a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

27/09/2019

Um pontinho


Saí do meu Cliente Primeiro feita num molho de bróculos. Não há visita que eu lá faça ao querido cliente que não acabe comigo de rastos. Valem-me os bancos do tipo jardim que há na rua, ali disponíveis, bem no coração da cidade de Lisboa, para eu me sentar a recuperar a mente, e a devolver os neurónios ao fresco da tarde, enquanto olho passar as bicicletas comunitárias e oiço os autocarros bufar na paragem perto de mim. Com esta envolvente, lá pelos cinco, seis minutos, já começo a sentir-me de novo em ordem. Contudo, desta vez, voltei para casa (o metro de Lisboa é tão lindo, limpinho, novinho em folha!, adorável, fácil de utilizar, não deixa nódoa, e ainda leva dentro pessoas giras, sossegadinhas, sei lá, um bem-estar, uma paz), voltei para casa, continuando, com a suspeita de que desta vez me estiquei um bocado demais para lá do limite aconselhável pelas minhas capacidades. Então e agora, fazer o quê? Agora podia, por exemplo, deixa ver, pegar no molho de bróculos da primeira linha, ok, cortá-lo, lavá-lo e aproveitá-lo na totalidade, juntando-lhe uma cenoura, batata e um nabo vigoroso, prosseguindo depois em direção a uma salutar sopa de legumes com particular incidência no molho de bróculos. E, por ocasião da cozedura, sentava-me, completando o quadro, a passajar uma meíta ou a pregar um botão. No vocabulário da minha avó, dir-se-ia de semelhantes tarefas, indiferentemente, dar um pontinho. Mas não dei pontinho algum. Tomara tê-los eu.

20/09/2019

Duas belezas

Hoje fui almoçar à tasca mas não àquela de antes, a outra. Na verdade (eis decifrado da silva, o enigma do título anterior!), na verdade, repito, esta não é bem bem uma tasca, embora à primeira vista pareça. Trata-se de um restaurante de pequenas dimensões e toalhas de papel no âmbito do qual o senhor que organiza a situação nos senta nos lugares vagos que houver, junto a quem estiver, tanto faz. Aprecio a eficiência. Hoje, quando entrei e ele me olhou inquiridor, fiz um V com os dedos mostrando o número de pessoas que eu representava e ele apontou-me com o queixo os lugares a atribuir-nos, a mim e à colega que se me juntou para o almoço, nós acabadas de nos conhecermos, ela ainda lá fora a terminar um cigarro. O eficiente senhor aponta com o queixo os nossos lugares-to-be, já disse, e eu continuo a cena voltando-me para a rua e pondo o polegar para cima por forma a que a colega se inteirasse da situação positiva quanto a lugares para nós, tudo isto em gestos de dedos e acenos se concluiu bem mais rapidamente do que se faz a escrever. Então vou e sento-me ao lado de um homem de camisola de rede vermelha e manga cava parcialmente coberto com tatuagens, boa tarde, com licença, em frente dele a mulher que o acompanhava trazendo nas unhas o verniz meio ali meio ausente. Comiam a grelhada mista, ambos. A colega que entretanto já tinha consumido o seu cigarro chegou, sentou-se à minha frente. Em resposta ao eficiente senhor e colaborando lindamente, ela não hesita, solicita a grelhada mista, enquanto eu, que prefiro fugir de carnes, vou para a outra opção disponível, um prato de feijoada. Avançando a cena dois minutos, temos as refeições à nossa frente. O feijão posso dizer que estava assim-assim, já tenho tido feijões mais bem dispostinhos no prato; quanto à cenoura e à couve lá se safaram as duas relativamente. A carne de porco é que estava demais. Fui despachando o assunto ao mesmo tempo que ouvia a minha recém-conhecida colega contar do seu trabalho; nestas conversas aprende-se que eu sei lá e eu adoro aprender que eu sei cá. No final (o final chegou cedo), ficou o meu prato com muita carne de porco lá intacta. É claro que isto não contribui para a minha imagem, mas nem sempre posso ser bonita (ou linda, já não me lembro) e comer tudo conforme a minha mãe me ensinou. Por isso, quando de novo à porta da sala para a continuação do evento alargado, cinquenta minutos antes de este recomeçar, ainda deu para me sentar num sofá baixinho, puxar do computador e avançar trabalho que foi uma beleza, uma. E a colega? A colega ficou noutro sofá baixinho a entreter-se com o seu telefone móvel que foi outra beleza (duas).

15/09/2019

An dervade?

Uma das quinhentas e noventa e oito mil coisas que nunca poderei explicar é por que razão misteriosa gosto tanto de ouvir a composição de Stravinski conhecida por "Sagração da Primavera" (querem ver?). O referido pedaço de música desorganiza-me toda, an dervade. Fico fora do sítio, escangalhada, digo, em tensão, a querer que aquilo dure e acabe logo ali já imediatamente. Faz-me até lembrar os quartos das minhas filhas quando estão no pico da desarrumação, que é assunto bem feioso entre nós, sapatos no chão, roupa virada, a intranquilidade aos comandos, sempre sempre (mas sinal de que estão, ainda estão). Ou a música, se preferirmos ir à rua apanhar uma tempestade, a música atira-me para o caminhar atabalhoado pelos corredores do metro de Paris (sim, eu sei eu sei, mas este espanto é recente, ainda não me habituei), eu e mais milhares de desconhecidos (milhares? centenas!) aos tombos com malas, apressados ao máximo, cães ao colo, perdidos?, eu não corro eu voo e só quando entro no comboio de grande velocidade, todo acolhedor, ai o meu lugar que bom, só aí é que eu posso voltar a colocar as mãos juntas, os pés no chão, o cabelo em ordem, o estômago em paz, o coração no compasso próprio, só aí é que acaba a música, já cansadíssima (adoro, adoro). Não se percebe, pois não?

11/09/2019

Vá lá que encastrável temos

Onde estão os técnicos de linguística, pode saber-se? Precisamos de palavras novas, senhores técnicos! E já muitas!  Em toda a minha vida só me estou a lembrar de ter sido posta no dicionário a palavra bué, tão pequenina e redundante, que aquilo não deve ter dado trabalho nenhum, é uma nanopalavra. Ok, nanotecnologia, lembrei-me agora. Parabéns, palavrinha fofa. De resto, ou tenho andado muito distraída a fugir de paragens de autocarro com publicidade ou então gostava imenso de saber.
Por que raio não inventamos uma palavra para software, hã? E hardware? Achamos que não é preciso? Tão sei lá manter o estrangeirismo! O mindset, o downsizing, que lindo. Os franceses criaram o logiciel, não criaram? E nós? Nós nada, software! 
Ainda tive esperança, por volta dos meus dezasseis anos, quando me disseram que hardware ia chamar-se  quinquilharia e eu nem sequer me importei de a palavra ser tão feinha. Estava preparada para um futuro (risonho) com ela. Mas a pobre não vingou, vinha com problemas ou cardíacos ou outros.
Smartphone, não temos. Tablet, não temos. E Website? Internet? (Internet ainda vá que se perdoa) Hob, não temos. Hob? Que é isso?, pergunta aí alguém. Não é hobina, hobura, hobezedura, não. É, por exemplo, placa de cozinha. Mas placa já havia e cozinha também, portanto não vale. Preguiçosos, pá.

(Sugestão: suaviçoso)

09/09/2019

Galáxias convencidas para comemorar

Na noite em que a minha amiga Marina, que é uma espécie de continuação de mim devido à antiguidade da nossa amizade, vamos a ver bem as coisas e crescemos a comer dos mesmos pacotes de bolachas enquanto discutíamos filosofia e também a trocar bilhetes, nas aulas, com urgentes descrições sobre os rapazes que se tinham cruzado connosco de maneiras interessantes no intervalo e ela, é só mais isto antes de atacar o objeto deste post, e ela com a graça habitual de inventar alcunhas para os seus rapazes, alcunhas que passavam a ser código só conhecido por mim, claro, para que mais ninguém soubesse do segredo super secreto, na noite em que ela, agora é que é, me arrancou do meu estado caseiro e me levou àquilo dos 15 anos do Rock in Rio, para vermos o seu querido Rui Massena, descobri que o fogo de artifício está muito mudado. Até fiquei meio tonta com o lúdico do espetáculo, posso dizer. Não sabia se havia de olhar para ali ou para ali. Orquestradas com a música, as bolas explodiam loucas, de vez em quando largavam uns encores tipo fluorescentes a dançar por ali acima e depois por ali abaixo até puf!. Algumas já nem eram bolas nenhumas mas antes uma espécie de galáxias convencidas, enquanto outras começavam nuns  espermatozoides ascendentes, ai foi foi, a prometer, e outras ainda deitavam chuvinha de fogo para um lado e um planeta azul a girar para o outro, tudo isto, deve dizer-se, veio encontrar a criança que há em mim, calma, que há em mim em sentido figurado, tanto que no final dei um baita abraço à Marina para agradecer e ela desatou a rir e disse que eu estou é muito por fora, e portanto fomos foi logo beber uma cerveja para de meio tonta passar a tonta completa, isto nos copos novos que agora há nestas coisas, não descartáveis, muito lindos para comemorar assim a noite e a vida, a amizade, para comemorar.

06/09/2019

Ou matar dois coelhos de uma cajadada só, se isto ainda se pode dizer facilmente

Havia uma cantora pop que a minha cabeça não permite já recordar quem e que tinha uma canção sobre pessoas boas lavarem o carro à hora do almoço. Aquilo era uma graça devido a eu lavar o carro amiúde a essa hora mesmo. Conferia, queria eu crer (queria!). Quando há pouco saí do dia de trabalho no meu cliente azul e entrei no meu pobre carro, fui esmagada por um calor daqueles que a gente já sabe como é principalmente no verão em carros pretos completamente ao sol o dia inteiro. Consultei o visorzinho, tipo, deixa lá ver que calor é este e li 41 graus. A sério? Então vamos já tomar uma banhoca!, penso eu para o carro.
Quanto a mim faço por escrever este postezinho enquanto espero que a máquina trate do assunto com as suas metodologias de lavagem. São estas horas, 'tá certo, mas é capaz de ainda dar para aplicar a tal canção mesmo passados tantos anos (sim?).
Resultou: o visor passou a marcar 23 graus, quer dizer, já dá para respirar.

04/09/2019

E de setembro, também gosto muito de setembro


Quando saí para, antes que o sol da tarde desse as suas dentadas à canícula, ir ao terminal multibanco levantar dinheiro e arejar a pevide pelo caminho (nunca me perguntei o que raio é a pevide), cruzei-me com a mulher que um dia fiz sentar no avião puxando-lhe pelo casaco de pelo a fingir. Não foi a primeira vez, já me cruzei com ela vezes bastantes para perceber que moramos na mesma rua de Lisboa, nos momentos, claro, em que eu moro em Lisboa. É que achei esta uma das coincidências tremendas e até fiz um post ou dois sobre isto há atrasado de tal modo fiquei estupefacta. Puxei-a pelo casaco para a fazer sentar no seu lugar no avião porque ela se tinha posto em pé ainda o aparelho estava a rolar na pista e o comissário de bordo aos gritos no sistema de microfone, minha senhora! minha senhora! sente-se! sente-se! em inglês. Ela toda atarantada não deve saber inglês nenhum porque não fazia caso destes gritos e foi aí que eu estiquei o braço, tal tal, já contei, explicando-lhe ao mesmo tempo a razão do meu gesto brutal (pevide será a cabeça?). Como se não bastasse, no voo de regresso lá vinha ela de novo no mesmo avião que eu e novamente sentada dentro do meu alcance, mas desta vez portou-se muito bem que eu vi. Ora, dias depois, cruzo-me com essa mesma senhora no meu próprio bairro e – desde então – fez a combinação de astros que nos orquestra as vidas cá na terra a proeza repetida de nos pôr em rota de colisão na mesma rua, por isso é que eu sei. Mas voltemos a esta manhã: cruzei-me com ela e pela primeira vez não ia a senhora sozinha, vinha conversando com outra (pevide deve mesmo ser a cabeça, uma vez que também se a pode laurear). No instante em que ficámos alinhadas as três por debaixo de um jacarandá sem flores pude ouvir a nossa senhora dizer para a outra “gosto muito da rapariga que arranja as unhas”.

E eu gosto muito de coincidências, de não arranjar as unhas e de ter tempo para escrever parvoíces deste género.

02/09/2019

We'll always have Paris, right?

Não gostei nada de ver o homem que ia no metro a mais ou menos um de mim (metro). Ele ia em pé encostado à porta que não abria em todas as estações e foi por isso que reparei nele. Era alto e magro. Todo vestido de preto. A tira-colo levava uma mala do tipo de computador, muito coçada, puída. Na cabeça um boné verde-bandeira. Olhava em frente através da outra porta, a que abria em todas as estações (inverno, primavera, verão, neste caso verão). Havia qualquer coisa nele que me estava a deixar inquieta (aquilo das estações é parvo, mas nem sempre me contenho e o que me contenho!). Eu ia sentada a um metro dele, como já disse, num banco basculante, que só se põe a fazer noventa graus com a vertical sob o peso de alguém. Felizmente veio sentar-se um homem normal ao meu lado, talvez um verdadeiro parisiense para variar dos turistas, já que trazia um cão despenteado pela trela e teclou no seu smartphone o caminho todo com ar de quem sabe o que está a fazer e isso. O cão logo se sentou no chão, claro, e ato contínuo deitou a cabeça nas patas da frente cruzadas com um grande suspiro ficando ali a ser fofinho sem querer, olhando para um lado e para o outro, levantando as sobrancelhas de cão. Se a minha filha Saminhas ali estivesse diria "tão fofo!" umas mil e quinhentas vezes.
O homem encostado à porta, de repente, tirou o boné verde-bandeira da cabeça, dobrou-o e meteu-o na mala do tipo computador, de dentro da qual retirou outro boné de padrão camuflado, juntamente com uma revista com a palavra "Guerres" na capa e fotografias de guerra. Pôs o novo boné na cabeça, desencostou-se da porta, enfiou a revista debaixo do braço e, retomando a mirada em frente, fez da mão direita pistola. Apontou-a à porta que ora ia fechada ora abria, e começou a dar tiros imaginários aos cartazes que anunciavam as datas em que a linha quatro está em obras. A cada tiro emitia um "pou!" seco. Alguns passageiros que entraram em Étienne Marcel, levaram com uns tiros destes mas, à exceção de uma mulher mais atenta, não deram por isso. O parvinho do meu coração começou a bater como se eu estivesse em perigo ou não houvesse amanhã. O homem ao meu lado continuava a conversar com o telemóvel nas mãos. O cão também nada, seguia sendo fofinho no chão mais as suas sobrancelhas sem querer enquanto eu a cada tiro, "pou!", mais nervosa. Tirando uma senhora que mudou de lugar para talvez se afastar do homem dos tiros, estava tudo nem aí.
De repente, numa feliz estação seguinte (alguém se sentirá feliz no metro de Paris?), o homem deu um passo cambaleante, depois um ou dois para o lado e com uns ajustes na espécie de caminhar lá se conseguiu alinhar com a porta aberta e saiu.
(E nesse momento, confesso, sim, alguém se sentiu feliz no metro de Paris.)