a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/02/2018

Linha 401 (pronto)

Uma pessoa que faz toda a linha 401 de autocarro na cidade de Eindhoven, linha que podemos dizer que cose… ou fica metida a martelo a metáfora?... que une, pronto, o aeroporto à estação de comboios central, ouve o nome de cada paragem antes da própria cada paragem (sério). E se uma pessoa estiver atenta ao que ouve é difícil não se rir, mesmo que tenha de se rir sozinha (sério sério). Cada uma paragem de completamente toda a linha 401 suprarreferida tem o nome começado por Eindhoven. De modo que uma pessoa se de repente se esquecer imenso de onde está, por exemplo - ah mas qu’é isto, que autocarro é este onde me sentei (ou tipo assim) – é recordada a cada minuto que está em Eindhoven. E isto é fofinho. É fofinho e não é tudo. Mesmo que nenhum passageiro desta linha 401 pretenda sair numa próxima paragem por nenhum passageiro ter pressionado nenhum botão a manifestar nenhuma intenção nesse sentido, a mesma voz que anuncia o nome da que aí vem, Eindhoven van de Veld, vamos imaginar, diz logo depois tenha cuidado ao sair. E isto também é fofinho. É por isso que uma pessoa na linha de autocarro 401 se ri sem qualquer dificuldade, só que depois não consegue o quê, depois não consegue ler o seu livro exatamente como tinha previsto.

27/02/2018

A Deus

Lembro-me dela de onde, deixa cá ver, de onde, ah já sei é da fila dos correios, daquela única vez em que estive na fila à porta dos correios e ela também esteve e reclamava do novo horário e também reclamava dos jovens em geral. Mas sobretudo lembro-me daquele dedo cortado. Na fila dos correios adivinhei-lhe uma vida inteira de trabalho duro, um acidente numa ferramenta de corte, decerto por ausência de condições de segurança; as suas reclamações na forma de horário-dos-correios ou jovens-em-geral haviam de ter, afinal, assento em algum lado. E agora estamos no mesmo café a tomar um, ela conversa ao telefone, eu oiço tudo sem querer, porém escrever é por querer que faço. A voz queixosa com que fala ao telefone, preso entre os dedos da sua mão esquerda em que um deles está, já sabemos, mutilado, não tem origem no horário dos correios nem nos jovens em geral, tem origem num outro mal que lhe chegou, ora vamos ouvir: não filha, não estou nada melhor. Mas não te aflijas, que eu entrego-me a Deus.

Não será este por certo o mais belo dos pensamentos, mas que me ocorreu, ocorreu: ter-se-á ela esquecido de se entregar a Deus no momento em que perdeu metade do seu indicador esquerdo, entretanto já Lhe perdoou ou isto não são perguntas que se façam?

22/02/2018

As febras

A meio da tarde encontro-me sentada na grande sala de reuniões encostada à espalda da cadeira almofadada, quando recebo um sinal nervoso proveniente concerteza do subconsciente. O sinal aponta para a ausência, entre mim e a espalda da cadeira, do meu casaco dobrado e pendurado à minha moda precisamente como esteve durante toda a manhã, aconchegado. O sinal nervoso não inclui informação adicional sobre uma eventual investida da minha parte em fazer o que muitos na reunião fizeram: pendurar o casaco no cabide dos casacos. Então desligo-me do orador e rebobino os movimentos em torno da hora de almoço, a última vez que me enfiei dentro dele: mas onde andará o casaco? Deve andar pela casa dos seis, sete anos, é um casaco nada novo, porém tão jeitosinho nos bolsos e no corte cintado, que eu quero ele de volta. Só pode estar num de dois lugares – o carro da Maria - onde nos deslocámos eu, ela e a Constança para o local do almoço – ou o próprio. O próprio era a tasca menos limpa em que eu já entrei, que até me admirou lá ter entrado, mas as minhas companheiras garantiam ter comida da boa e eu cá gosto de comer. A minha mãe não teria entrado ali e eu sem estas companheiras afoitas puxando por mim, idem. Elas tagarelavam alegremente sobre um cozido à portuguesa que haviam comido ali (ou seria noutra tasca, afinal?) em tempos. Ao sentar-me tirei o casaco, pendurei-o nas costas da cadeira à tal minha moda e pedimos o que havia: febras (para mim) e grelhada mista que incluía febras e outras partes de um porco (para elas). Vieram três na minha travessa e eu disse alto que não iria comer mais do que uma febra. A mulher tinha uma tatuagem no braço daquelas que se faziam antigamente e que não se percebe nada o que são e tinha o cabelo esquecido de fazer as raízes há uns cinco centímetros atrás. A sua expressão, ao ouvir-me dizer que três febras era muito, traduzia-se bem para estas-madames-vêm-para-aqui-dar-se-ares. Os outros ocupantes da tasca, já me esquecia, eram todos homens e estavam todos (também) de cabeça levantada a olhar a televisão ligada enquanto mastigavam. (Também) todos parecia não terem tomado banho neste dia nem em dia nenhum da última semana ou duas e um deles tremia muito das mãos. Mas no meio disto tudo comi as três febras. No que respeita às batatas fritas e à salada também não ficaram sobras nas travessas que, como não traziam talheres próprios, nos incitaram às três a comer diretamente das mesmas. Portanto, mesmo tendo do meu lugar vista direta para a retrete da casa de banho que em termos de limpeza está de acordo com os outros fregueses, não posso dizer que não estava boa a comida. Mas posso dizer que quando em voz alta referi a situação de afinal ter comido tudo, a mulher tatuada, sorrindo com os dentes de que ainda dispõe, expressou algo no olhar como estas-madames-fazem-se-de-finas-mas-depois-comem-que-até-coiso, uma vez que eu não sei exatamente que palavras poria ela em “coiso”. Contudo voltemos à sala de reuniões, onde já nos estamos a levantar e a despedir.
- Maria, podemos passar no teu carro a ver se lá deixei o meu casaco?
Não tinha deixado. Então, pouco depois, mal assomei à porta da tasca – a esta hora apenas com um lugar ocupado por uma freguesa velhota - a mulher tatuada sorriu, apontou para o cabide dos casacos que se vê ao fundo e disse
- Eu ainda fui atrás de vocês para avisar do casaco, mas já não as apanhei.
Antes de sair com o meu casaco na mão, tornei a dizer que as febras estavam boas. É que nunca me tinha visto comer três de seguida.

16/02/2018

Intermitências mas da vida

Na sala de embarque (eu conto sempre as mesmas coisas) o altifalante que anuncia os voos está intermitente exatamente como este blogue, que saiu do castigo mais cedo, já vou dizer porquê.

- e  o e  assa ei   or  emba ar   or    uzen    e  ês.

Se traduzirmos dá: Senhores passageiros, favor embarcar na porta duzentos e três, sem as intermitências.

E já vamos na fila do corredor de betão ladeado de separadores muito altos para os senhores passageiros não tresmalharem, à espera de ir para o avião. À minha frente está um pai e um filho (em princípio, devido a serem parecidos). Pelos sapatos do filho vejo que são holandeses. Os homens holandeses reconhecem-se pelos sapatos: castanho-claro com atacadores e bicudos, em que a biqueira é cortada abruptamente para dar forma. Nos mais ousados esta biqueira levanta do chão. O pai, porém, varia no estilo do sapato, que não é estilo de lado nenhum ou podia ser do Alentejo. O boné que tem na cabeça, sim, sim, boné, de um xadrez subtil, parece ter sido mesmo comprado no coração do Alentejo (por isso também deu jeito lá pôr os sapatos). Andamos em fila até junto do avião e ficamos na placa do aeroporto de Lisboa a aguardar que aquilo se resolva lá em cima com o embarque dos passageiros que já subiram a escada, etc. Virando-se ligeiramente para trás, o pai olha então para mim e sorri-me. Nada pensemos sobre isto, que os holandeses sorriem e falam com desconhecidos à-vontade e sem problema nenhum e depois a seguir esquecem-se logo. Ademais o senhor tem idade para ser meu pai e isso ia-se já adivinhar de eu dizer que ele coxeia um pouco. E coxeia de modo cómico, como se dançasse. Quanto a mim – já que viemos até aqui dou a minha opinião pessoal - quanto a mim, dizia, é engraçado este coxear. A fila dos passageiros a embarcar com a sua bagagem de mão arranca para mais uns passos e eis que o pai e o filho à minha frente sobem os primeiros degraus. O pai, que agora já vou dizer que engraçou comigo, volta-se de novo e para além de tornar a sorrir, faz menção gestual de me levar o trolley escada acima, ele que coxeia ainda que engraçado e eu toda cheia de força e fibra devido à aveia do pequeno-almoço, vejamos só. Agradeço e declino com jeitinho, que o meu trolley – ainda por cima – vai quase vazio. Leva evidentemente o imprescindível portátil que é a continuação de mim própria, o livro que não ando a ler e, para fazer fofinho ao referido portátil, uma camisola de lã que comprei em saldo ainda este blogue não tinha nascido, mas mesmo assim foi um dinheirão, e que é muito boa. Tem uns efeitos na malha em aberto que repetem em toda ela deixando ver bocadinhos do básico que envergarei por baixo, e borboto não tem nenhum.


(o blogue ficou de castigo, mas já saiu porque a mensagem automática que o blogger – esta coisa em que a gente escreve os blogues – lá põe é bastante aborrecida, e eu quero dizer que os leitores deste blogue são todos convidados sim senhores e convidados de honra, que é preciso ter cá uma paciência para chegar até aqui)

08/02/2018

Era voar de cabeça erguida, se faz favor

O avião da TAP em que voei hoje chama-se Luís Vaz de Camões e tem um R acrescentado ao modelo, que adivinho dever-se por exemplo a Renovado (pode encontrar este R no folheto de segurança na bolsa do assento à sua frente ou coisa assim). Eu para nomes sou muito específica. O referido assento (à sua frente) é novo, praticamente bonito, e traz no topo da espalda virada para si nada menos que uma inovação a cruzar os céus: um clip em cima e um apoio-prateleira basculante mais abaixo: diz lá que é para tablets. Estudando o sistema vemos o filme todo: cada passageiro pode agora, no seu próprio tablet, ver o seu próprio filme. Todo.
(não disse?)

05/02/2018

Número 56

Olho muito azul por trás dos óculos, sujos. A casa também. E desarrumada, aliás caótica. Cheirando a urina, gritando abandono. Magro, as calças parecem querer cair-lhe. O cabelo, farto, já terminou de branquear, é como neve. São os primeiros passos para a senilidade, dizem-me os meus sensores. Não percebo mais de dez por cento do que ele diz.
Não quer vender a casa: mas divorciou-se e tem de vender a casa. Mostra, orgulhoso, o seu belo jardim. Mesmo ao lado de uma escola primária onde, à hora do recreio, se ouvem os meninos brincar, lançar cristais de palavras imberbes e gritos felizes para o ar. Frio.

- É um sinal de vida – diz-nos, justificando o sorriso.

Saí de lá com o coração partido.