dentre os quais podemos escolher o almoço são dois, ou carne ou peixe, e normalmente são quatro.

- Boa tarde, menina, o que é que vai comer? - a voz da dona Esmeralda hoje está rouca, ontem não. 
-  Peixe, dona Esmeralda. E que voz é essa? 
Oh! Que voz é esta, é a minha, não tenho outra! – encolhe os ombros resignada e começa a servir-me o prato. 
Dona Esmeralda, muitas pessoas dizem que isso é sexy, sabia? Aliás praticamente toda a gente diz. Voz rouca é sexy. 
- Sexy?! 
- Sim, sexy. Mas eu não acho nada sexy uma voz rouca, não sei de onde vem essa ideia, portanto não vou dizer que está sexy, dona Esmeralda, se não se importa – ela ajeita agora os óculos e uma mecha de cabelo que devolve ao interior da touca, faz isto com uma mão e na outra segura o prato que me estende com a posta de salmão grelhada, as batatas e os legumes, enquanto me pergunta com um gesto se quero rodela de limão ou de laranja em cima do peixe. 
Limão, se faz favor. 
Pode ser as duas, se quiser. 
Não, só quero limão, obrigada... foi um bagacito ontem à noite, não foi? Depois de as suas netas e filhas estarem a dormir, dona Esmeralda? Diga lá, diga lá... foi?
- Aixa?!.... – todos conhecemos bem o aixa?! da dona Esmeralda, tem uma musicalidade específica, muito bem entoada, tão boa de se ouvir que eu faço o que posso para o extrair, aixa?!, mesmo com a voz de hoje, rouca, saiu muito bem. 
Sei lá, podia soltar-se, assim, à noite, com toda a gente a dormir, ia de mansinho, tomava um bagacito ou dois e depois ficava rouca. 

Ela suspira, abana a cabeça, diz ai menina Susana e pergunta-me se quero mais batatas, mais alguma coisa, como quem diz tenho mais que fazer. 

Não, obrigada, dona Esmeralda, estou gorda. 
Pois está está, era para lhe ter dito ontem... já reparei...

Portanto fiz mal. Devia ter declarado que sua a voz rouca é bastante sexy.

Pelo sim pelo não, deixei ficar as batatas no prato. Bolas.

25/08/2015

Imensa poesia fluida

A estação de comboios de São Bento põe-se a jeito para muitas oculares de registo fotográfico de todos os tipos; desperta um passado comum que nos abraça como se faz aos filhos e acaricia-nos, até, um ou outro sonho representado num dos painéis de azulejos que contam histórias só nossas. Foi este o aperitivo para um dia de cruzeiro no Douro. Apanhámos aqui o comboio com destino à Régua, percurso que inclui uma parte a prometer ser linda: a composição desliza como se quisesse desenhar a margem do rio. Ora qualquer pessoa com isto se anima, sem esforço, da expectativa de ver o Douro de comboio antes de o ver por dentro, no seu curso líquido, quando lhe escorrermos na superfície da artéria, mais tarde. Vê-se bem que promete, a viagem de comboio promete. Mesmo que o joão pestana não apanhe a mesma carruagem ou, apanhando, não se sente ao nosso colo e a gente se mantenha de olho bem aberto, não nos deixam descortinar a paisagem nem constatar-lhe o selo de beleza, a promessa ficamos sem saber se é cumprida. Esta viagem de comboio pela margem do Douro recomendo-a apenas, embora vivamente, às pessoas que gostarem muito de observar durante duas horas todos os detalhes da parte do graffiti que cobre a sua janela, visto do seu avesso. Há-os de todas as cores, os graffiti, é uma questão de escolher o lugar junto à tonalidade que mais lhe agradar. O meu é preto como mostra a figura e agora podemos inclinar a cabeça e dizer em coro, enternecidos, oh tão fofinho ou oh que lindo, se tivermos vontade. Não é o meu caso, que antes queria ter apreciado a paisagem lá fora a espraiar-se sob a luminosidade da manhã fresca de verão, de forma que saí do comboio duas horas mais velha, atordoada, irritada e triste. O Douro terá feito algum mal à CP, pergunto-me, a CP não gosta do Douro, respondo-me, gosta é, e está visto que muito, de graffiti nos seus comboios deste abençoado troço, ou será das janelas, não gosta de janelas com a função a que se destinam as janelas, por isso circula assim, com elas tapadas de muitas cores, vestiram-se os comboios para uma festa, outra, que não esta.


Mas ainda há o barco, o cruzeiro, o Douro por dentro. A partir do apeadeiro da Régua, caminhamos em manada atrás da menina que empunha alto mas não muito a bandeira do operador turístico, não nos dispersemos, que somos várias manadas de vários operadores turísticos, todos devolvidos pelo mesmo comboio, e todos por ali abaixo assaltados por pilhas de chapéus a cinco euros, brandidos nas mãos de vendedores atacantes, a cada cinco passos cinco euros, chapéus a cinco euros, mas bem, vamos em direcção às maravilhas do nosso Douro tão lindo, desviamo-nos dos chapéus sem com eles colidir, isso conseguimos, o Douro a vislumbrar-se lá em baixo, até que enfim, e o nosso é o último barco do cais.

Dentro, as mesas dispõem-se muito juntas, conto sete mesas vezes sete lugares dá quarenta e nove passageiros, minha senhora dá licença, chego a minha cadeira à frente para a senhora de trás se sentar, costas com costas comigo, e ela nem é gorda, isto é apertado sorrimos de lado uma à outra, desculpe, se faz favor, olhe a sua mala, caiu, obrigada.

Neste momento ocorre-me que o cruzeiro tem a duração de seis horas e noto que deste lugar mal vejo o rio lá fora, felizmente as janelas do barco são das boas, estão nuas, mesmo assim tive um impulso de fugir, em vez disso sorri e tentei meter conversa com os cinco desconhecidos da nossa mesa (o melhor do mundo são as pessoas, lembrei-me).

É com o barco já em andamento e o primeiro porto meio bebido, um porto branco, que nos é servido o próximo entretenimento. Que é isto, parecem obras, mas ai não, não são obras, é uma espécie de música, intensa barulheira distorcida que jorra dos altifalantes dispostos em todos os cantos dentro e fora do barco (dez minutos depois, quando consigo desenfiar-me do meu lugar fazendo levantar oito pessoas de duas mesas para eu poder passar, fui verificar que fora também, no deck também há altifalantes), música terrível, aos berros para superar o ruído do motor do barco, tzztum tzztum a bundjinha, há música brasileira tão boa e eles nisto, seis horas assim não, tzztum tzztum a bundjinha, o resto não percebo, mas estás aqui é para ver o rio, olha para o rio, já olhaste, já olhei, é tão lindo, pois é.

Antes mesmo de o almoço ser servido, já me tinham assaltado pensamentos encorajadores do tipo tu sabes nadar e a água não está fria, a margem é já ali, pensamentos de querer ir ver o rio mais de dentro, sentir-lhe o pulsar do sangue, misturar-me com ele, fazer ali imensa poesia fluida, mas antes de me deixar encorajar tanto, tentámos trilhar o caminho mais fácil: implorámos em três rondas de ataque (Erik e eu) para desligarem a música. À terceira desligaram, respirei de alívio, agradeci do coração, e depois olhei em volta: ninguém pareceu importar-se, nem mesmo os brasileiros presentes (havia também espanhóis, ingleses, holandeses, canadianos e portugueses mas poucos).


A duas horas e meia do fim do passeio, já depois de termos descido trinta e cinco metros na eclusa que já foi a maior da Europa (impressionante esta eclusa, também tem foto onde se vê um barco muito maior, que se meteu lá dentro connosco), o motor do nosso barco calou-se. Começámos a deslizar na água de uma forma que se designa normalmente por à deriva, embatemos num objecto verde que sinaliza a zona navegável e os rapazes da tripulação a correr ao deck e a esbracejar para um barquito de borracha que ia a passar, pode levar-nos até à margem? o motor do barco avariou. O barquito de borracha tentou, sem sucesso, a potência não chegou para tanto, e foi a lancha que passou veloz (os rapazes a esbracejar outra vez), que nos arrastou para atracar num local apropriado onde ficámos à espera, durante uma hora, do autocarro que nos levou de regresso ao Porto. E, como não há duas sem três, também mostro o barco protagonista da aventura, no qual nesta última hora de espera, atracado, se ouviu então música portuguesa do tipo pimba, tira o carro e toma lá o bacalhau, essas coisas, que não é tão má como a outra, porque não tem o tzztum tzztum.


(Douro, querido rio, voltaremos para te visitar. Sem comboios sujos, sem barcos barulhentos, sem lixo. Assim havemos de conseguir ver-te. A ti.)

PS: No dia seguinte, escrevi à CP - Comboios de Portugal a manifestar a minha indignação pelo estado dos comboios, todos os que vi no Douro estavam assim. Já passaram duas semanas e ainda não obtive resposta.

22/08/2015

Uma sopa de verão

(actualização do post a 24-08-2015)

Depois do comentário da Cuca ali em baixo, não descansei enquanto não confirmei a minha afirmação sobre as vespas deste post serem "do tamanho de um dedo dos meus". Três dias depois encontrei caídos na lareira dois cadáveres, apanhei-os e tirei a fotografia colocando a jeito precisamente um dedo dos meus. 


A vespa cabra, dizia hoje o técnico quando lhe pedi confirmação, também pode ser vespa cabro, mas eu penso que é à vespa crabro que ele se refere. De qualquer forma, agora que olhamos todos de perto, embora seja bem constituída ela não me chega ao dedo mindinho. Para a próxima faço ao contrário, tiro as medidas primeiro.

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Conheci-as hoje pelo técnico especializado que teve de vir a correr de lá donde estava para as ver, dizer o que é, salvar a gente. Elas fizeram ninho na chaminé da lareira, que está de férias desde abril e agora deixou de fumar e isso, em lareiras, não é bom (confirmação feita com três pinhas secas e um pequeno toro, o fumo tossiu-o todo para dentro da sala). Mantêm um zumbido permanente que se confundiu provisoriamente com o vento a soprar na chaminé, o que é isto, é o vento; mas não, não é o vento são elas. Têm o tamanho de um dedo dos meus, uma houve que me visitou à hora matinal de passar a ferro, eu a toalha grande para o almoço, eu a despachar-me, eu a janela aberta, eu cheia de calor, ela a entrar, a zumbir, eu a fugir muito depressa, o técnico especializado ao telefone, minha senhora dê-me meia hora, eu dei-lhe um bocadinho mais. E depois, na rua, a olharmos todos para cima, para a saída da chaminé que já não fuma, é uma força aérea que ali está, é um dentro e fora, um dentro e fora.

- Ah, estou a vê-las, estou. Sabe o que é isto? (não, mas quero imenso saber) Isto são vespas cabras, minha senhora.

Vespas cabras.

- E olhe que elas trabalham depressa, o favo pode atingir um metro ali dentro em poucos dias... está cá segunda feira?

Não vamos tão depressa que ainda ontem foi quinta e eu tomei nota para escrever o post do melão que veio do supermercado inteiro, que entalei entre dois sacos de compras pesados à brava, quando arrumei tudo no porta-bagagens, mas que se soltou na primeira curva da serra, o melão, e depois veio a rebolar nas outras todas até cá acima, capum à esquerda e depois capum à direita, o melão rebola com as forças aplicadas pelas curvas, é o costume.

- A natureza devia ter feito carros dentro dos quais os melões não rebolem - aquilo ia a enervar-me e eu nem sempre digo coisas fabulosas nas curvas da serra.

- Mãe, a natureza não fez os carros, só nos fez a nós.... e nós é que fizemos os carros.

Ou seja, não fora as vespas terem-se metido no caminho do fumo, as vespas cabras, e na segunda feira eu era no trabalho que havia de estar, a encetar um novo ciclo de café logo pela manhã. Para além disso o post do melão teria saído completo, desenvolvido, com os pêssegos a fazer o papel principal, em vez de entrarem só agora, coitadinhos, foram atropelados pelo melão umas vinte vezes, é contar as curvas até aqui acima e sabemos quantas foram, e ver, à chegada, o lindo serviço que ali ficou, uma salada de frutas que mais pareceu, pareceu não, era mesmo, que nervos, precisamente aquilo que este post está, as vespas cabras, a chaminé que já não fuma, a segunda feira, os pêssegos atropelados pelo melão: uma sopa de verão.

19/08/2015

Conversas como as amoras

Se as conversas forem como as cerejas, não vejo razão para não começar por dizer que um dos oito geradores eólicos que se vêem no alto do monte, para lá do vale, está em reparação: as pás foram-lhe retiradas. E que os outros sete, esta manhã, não se movem. A massa de ar que se encaixa na forma do grande vale que se interpõe ensaia uma opacidade quente, branca, muito estática. Estranho, contudo, a indiferença das pás giratórias à propagação das incolores ondas sonoras que se estendem em força, provenientes da maquinaria pesada dos madeireiros que andam perto: a mim trabalham-me tanto os tímpanos que nem sei se me aguento muito tempo aqui.

Mas creio que o simples facto de eu continuar a ler livros (e revistas, caramba, revistas!) impressos em papel numa época em que podia poupar árvores e fazê-lo num dispositivo electrónico, tira-me o direito de protestar contra o barulho detestável destes motores que cortam eucaliptos até à hora do almoço e depois continuam, e me fazem querer tanto inventar um engenho cujas rotações emitam ondas que já não sejam sonoras e portanto se instalem agradavelmente num espectro não audível. Se eu fosse rica mesmo rica, ah!, havia de inventar uma forma (eu merecia ser mesmo rica); mas não sou e há sempre ou roupa para tratar ou loiça para lavar, tarefas assim.

Mas se fosse como as cerejas, podia a conversa continuar para o facto de ontem termos sido tantos a comer cá em casa, que de certeza lavei a loiça toda de que disponho e no caso dos garfos, das facas e de alguns copos, bisei. O melão tivemos sorte era bom e o vinho da região, que ganhou prémios e tudo (um orgulho), foi muito apreciado de forma que incentivou sestas em quase todos os homens presentes, em nós não.

Nós fomos às amoras com os miúdos e toda a gente se picou menos eu. 

Rodrigo toma estas, vai pôr no saco – pus três amoras pretas e gordas nas minúsculas mãos que consegui ensinar a fazer uma concha, uma concha em duas metades ligeiramente desligadas, mas uma das três foi engolida de imediato - então, amor? Essas são para o saco! 

- É xó uma, tia! – a indignação estampada no pequeno rosto faz-me morder o lábio para não rir, este miúdo parece querer sorver a vida inteira a cada segundo, tanto que em toda a pequena remessa que eu lhe entrego para ir pôr no saco – pequena para lhe caber nas mãos - é sempre xó uma, tia!

E uma a uma comeu o petiz uma valente barrigada de amoras, as mãos e a boca a delatar o sucedido, de tal forma que às tantas foi tia quero lavar as mãos e é enquanto me mostra o estado das palmas bem viradas para mim que anuncia isto; ali na fonte, querido, vamos lá e depois

- Podemos lavar aqui as mãos mas não podemos beber, ouviste?


Começámos a conversa a caminho das cerejas e acabámos nas amoras. É de ser verão e estar calor, de andarem a cortar árvores, de haver mais gafanhotos hoje que quando chove, de eu não ter jeito nenhum para isto mas precisar muito de escrever coisas à solta ou então de a jovem cerejeira do pomar ainda não ter dado conversas a ninguém.

(apesar de não parecer, eu gosto de lavar a loiça e ainda mais de ter a casa cheia de gente para abraçar e dar de comer e partilhar histórias e miudagem pequena para ver crescer; aliás o travão implícito na falta de tempo para inventar motores silenciosos também evita que eu me sente no terraço a escrever a história de ficção científica que vive na minha cabeça desde que li Carl Sagan, há duas décadas e meia; um alívio para todos e uma poupança de recursos naturais que compensa um pedaço esta coisa de eu continuar a ler em papel, acho eu)

16/08/2015

O que vês do teu terraço, Susana?

Enquanto apanhei todas as pêras podres do chão, vários gafanhotos não maiores que o meu dedo mindinho saltaram daqui para ali como se soubessem precisamente onde iam e até com vontade de cooperar: olha aqui outra, aqui! Não lhes acho graça nem nunca achei, uma vez que costumam ter o poder de me fazer soltar um grito involuntário, situação indesejável para a minha imagem que deve ser mantida livre de gritos involuntários, como é evidente. Mas hoje nenhum se ouviu a bater as encostas desta serra por aí fora que nem louco (o grito).

Nos últimos tempos tenho registado frequentes encontros com baratas castanhas bastante velozes que possivelmente me conferiram uma outra perspectiva do reino animal na sua intersecção com o mundo das pessoas em contexto de trabalho: sabe muito bem encontrar uma coisa daquelas em certas pausas na laboração árdua que nem sempre nos aconchega os melhores sonhos tidos em décadas passadas, mistério que não se desvendará nem aqui nem agora.

Apanhei portanto as pêras em diferentes estados de decomposição, a natureza não amadurece a fruta toda de uma vez, faz parte da sua suprema sabedoria que poderá ler-se como uma versão muda de "quem está está quem não está estivesse". Posso dizer que nada me impediu de encher dois sacos, devem ter sido umas duzentas, imensas que eram, e ainda que fiquei bastante satisfeita porque quase todas estavam parcialmente aproveitadas por esse reino animal, não aquele do parágrafo anterior, outro, desta feita intersectado por mim confiante nas botas de borracha, não vá um gafanhoto apressado enganar-se no caminho ou haver ainda pequenas cobras ou outras coisas assim giras para se fazer colecção. 

(ando há séculos para conseguir escrever um post em que meta mesmo a calhar e com muito jeito a expressão "tenho uma cobra nas botas" e agora estive tão perto)

Quando subo as escadas de pedra de regresso ao terraço, eu e as pêras podres ensacadas, apercebo-me de que a pequena janela da casa de banho escapou à operação de lavagem de janelas e portas realizada ontem nesta morada por estes braços vigorosos que ora escrevem. Mas primeiro tirei as botas e sentei-me a escrever isto antes que comece a chover outra vez.


(não me parecendo adequado ilustrar com as pêras podres ensacadas, faço-o respondendo à pergunta que se fez título deste post muito estival)

13/08/2015

Café Ernestina

Preciso de voltar ao café Ernestina. Das poucas vezes em que lá estive trouxe, no coração, mais do que seja o que for que lá deixei, não sei como isso foi mas quero saber. 

Subo, a pé, a rua ensolarada. Apesar de a tarde já ir a mais de meio, está calor e os meus sapatos enchem-se do pó da berma da estrada, perdem a cor enquanto o cão acorrentado que me ladra de um dos quintais, vai ficando para trás. Encostadas à parede branca da fachada da casa onde se instala o café Ernestina, estão quatro cadeiras de plástico que já não são vermelhas há muito tempo nem estão completamente inteiras.

Mas eu preciso de voltar aqui e, para que se não note a minha precisão, levo um bolo e uma embalagem de chá que promete conciliar o sono, como se fosse alguém daqui a precisar de mim e não o contrário; bato os pés nos restos do capacho da entrada, boa tarde, e depois levo um ou dois segundos a adaptar a vista à penumbra interior. 

Uma ventoinha faz girar o ar a partir do topo do frigorífico das bebidas, que está praticamente vazio. Duas ou três moscas voam em círculos em frente à porta e dentro estão apenas duas pessoas sentadas lado a lado em cadeiras de madeira encostadas à parede. Não falam, cada uma vive dentro de um vazio próprio, adivinho, pertencem a mundos que não se intersectam. O silêncio é roucamente cortado pela ventoinha, acompanhada do ladrar do cão acorrentado, que ainda se faz ouvir. O café Ernestina tem apenas duas mesas ao fundo, estão ambas desertas e são diferentes uma da outra.

- Olá minha querida! - é assim que dona Ernestina me acolhe no seu café - ao dizer isto tenta levantar-se, mas a perna doente não permite, eu também não, deixe-se estar, e sento-me na cadeira vazia ao seu lado. Mesmo assim, os seus braços abertos fecham-se em redor de mim e eu dou-lhe dois beijinhos. Acho o sorriso dela tão bonito!, abre-se num mar de rugas que enche de luz.

- Então essa perna, como vai?

- Vai mal, filha. Tem noites que não durmo de tantas que são as dores. Mas a médica do centro tem cá vindo, ela é muito querida! Como sabe que eu não posso deslocar-me lá abaixo à vila, vem ela...- e ergue a perna entrapada que lhe valida a declaração.

Sentado do outro lado de dona Ernestina está um homem de cabelo castanho, é ainda jovem. Usa um boné que está mesmo torto e não foi rodado para acompanhar tendências da moda. Tem a cabeça inclinada para a frente e parece não dar por nós. Segura numa das mãos uma garrafa de plástico de litro e meio de Coca-Cola, cheia, e não se mexe.

Dona Ernestina fala-me de novo no filho, que está morto. Chora. As lágrimas escorrem-lhe e eu acho-a mesmo bonita com os cabelos fortes e brancos, ondulados, um mapa de rugas que contam histórias tão duras que não sei interpretar, mas os olhos têm luz quando fala daquele filho, era ele e eu, éramos tudo um para o outro. O meu Armando e o mais velho não, mas aquele, ai aquele, o meu menino. 

Era o filho mais novo, morreu aos quarenta anos ao mergulhar numa piscina, congestão, diz ela. 

- Foi há quatro anos mas eu não me conformo, ai o meu menino, era ele e eu.

Oiço-a, já lhe conheço a história, mas oiço. É a única coisa que lá posso deixar no café: os meus ouvidos, durante o tempo que dura a minha visita.

De repente o homem acorda do seu torpor e põe-se em pé devagar. Afasta as pernas e ajeita o boné, consegue equilibrar-se. Depois inicia o caminho de regresso a que lugar? e sai do café, sem dizer palavra nem olhar para nós. Leva na mão a garrafa de Coca-Cola, cheia, e vai pela estrada fora aos ziguezagues, com paragens a cada passo para retomar o equilíbrio.

- Já chegou aqui assim, filha. Não foi cá que bebeu - explicou-se dona Ernestina sem eu perguntar nada. 

- Mas agora leva Coca-Cola... ainda bem que ...

- Aquilo é vinho, filha, enchi-lhe eu a garrafa... mas que hei-de fazer? Ele cá não bebeu, isso não...

Ficámos ambas a vê-lo desaparecer aos esses na curva da estrada onde, neste tempo todo, não passou nenhum carro, ninguém. 

- Trouxe-lhe isto, dona Ernestina - satisfeita por mudar de assunto, abro o saco e retiro o bolo e o chá. Este chá parece que ajuda o sono, diz aqui - aponto a embalagem - está a ver?

Os braços dela voltam a rodear-me, para que se esteve a incomodar, não era preciso isso, gosto tanto desses bolos, com o café vai muito bem uma fatiinha, ou duas, muito obrigada, minha filha, que Deus a abençoe.


Deus já me abençoou, dona Ernestina, abençoa-me todos os dias. Mas será que Ele nos abençoa a todos?

10/08/2015

Configuração de palhinhas com olhos

Cheguei atrasada à aula de dança, e a professora ficou admirada de me ver: também jogas? Jogo, sim, confirmo enquanto me descalço e corro a posicionar-me no lugar que devo ocupar no campo. Os restantes membros da minha equipa são homens e todos os da equipa adversária também. Acordo precisamente neste momento em que ia começar o jogo na aula de dança e portanto ficamos sem saber que jogo era aquele e para onde tinham ido as minhas colegas, que costumam ser todas mulheres. Estico o braço e pego no relógio da mesa de cabeceira que também é termómetro e higrómetro e barómetro e vejo que a pressão está mais elevada que o costume aqui nas alturas da serra, a humidade relativa nos vinte e nove por cento, são sete horas e vinte e cinco graus já se instalaram, com vontade de subir (este aparelho tem setinhas que indicam as tendências, gosto muito). Levanto-me e vou à janela. O vale que se estende à minha frente ainda está imerso no fumo que sobrou do incêndio de ontem (felizmente não chegou às casas), não se vê nada para além do cabo telefónico que faz ponto no poste de madeira a alguns metros daqui. 

Mas não fosse o que aconteceu ao pequeno almoço e que ainda não parou de acontecer, nem a esta hora em que o vento todo o fumo levou e se vêem as primeiras andorinhas da tarde no céu (para posts de sucesso, inclui-se um passarinho ou dois, fica muito bem), não fosse por conseguinte o que aconteceu e eu hoje não escrevia nada, nem hoje nem amanhã. 

O que é aquilo, uma configuração de palhinhas ou um bicho? 

Aquilo o quê? - olhei na direcção indicada e não vi nada para além de uma configuração de palhinhas que não podia ser outra coisa senão uma configuração de palhinhas.

- Aquilo! - Erik levantou-se e apontou. 

Ainda não parou de acontecer porque já são as horas que são e a configuração de palhinhas com olhos mexeu-se dois centímetros para a esquerda em dez horas bem contadas. Uma vez que não salta (graças a deus), nem voa, que asas não lhe vejo em lado nenhum, deduzo que tenha saído da planta mais próxima, a uns seis metros de distância, em novembro de dois mil e dez. Coitadinho.



Chama-se, em português, esta maravilha da natureza, um bicho-pau ou se preferirmos um insecto-pau. Pessoalmente acho configuração de palhinhas com olhos muito mais giro e é na segunda foto que se vêem melhor os olhos, vêem?

(Teresa, destes não tens tu aí, pois não?)

06/08/2015

Post para corações grandes e mentes não muito sedentas de literatura (estou receosa)

Nos blogues não contamos tudo, que tudo é muito. Contamos o quê então? Ah deixa lá ver, vai isto, que leva embrulhado uma ou duas das minhas mestrias, de preferência com uma corzinha mais puxada, um brilhozinho, uma pitada de sal, um molhozito de coentros se estivermos no Alentejo, se não estivermos pode ser outra coisa qualquer que cheire bem, mas eu lembrei-me foi do Alentejo, e ainda com uma generosa lente de aumento, é assim que nos blogues contamos. Caindo que nem uma luva no meu caso, admito que tenho vindo a construir uma imagem verdadeiramente beneficiada da minha pessoa, agora que olho para a edificação que resultou neste blogue, já nem a minha família me reconheceria, tantas são as maravilhas de que aqui sou feita.

Por conseguinte, hoje é dia de repor verdades, coragem.

Eu não sou, nunca fui, uma fabulosa cozinheira. Na verdade, sou mulher capaz de trocar a cozinha, o aspirador ou o ferro de engomar por contar uma história a um sobrinho, conversar contigo, por ler ou dançar (se bem que dançar com o ferro de engomar é possível até certo ponto, com o aspirador é que não por causa do barulho) e a verdade, no meio disto tudo e sem pestanejar, é esta: eu não pinto as unhas.

Quando era nova, tentei. Esforcei-me. Mas a operação acabava sempre mal, não só devido ao extravasar do verniz para as áreas circundantes, onde já se pode dizer que é dedo, mas também porque ficavam-me depois coisas coladas às unhas, objectos mínimos que identificava pertencerem ao pêlo do sofá, da minha camisola de lã ou de um cobertor que andasse por ali à mão. Isto acontecia, está-se mesmo a ver, porque eu não lhe dava, ao verniz, tempo de secar (permitiu-me porém aprender que é daqui que vem a expressão “isto é uma seca”).

E há uma pergunta que se pode ainda responder: mas afinal não gostas de unhas pintadas?! Gosto, pois claro que gosto. No entanto, posso perfeitamente admirá-las nas mãos das outras mulheres, há tantas: uma pessoa vai à rua e vê logo umas poucas a passar, e eu minha senhora desculpe, diz-me as horas? e aí espreito para a beleza das unhas da senhora enquanto exclamo, para disfarçar, já tão tarde? ai tenho de me despachar. Ora assim escuso eu de sofrer aquilo da seca, do "isto é uma seca". E mais, até agora ninguém se queixou do tom natural das minhas unhas e consigo fazer tudo o que preciso de fazer mantendo-me a usar unhas como as minhas (coçar o nariz, beber água, arranhar o inglês ou o francês, contar uma anedota, ler um livro magnífico, ir ao supermercado, dormir bem). Para além disso, e para compensar as pessoas que me possam achar deslavada, esquisita ou feiosa, uso anéis mesmo bonitos, até ofuscantes de tão lindos, e portanto quem quiser entreter a vista comigo, pode - nos anéis.

Na certeza de que o exposto é perfeitamente razoável, há uma outra coisa que faço muito - e vamos concluir já já - é não carregar no botão que faz acender a televisão à hora das novelas e em vez disso sentar-me ao computador a escrever parvoíces que os meus queridos leitores terão, desta vez, a amabilidade de perdoar. (é que se vissem a pilha de roupa que tenho para passar!... jesus)

04/08/2015

Amazónia

Mesmo que não seja muito, esta altura do ano é boa. Se não estamos nós de férias estão os outros e isso é, por exemplo, haver mais espaço que carros. É que parece que o tempo também expande, vai enlaçado no espaço, é mania, e eu desconfio que o bosão de Higgs está metido nisto (não fugir já, o tema é bom).

Um sobrinho de três anos está junto de mim no jardim de uma noite de verão da semana passada. Olha para a lua quase cheia, que ele não sabe ser azul, e diz-me, esticando os braços na direcção da bola luminosa, não coxigo apanhar a lua, tá longe. Ainda bem, porque se ele fizesse com a lua o que o vejo fazer com as bolas, havia de lhe afinfar mais uns tremendos sombreados a condizer com os pontapés bem metidos, ao mesmo tempo que se ouviria gritar pela vizinhança fora, bem alto, goooooolo!!! indiscriminadamente e mesmo acompanhando pontapés desferidos ao lado. Mas estamos na noite de verão e ele continua, os paxarinhos tamãe não coxeguem apanhar a lua, não têm baxos, e nesta altura estica de novo os dois braços mas agora virando as palmas das mãos para cima e encolhendo os ombros com ar interrogativo. Perguntei-lhe então e o sol, onde está, Rodrigo? o xol foi dumir, o pequeno braço direito faz agora um semicírculo por cima da cabeça, a indicar precisamente toda a zona situada atrás do sol posto, o miúdo percebe disto.

Mesmo que não seja muito, esta altura do ano é boa.

Escolhi-a pois para me infiltrar na Amazónia. Custou-me entrar, ao princípio (mas agora já me estou a habituar, habituo-me a muito desde que não meta gafanhotos). As pinturas faciais perpetradas no seio das tribos são de leitura difícil, mas têm tanto significado, carregam tanta esperança e tanta paz, que as acho lindas. Como também acho linda a capacidade que têm estes homens e estas mulheres de não sentirem raiva: para que a ordem do mundo se não escangalhe. E como a ordem se não escangalha, também não precisam da matemática para a tornar a pôr no lugar: os números terminam em quatro, a partir do cinco são todos corridos a muitos. Tenho de ter imenso cuidado, fui advertida, para não espirrar quando me encontro no seio das tribos; um espirro meu, por muito gracioso que me saia, ia pô-los em pânico e levá-los até a quererem matar-me (em defesa própria) se eu insistisse ficar, é sabido que quando uma pessoa espirra está possuída de um espírito mau e que outras se lhe seguirão no espirranço, no fim alguém acaba muito doente e depois morto, mas eu nisso não penso. Estes povos tribais, já agora, ou andam ou ficam no mesmo sítio, é bem esta situação que os distingue. E os que andam são mais respeitados, no geral (parece-me). Mas o que me trouxe aqui foi a lua e eu já ia sei lá onde, de tão encantada. Aliás a lua e o sol, e vêm de há dois parágrafos atrás, medidas que tomo para não ficar o post incompreensível, já bastou o bosão de Higgs, coisinha inquieta que ali se meteu. Dizem estes homens tribais que a lua é o pai do sol, sim o pai e não a mãe, a mãe foi uma desavergonhada que não interessa a ninguém, então a lua desapontada subiu ao céu onde se deixou ficar, empalidecida com tamanha tristeza e sem amar o seu filho sol (há razões, mas não vou contar tudo). Este, tão triste, já não bastava ser órfão de mãe, todos os dias dá voltas à procura do pai, que lhe anda a fugir. Nas voltas que dá, primeiro sobe depois desce e assim se sucedem os dias e as noites. Ora o meu sobrinho precisa saber disto, qual o xol foi dumir qual quê.

De forma que lá irei a sua casa um destes dias, para continuarmos a conversa. Talvez tenha de o acompanhar nos pontapés às bolas que consegue agarrar com as duas mãos, para que o assunto se mantenha num fio condutor mais ou menos científico (os homens destas idades são imprevisíveis).

Mas claro que este post não fica assim. A minha viagem à Amazónia ainda não acabou e quem quiser pode acompanhar-me, é questão de adquirir um bilhete como o que está em cima da mesa.


(pensando bem, mesmo que não seja muito, qualquer altura do ano é boa para visitar a Amazónia)