a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/12/2023

Valeu a espera

Devia com certeza ter chegado um voo de Luanda. Os passageiros com aspeto angolano, cuidado com o que vais dizer, saíam pela abertura no átrio das chegadas, em grupos numerosos, empurrando carros com malas empilhadas até ao ponto imediatamente anterior ao desmoronamento. O natal aproximando-se a alta velocidade e os feriados de dezembro, por junto, são talvez incentivo bastante para que, em Lisboa, aterrem aviões mais cheinhos.
O voo da Saminhas já aterrou há mais de meia hora, mas ela ainda não surgiu. Circulei pela única loja de souvenirs, passando os olhos pelos livros (quase comprei mais uma revista LER, que depois nunca leio até ao fim). Pelo caminho, reparei que, num topo de escaparate, as prateleiras se enchem em exclusivo de Fernando Pessoa. Comprei um mini pacote de bolachas e um sumo e fui instalar - me na beira da rampa a observar os viajantes recém aterrados. O dispositivo inteligente vibra dentro do bolso do meu casaco. São mensagens da minha filha com informação atualizada sobre o seu demoradíssimo desembarque. 
Na enxurrada de gente, vem um português na casa dos trinta a descer a rampa de mochila às costas. Tem ar de informático. De repente, do lado oposto, dispara a correr ao seu encontro, um menino dos seus quatro anos: paaaaaaiiiiiiiiii!!!!! O informático baixa-se para apanhar o gaiato, encaixa-o no tronco, de lado, aperta-o contra si. O garoto envolve com os braços o pescoço do pai, enquanto a mulher que completa o quadro mal consegue cumprimentar o informático. Ao passarem por mim, no meio de beijos energicamente depositados no seu pai, o menino esfrega o pequeno rosto, afastando qualquer coisa ali intrometida que pareceu surpreendê-lo, e eu oiço.
- Então?! - diz o informático a sorrir ao miúdo - estás a chorar?

Observar o reencontro das famílias à beira das chegadas no aeroporto de Lisboa sossega-me o espírito. O amor continua a ser, ali, o maestro principal.

Bombas de água

Máquinas resfolegantes animam canais em edifícios que dormem em banda, cinco de cada vez. Bombeiam toda a noite o líquido desinfetado de bichos mínimos a caminho de misturadoras ou mesmo torneiras.
No silêncio da madrugada, num arredor intenso da capital, estes ruídos metálicos, verticais, são, àquela hora, a minha companhia.
Mas não é para a ilha que quero voltar. 

13/11/2023

E tu, que encontras assim de tão giro no teu caminho?

Quase tropeçava na pegada ecológica de um exemplar de javali. Abrandando a marcha, aproximei até o próprio nariz para ver melhor. E sim senhor, confirmou-se por todos os lados. Depois tirei uma fotografia ao chão de propósito por causa da beleza. 

É que não preciso de black fridays, descontos em cartão, ou de dar a minha opinião. Não pinto as unhas, já agora. Hotéis de luxo, mansões muito modernas onde alma nenhuma entra no sono, passo completamente. A Netflix e isso, também.

Tenho só um bocado de pena de enjoar desta maneira no Flixbus (por falar em flix). É demasiado ondulatória, a rota. 

Mas quase tropeçar na pegada ecológica de um exemplar de javali de manhãzinha cedo com o nevoeiro ali todo, é bastante raro e muito giro. 

Vou mostrar com qualidade:

25/10/2023

Então bom dia

Através da frincha da janela, chega o canto de dois ou três melros. Lá fora, o asfalto da estrada guardada pelo arvoredo onde as aves despertam, está molhado. Não preciso de o ver. Os primeiros habitantes do bairro já saíram de casa para dentro da noite, que ainda dorme, e as suas viaturas rodam sobre a chuva caída.
Mais ao longe, um cão ladra um bocadinho. É mesmo só um bocadinho que ele ladra, por exemplo, não é muito: as coisas são como são. 
Entretanto um autocarro passa vagaroso. 

Ser assim, toda arrancada à cama por uma cólica inesperada e metidinha, tem algumas vantagens. Como aliás quase tudo aquilo que vem e depois vai. 
Então troquei o café por chá e também arranquei mas foi o dia na cozinha.

12/10/2023

Mas bom dia

Lisboa ajustava-se finalmente com força moderada sobre a placa tectónica num tremor de terra da escala de cinquenta euros. Meti-me debaixo de uma mesa do laboratório de ensaios enquanto em redor caíam algumas coisas indistintas. Procurei o dinheiro nos bolsos e sobrevivi mesmo antes de acordar. Lá fora ainda estava escuro. Alcancei os óculos e desci as escadas, liguei o computador. Preparei um café forte e, enquanto a máquina processava a operação com jorros de vapor a subir aos armários da cozinha, retomei o relatório prometido para o dia anterior.

De repente, lembrei-me do nome do autor do livro com o título na placa em azulejo da casa que está para venda. Casa do pó. Mas nunca li o livro e agora está esgotado. 

O telemóvel esperto faz-me cada vez mais infeliz. Apago noventa por cento da informação; já o mundo fora dele é completamente maior. 

Estou a ponderar comprar os livros todos do João Aguiar e ir outra vez ver os Fatias de Cá. Não sei onde ando com esta cabeça.