a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/12/2019

Uma manhã de verão como está calor

Está o ano quase a concluir o seu curso, do meu ponto de vista numa serra beirã plena de sol e calor. Para um dezembro em fim de vida, isto é calor (as gordinhas almofadas das cadeiras secam como se fosse verão, estou em curso de lavar todas, cabem duas a duas na máquina, sim senhor).
Anteontem, debaixo do sol rasante mas ainda assim no ponto mais alto de que é capaz, e já sabemos que quentinho, estava a carrinha dos correios a parar na rua e estava eu a dar uma voltinha à casa a ver se vislumbrava para onde tinha ido passear o membro mais recente da família, a gata. Porque o meu coração não anda muito valente e estava aqui a apertar-se relativamente a este passeio. Então dou de caras com a vizinha inglesa em leggings coloridas e camisola de manga cava. Ou seja, com uma grande parte da sua coleção de tatuagens também a apanhar sol. Estava, para não variar, a receber encomendas das mãos do carteiro. Eram várias e grandinhas as encomendas. Não ponderei muito e, depois de dar os bons dias, perguntei-lhe se precisava de ajuda com os pacotes. Ora ela, com os referidos empilhados nas mãos, virou-se para mim, sorriu e disse
- Não obrigada. Eu tenho de ir, não posso conversar contigo, os meninos sozinhos em casa, mas logo tu vens conversar quando Ken chegar, sim?
Eu também não tinha intenções de conversar propriamente com ela, mas que fica anotado aqui o mais-ou-menos-convite para ir conversar a sua casa, ai isso fica.
(a foto faz prova de que o novo membro da família regressou do seu passeio e em plena forma)

16/12/2019

No terminal das carreiras

A voz masculina já avisou cinco vezes ao microfone que está a fazer o último aviso. Para quem, como eu, tem um blogue no bolso, isto é demasiado bom para deixar passar.
O hangar em open space do aeroporto de Lisboa não o noto tão transbordante e terrível como das últimas vezes, há melhorias (é preciso dizer, até porque estou sentada numa cadeira especial de aeroporto e não em cima da minha mala ou no chão, 'tá?). E portanto a voz  masculina emitida, com o quinto último aviso, viaja por entre o espaço de menos-pessoas-que-o-costume mais à vontade. E chama, eu diria desesperadamente, a passageira Cecília Ponte. Cecília Ponte a embarcar imediatamente, não volto a avisar! (mas voltou, voltou, voltou, voltou)
Ora eu, que tenho uma mente desocupada e nem sempre limpinha, imaginei a Cecília atarefada na única loja de souvenirs do hangar em open space a escolher mais um perfume ou mais um relógio, por exemplo. E o avião ali fora à espera, onde é que já se viu.
Mentalmente, para ocupar a referida, digo assim à Cecília: ó Cecília, tu não vês que agora já não há o glamour dos sacos de duty free, não vês que os aeroportos já não são espaços aprazíveis onde se encontra uma mesa de café desocupada (como certas mentes) para a gente se sentar a degustar um capuccino com o desenho de uma árvore de Natal na espuma e a folhear a Newsweek, depois da compra da gravata de seda na Tie Rack, não, os aeroportos agora são tipo os terminais das carreiras, só que maiores, e é tudo a despachar, Cecília, desculpa lá coiso. Compras isso depois no Continente com desconto em cartão que vai dar ao mesmo, não te rales.
Ou então a Cecília coitadinha fugiu do aeroporto, nunca saberemos. 
E isto que sabemos deve-se ao facto de haver greves em França e eu estar aqui em vez de num TGV a cortar o ar francês a trezentos quilómetros por hora enquanto bato uma soneca, que bem precisada dela estou.

12/12/2019

Em oxigénio

Os meus alvéolos pulmonares dão-me a entender que não gostam nada de estar na estação dos correios ali a tentar puxar o ar. Que é mau, não sei como quem lá trabalha aguenta aquilo o dia todo. Pesado, saturado. Hoje fiz a segunda volta da entrega dos postais de natal para enviar aos meus clientes (dito assim até parece que tenho imensos). Ora é lá para o segundo número que os alvéolos pulmonares me dão a entender o mal-estar deles. Isto passa-se, em média, quatro ou cinco números antes do meu. A tática é encostar-me à estante que expõe os livros quase todos de autoajuda, para me autoajudar a não ceder à pobreza do ar enquanto espero. Resultam, esses livros, já agora posso afiançar, e tanto é que o seu efeito se estende a toda a estante. Por outras palavras, mantive-me. Mas onde eu queria chegar era ao balcão após o meu número aparecer no tlilim do ecrã. Já cheguei. E entregar a coleção de envelopes ao empregado que já me conhece esta manha dos postais de natal em papel. Agora noto que ele vai olhando para os endereços destinatários, o maroto, e não é que lê o nome do meu Cliente Azul?! Pois lê! Azul?! Trabalha no Azul?! (todo espantado). Às vezes, digo eu orgulhosa, é meu cliente. E, se notar, continuo, aí mais à frente encontra o Mais Novo, o meu Cliente Mais Novo...


Sim, sim, fiquei vaidosa, que eu senti. Deu até, verdade, para esquecer ali um bocado os pobres alvéolos pulmonares ricos em dificuldades. É que foi só quando saí porta fora, decerto sorridente, a pensar nas pessoas que vão receber os meus postais, que me lembrei dos pobres alvéolos, porque estes ficaram claramente num instante de novo ricos. Em oxigénio, coitadinhos.

04/12/2019

Especialidade almoço

Tenho esta dificuldade. Depois de toda a manhã em pé, a falar a falar, não há agarrem-me-senão-vou-a-correr ficar retida numa tal de fila parada para o almoço na cantina. O que há é uma senhora vontade de me sentar. Isso, juntando o facto verídico de eu optar por não calçar sapatos tipo ténis para a ocasião, é tramado. Foi ontem: inaugurei-me e aos meus sapatos ligeiramente elegantes no cliente mais novinho, o Cliente Grande. Ainda por cima, ali é corredores e corredores, ai que eu perco-me, se não fosse ter memorizado os votos de Feliz Natal das diferentes secções colados nas paredes e mais uma ou outra máquina de café com que me cruzei, por ali fora, para aumentar as hipóteses de encontrar o caminho de volta, são técnicas, mas desvio-me, aliás ai perco-me.
Vá lá que com a conversa a fila parada lá se mexeu e cumpre-se a espera. Finalmente munida de tabuleiro nas mãos, uma salada de atum, sopa, uma maçã para mais tarde que cheira tão bem a maçã, vou e, muito mais contente, sento-me junto de algumas das pessoas para quem falei falei. Agora vamos saltar esta conversa que é confidencial e há aquilo dos dados para preservar. Mas comi tudo menos a maçã, de acordo com as previsões. Levantam-se as pessoas minhas anfitriãs, levanto-me eu embora ainda ficasse mais um pouco antes de me lançar na sessão da tarde toda ela também de pé, e eis que bato os olhos numa espécie de colega por um dia que tive recentemente e que apareceu em um post deste blogue. Está sentada, a comer, numa mesa aqui perto. Olá, como está, etc, eu de tabuleiro na mão, ela na sua refeição, não lhe disse grande coisa, não estava a dar jeito, ela tampouco a mim disse. Ficou, portanto, sem saber que pela segunda vez seria mencionada neste blogue. E de novo na especialidade almoço. Que giro.