a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

23/07/2024

Diz-se oiçai?

O cair da noite está quase pronto. Mantenho-me imóvel, colada à almofada do assento de jardim. A menos de dez metros de mim, está o mastigar das ameixas, maçãs ou peras que rejeitei durante o dia depois da inspeção visual. Digamos que a taxa de defeitos anda nos vinte por cento, o que sem a intervenção de cenas químicas é excelente. Lanço os frutos rejeitados para o terreno abandonado, aqui ao lado. Não que eu seja mal-educada, trata-se antes duma espécie de aquisição de bilhete para o espetáculo noturno e ao mesmo tempo redução do desperdício para zero. Mas é o elegante mastigar de um javali. Podemos sorrir a isto, claro, porém cuidado que ele é muito idêntico ao nosso, especialmente quando alguém se esqueceu de nos ensinar que não se mastiga de boca aberta.
Sabendo a quantidade de frutos que o animal tem para degustar, estimo que a cena vá durar. Continuo portanto firme (e hirta) a ouvir o repasto. Ainda a possibilidade da suína libertação de ar, o derradeiro momento deste longo ato, tem força que basta para me fazer superar o ataque das melgas, que já se pôs jeitoso.
Melgas. E não mosquitos, meninos. Okay? Melgas! 

Entretanto gravei o primeiro ato da banda sonora, oiçai se mais quiserdes.



16/07/2024

Muito me conta a dieta

Sabia que a doutora já estava à minha espera, por isso adiantei a hora de bater a porta, meter-me no carro, e fazer-me às curvas. São oito minutos sempre a descer até à entrada da farmácia. A tarde estava amena, os raios de sol entremeando os ramos dos carvalhos, dos pinheiros e dos eucaliptos em ângulos bastante agudos. As flores caídas da buganvília, à sombra da qual o carro passa o verão, desinstalavam-se, a cada curva, da concavidade entre o para-brisas e o capô. O seu rosa-choque esvoaçante contra o verde abundante da paisagem. 
Ao entrar no gabinete, a doutora abraçou-me, libertando centelhas do seu perfume na minha roupa. Já estou habituada. Teoricamente, alcancei o objetivo ao cabo de quatro meses de dieta rigorosa. Oito quilos foram à vidinha deles depois de uma estadia demasiado prolongada chez moi, como se diz em francês. "Agora só a quero ver em Setembro e depois tem alta", foi a sentença. Estou mesmo contente. Em idade metabólica e segundo as maquinetas de medições várias, diminuí quinze anos e melhorou-se o fígado, a vitamina bê um e mais uma data de ingredientes. Ora mesmo que isto não passe de uma animada estratégia de marketing, não há problema nenhum, evidentemente.

(seguem-se as notas de rodapé para quem não tiver nada melhor para fazer) 

O processo trouxe dois ensinamentos. Um, ficar muito tempo sem comer ou fazer horários desregrados ensina o cérebro a precaver-se contra a falta de provisão e portanto ele manda o corpinho reter o esporádico alimento o mais possível. Dois, parar às onze, às dezasseis e às dezoito para tomar um breve lanchinho zero por cento açúcar, proporciona três momentos diários de puro mindfulness que não só sabem lindamente como caem que nem ginjas. Recomendo muito.

Um dia na serra

Hoje tive seis reuniões e quase não consegui trabalhar a sério, ainda que algumas tenham sido rápidas e todas remotas. Quando no fim do expediente fechei o computador, queria completamente outra coisa. Algo simples. À hora de almoço colhera do terreno as ameixas da manhã e trouxera-as para dentro, quentinhas de estarem ao sol. Já íamos em vinte e cinco. Parece pouco para ameixas, mas é muito. Elas são grandes como bolas de ténis. Ora pela tardinha, esse chão que dá ameixas já dispunha de mais algumas e por isso tomei medidas. Fui buscar dois sacos. Meti-lhes dentro exemplares inteiros - quer dizer, não semicomidos por gaios, melros e formigas enormes.
Saí para a rua. Pendurei o primeiro saco na porta dos vizinhos da frente que estão cá de férias, e o segundo na dos vizinhos ingleses que estão cá sempre, fizeram um brexit ao contrário. Enviei mensagens a ambos a avisar das ameixas e, enfiando os auriculares com fios* nos ouvidos, pus-me a andar dali para fora da aldeia em direção ao pôr do sol na estrada de terra. Liguei para uma filha e depois para a outra. Estão ambas a espalhar beleza em Lisboa, mas quem me dera tê-las aqui.

* ah pois. 

26/06/2024

Veado ou corça

Por causa da emigração que operei para a serra, pude observar, numa destas noites de verão muito raras, dezenas de pirilampos machos. Sei que são machos porque voavam e piscavam as suas luzinhas. Fêmeas não pude avistar nenhuma, elas não voam, ficando apenas com a luzinha no chão a indicar o caminho aos machos. 
Ouvi, então, vindo do terreno mais baixo, um cervídeo, que podia ser veado ou corça, esses não sei distinguir, mas seria jovem, caminhar na direção da estrada atrás de mim, atravessando o terreno aqui ao lado, todo focado no seu intento e sem se deter a comer a erva nem nada dessas cenas óbvias, como é hábito dos seus companheiros de espécie. E não é a primeira vez que isto acontece. Quando chega à rua estreita, empedrada, abranda, olha para um lado e para o outro. Depois continua, desaparecendo da minha vista, rua fora. Estou desconfiada que vai procurar os gatos, que gosta de os ver. É que ali, àquela hora, e não contando com os pirilampos que foram atração de uma noite só, não há mais nada além dos gatos e dos dois carros empoeirados, estacionados à luz amarelinha do candeeiro de rua.
Reentrei em casa e continuei a ler uma alegria que trouxe do espaço Leya numa das duas visitas à Feira do Livro deste ano. "A febre das almas sensíveis", de Isabel Rio Novo.