a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/07/2020

Cuidados

Relativamente ao fado, é preciso ter também caldos de galinha com a tomada de posse: o meu fado. Isto é ainda mais verdade se for o fado cantado. Cantando, podemos perfeitamente distrair-nos a manter o timbre no seu lugar subatómico em equilíbrio que é sabido metaestável e tunga.

O regresso às instalações do dentista revelou à cabeça novos automóveis no parque de estacionamento. Sentada ao volante, continuo com a dificuldade em tornear aqueles pilares. Mas logo depois, no consultório, enfiar o cabelo na touquinha e os pés nos elementos de proteção com elástico ali designados pezinhos, foi fácil.

Ao almoço, entre duas garfadas de alface com rúcula (a rúcula decerto congeminada no olimpo), passa na televisão, entalado entre duas notícias da atualidade, um reclame reivindicando, orgulhoso, o sábio caminho percorrido por um conhecido medicamento contra a diarreia. Thank you.

29/07/2020

Um (una)

O grito ondulatório das gaivotas por cima dos prédios não causará a deteção das suas coordenadas geográficas móveis, nem seu posterior tratamento dentro do habitual intervalo de confiança, noventa e cinco por cento reconhecemos não ser mau, o resultado veiculado nos meios de comunicação à hora do jantar acompanhado de um franzir de testa do jornalista, impressionado.

27/07/2020

Dois (apartado)

Se o domingo não andasse aí a cheirar o sujo da berma da estrada, eu o teria agarrado, metido no bolso e, a correr, bem podia ir deitá-lo ao rio (ou esquecer). Domingos! Parecem os buracos do queijo. (Querem parecer os buracos do queijo?)

Acordei três noites seguidas a meio do sono assustada com o provedor de serviços de comunicações. Então escrevi mentalmente, com requintes de ácido, fulminantes, acabamentos em negrito da Hewlett Packard, a carta lagarta demolidora. Feita em três, culminou na fila dos correios. Bom dia.

26/07/2020

Três

Quando, nos filmes, o ator diz para a atriz, tens fome?, e a convida para irem comer juntos, uma alegria sempre vem, independentemente da minha idade.

Deve haver um sítio muito pequenino, por baixo da minha omoplata esquerda, onde uma agulha mágica, espetada, eliminaria a dor cinzento-metalizado, agudazinha.

Às vezes adoro a voz da Luísa Sobral, outras é difícil ajustá-la, dar-lhe uma cadeirinha almofadada, convidá-la a sentar. Não sei porquê.

25/07/2020

Quatro

De vez em quando tenho pena de viver num mundo com programas de televisão chamados Big Brother, mas a maior parte do tempo não penso nisso.

Não sei porquê já começo a achar graça às pequenas mensagens que me chegam do pingo doce com anúncios do borrego, do porco e de partes, como a pá. Fui vencida em todas as tentativas de me livrar delas.

A minha nova máquina de café é de fabrico nacional e ainda por cima patenteada. Inchei com isto, mas só depois de chegar a casa.

Primeiro, a gata mordeu o pé do cacho de uvas, depois tomou a sério (ela está sempre séria) a pequena uva branca que lhe apresentei, arrancada ali, e foi para o chão brincar à bola com ela. Uma hora mais tarde encontrei a uvinha abandonada, mordida, meio comida.

avidez

Na plenitude desta constância em organização(zinha), parei na intenção de ir ali deitar-me e ver o noticiário da uma para conseguir conhecer mais do tudo (eu quero o tudo), mas aconteceu um atropelamento auditivo, outra coisa, mas toda, toda – foi um acidente auditivo, uma fala ouvida e não só ouvida, ela foi sentida, a fala, entrou-me cá. Nas veias, nas artérias, os glóbulos tintos, cansados da minha, demasiada totalidade, ou de mim, respiraram em coro de gente ávida, e olha. Vou comprar dois livros.


23/07/2020

Saudades do calor humano, é?

Um sistema de ar condicionado esteja virado para o frio esteja para o calor condiciona-me frequentemente a não gostar dele é nada. Um sistema assim tem o hábito de promover imenso frio no verão dentro dos edifícios e imenso calor no inverno dentro dos edifícios. Eu já quase desmaiei numa reunião moderada a uns 30 graus celsius no dezembro de Lisboa, podia ser uma vergonha. Mas agarrei-me bem à minha consciência para não a perder ali toda nas conversações e à mesa de madeira em torno da qual éramos dezassete, contei, dezasseis dos quais homens, todos já sem gravata e de mangas arregaçadas. Balbuciei um pedido de abertura urgente de janelas para o lado, mas nada, nas obras de remodelação recentes muito modernas tinham colado as ditas para sempre. De modo que já só podia contar com chegar pelo próprio pé à porta de salvação. Claro que planeei o futuro: se for dezembro irei de blusa fresca e esvoaçante e, se correr um julho destes, envergarei um casaquinho fechado até ao pescoço a combinar com uma echarpe muito linda.
(e isto vem a despropósito de quê?)

**** adenda especial para a Maria:

(a próxima a ver se conseguimos com os olhos abertos)

21/07/2020

Café da manhã

Devagar, como sempre faz, o dia emerge da noite. A janela aberta deixa que dele entre um braço de luz prateada, num silêncio. Uma gaivota ronda o pedaço, lançando os seus gritos de praia perto, tão perto da adolescência, ao longe. Com eles quebra o silêncio, golpeando o ar aqui e ali, para lá e depois para cá. 
Lembro-me então dos pequenos caranguejos no lodo que dá chão ao rio. Lá estarão andando de lado, aos arrancos apressados quando a maré deixa. Uns são pequenos outros ainda mais. Absolutamente da mesma cor do lodo, se castanho ou se cinzento fugido, abetonado, condizendo com o majestoso pilar da ponte, não me decido. Mantenho para já, filha de um desconfinamento diário impulsivo, a certeza de que os verei quando o rio se retrai mais fino. Mas são, vejamos, não caranguejos no lodo, como disse, antes são caranguejos do lodo, que é outra coisa. Entretanto, a gaivota voou embora e eu vou fazer café.

14/07/2020

Nenhuns baites por segundo

Por um lado, a segunda circular está pior, obrigada. Por outro lado, ela está mais dinâmica. E ainda por outras palavras, a segunda circular está aqui está não a almoçar, mas a ser promovida a primeira circular. Ah pois é. Ao entrar-se nela, temos ondulação forte, tremedeira, interrupções súbitas no piso (cabum), uns excessos levantados por raízes de árvores vizinhas olá cá estou eu. Características acentuadas, novos graus de liberdade de movimentos, como já se percebeu. 
Mas valeu a pena toda aquela agitação adicional, circular (de primeira), ao cabo da qual voltei a entrar no edifício do Cliente Grande. Tão feliz. E quando digo entrar quero dizer transportar para dentro do edifício a matéria, as próprias moléculas, as forças entre elas, a vontade de estar ali que levava incluída, eu.

12/07/2020

Incertezas

Afinal não se sabe, em princípio, se a COVID-19 tem ou não pico. Em termos gerais, digamos assim. Ou se não é bem pico porque a curva achatou e é só surto. Primeiro, pelo menos, mas também segundo, previsto para depois do verão. A verdade é que deixamos de limpar as compras do supermercado com detergente antes de as arrumar. O pacote de arroz era fácil, assim como a garrafa de azeite, já o saco que traz a alface levantava dúvidas, limpar exatamente como, o saco é mole, o do pão também. E então a fruta? Lavamos as mãos, isso lavamos, muito bem. Mas também já não tiramos as máscaras com todos os predicados aprendidos na televisão, os elásticos, a ordem, isso assim. Tiramo-las como calha, aliás semitiramo-las, porque as puxamos para o queixo se for das com preguinhas ou desenfiamos de uma orelha, se for das de bico de pato, dizem. Eu pessoalmente, passo a redundância, prefiro as segundas não sei porquê.
Que todavia estão iguais às terças, sextas e sábados desde março. E a hoje, que é domingo.

08/07/2020

Slot aborrecido (ai o itálico!)

Na porta de embarque bato os olhos na sola de um sapato de ténis, a sola está voltada para mim. Tem um perfil parecido com o do sapato que deixou as marcas no chão do quarto da Saminhas no último assalto. Este perfil esteve na lista top mais na altura, quando fomos a várias lojas de calçado virar sapatos para apreciação das solas. O perfil  foi então eliminado, as estrias da borracha são mais largas. O sapato do ladrão, ou da ladra, era outro.
O tempo de espera para entrar no avião é um vazio repleto de aborrecido. O miúdo da frente da fila, por exemplo, torce o pequeno tronco do colo do pai abaixo, acompanhando a tentativa de um gemido. Quer sair. Ou quer embarcar. A mãe do miúdo já andou a passar por baixo das fitas delimitadoras de contenção de passageiros em filas para ir apanhar o cachopo fora da área, tinha ele escapado do colo do pai com sucesso.
Hesito entre ter saudades do comboio e culpar a máscara que me dá comichão no nariz e um bocado de falta de ar.