a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

05/06/2023

Um garfo!

Quando saí do cliente já passava um bocadinho das seis horas. Abri a porta do carro ao sol de junho, que aqueceu ali todo o ambiente por fora e por dentro, especialmente por dentro. O casaco foi despejado sobre o banco de trás o mais depressa possível, as mangas arregaçadas e as mãos metidas ao volante, claro, mas só depois de espetar o dedo no botão com o AC inscrito. Senti um alívio suave e estaladiço com pepitas de chocalhos de alegria pelo caminho de regresso. Não tanto pelo refrescar da envolvente como pelo sossegar de uma breve missão cumprida e alguns feriados no horizonte. Assaltou-me, ali ao quilómetro vinte e dois, uma vontade aguda de beber uma cerveja deliciosa agarrada a um livro acabadinho de comprar na feira. Mas musiquei o habitáculo com qualquer coisa nova respeitante a portas giratórias, uma oferta da Antena 1.

À noite virei-me para a televisão numa de já-que-aqui-chegámos e para encher com chouriços a paz habitual. Foi o suficiente para bater os olhos num anúncio de comida para gatos exibindo um prato com pedaços suculentos, cozinhados lentamente (disseram), em molho, e um garfo disposto ao lado do referido prato. Com certeza isto é capaz de serem se calhar ideias completamente espetaculares da inteligência artificial.

03/06/2023

Mais um topo de telhado (atirado ao rio)

Foi uma noite abençoada. Dormida até às 9h50 de acordo com a eletrónica de que me faço munir durante a noite. Nove e cinquenta, para o caso de os algarismos impressos não conseguirem fazer solos com o efeito pretendido. É que ontem escarafunchei os pés dentro de um par de elegantes sapatos de doze andares e por isso terrivelmente difíceis de domar, seja na calçada portuguesa seja lá para onde eles me levem. E isto mesmo com o uber a deixar-me ali a roçar os degraus da entrada do lugar doido que começa numas escadas estafadíssimas pelo tempo mas dispostas a levar-nos até ao – adivinhar em coro – sim: topo de telhado!! Portanto havia que dormir imenso para que os pezinhos, (não na areia, porém) aborrecidíssimos com o efeito dos sapatos verticalmente caprichosos dançando Tina Turner (you really were simply the best) à vez na noite muito a cair para cima do Tejo, pudessem recuperar praticamente toda a sua forma já que hoje terão de dar o seu melhorzinho na belísisma festa da minha também abençoada irmã.

13/05/2023

Ou a ideia é transformar quem leia qualquer coisinha futura em atrasadinhos totais?

A cada notícia a urgência intensifica-se. Há que comprar o maior número possível de livros o quanto antes. Livros que ainda trazem os adjetivos inteiros, as possíveis ofensas, as cenas maradas, livros completos, autênticos. Não submetidos aos atuais critérios de censura, frutos de uma surpreendente ausência de cérebros capazes de pensar. Poucas coisas me entristecem tanto como a amputação dos livros que parece querer anunciar-se no horizonte.

Um bocadinho mais de inteligência, por favor. A sério, vá lá.



06/05/2023

Verde pistachio

De cabelo grisalho, ténis, meias e saia curta, a mulher sentada sozinha a uma mesa escrevia num caderno. À sua frente não se vê um jantar, apenas um copo de vinho tinto. A caneta com que escreve, de um verde pistachio, lembra a lapiseira de modelo famoso da Caran d'Ache. Esteve o tempo todo a escrever, só ficava suspensa, em pausa, quando o fadista cantava.
Tive muita curiosidade ali, toda a noite, na mesa ao lado, mas em vez de lhe fazer perguntas perturbando a sua escrita, fiquei somente a ouvir as intensas canções de Coimbra, todas tão bonitas.

Amena corçaqueira

Como queria pegar ao trabalho o mais cedo possível, fui caminhar ainda o relógio andava pelas seis e tal, quase sete. Já fora da aldeia, onde a manhã se encheria de quietude não fosse a primaveril sinfonia dos pássaros, num tímido ramal de terra e muita erva fresca a estender-se a partir do caminho principal na direção do vale, está uma corça macho de porte bastante jeitoso e galhardas hastes, ali toda a olhar para mim como se eu fosse um bicho. Parei a apreciar-lhe a beleza natural quase sem respirar, mas o bicho, ele sim, achou melhor dar meia volta e correr para dentro do bosque de eucaliptos o mais depressa possível, não fosse eu trazer algumas ideias maléficas. Talvez tenha ido chamar reforços, porque muitos minutos depois, quando eu já venho no regresso, estão três exemplares estacionados no meio do tal caminho principal, utilizado pelo carro do padeiro inclusive, ali como se em amena corçaqueira, que é a cavaqueira das corças. De novo parei para observar o espetáculo que me estava sendo dado pela segunda vez na mesma manhã e agora em triplicado, mas os atores optaram por abandonar o teatro das operações e correram outra vez o mais depressa possível para dentro do bosque de eucaliptos onde um ou outro carvalho ainda marca presença no meio da paisagem.

(benditos aqueles que, após os cervídeos terem sido extintos pelos caçadores no final do século passado, introduziram uma centena destes animais na serra da Lousã e agora são aos milhares e encantam-me muito - não sei a quem devo agradecer, mas gostava muito)