a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/12/2014

De barriga cheia

Atei o avental atrás das costas. Arregacei as mangas, peguei na sapateira que já vem cozida, cheirei-a, marisco cheira-se, eu cheiro tudo.

Arranquei-lhe as patas uma a uma, situação que não apreciei levar a cabo por aí além, felizmente não são dezenas. Depois abri-lhe a barriga, retirei-lhe o interior. Na internet aprendi a fazer o recheio, mas fiz outro; não tenho metade dos ingredientes e agora já não há tempo de ir comprar os pickles nem o molho inglês nem a mostarda nem o ketchup nem molas para a roupa nem pasta de dentes.

Misturei o que havia, o ovo cozido também, que gosto me dá cortar tudo pequenino em vez de pôr na picadora e fazer uma barulheira que assusta os pássaros, detesto barulheiras e gosto tanto de pássaros.

Depois, sapateira de barriga cheia outra vez, lavo as mãos e limpo-as mal, está na hora dos telefonemas às irmãs que não são poucas, pego no telefone, sento-me. O meu dedo escorrega na tecla grande que pesquisa a lista telefónica da minha vida e em vez de ligar à minha irmã Ana, ligo à vizinha Ana do sétimo andar que também me deseja um óptimo ano de dois mil e quinze e fica muito sensibilizada por me ter lembrado dela. Com muitas irmãs ainda para desejar coisas boas para o ano que está aí a rebentar, limpo melhor as mãos, esfrego-as bem no avental que isto tem de ficar feito hoje. Ficou.

O fogo na lareira está bem atiçado contra os graus lá fora, embora poucos, muito menos que as irmãs, se calhar está lá um grau sozinho, coitadinho, que não lhe telefono, e é que isto não tem graça nenhuma, nem isto nem ontem não ter avistado veado nenhum quando cá cheguei à serra, as horas iam altas na noite, o ano está a chegar ao fim, a sapateira de barriga cheia e eu ainda de avental.

27/12/2014

Chá verde

Acordei andava a madrugada pelas quatro horas e a lua não sei, da cama não a vejo, mas por acaso gostava de saber, que bem haviam de ficar aqui duas ou três palavras sobre o luar, paciência.

Mantenho os olhos cerrados numa precaução aprendida em noites assim, não poucas, mas o sono conseguiu fugir. Sem luar e sem sono, agarro-me ao vento. A janela aberta sobre a serra deixa entrar o som harmonioso desta serenata às folhas das árvores que se agitam trémulas de alegria, poesia assim ilumina qualquer um, mesmo sem lua. Ao longe oiço uma coruja mas o que eu gostava era de dormir. E de voltar a encontrar o veado. Quase o atropelava o mês passado, mês nada bom para atropelar veados, este surgiu a seguir a uma curva na estrada, surpreendido pelo carro teve uma ideia o belo macho, pôs-se a fazer corridas, mas que bicho tão grande, eram duas da manhã e ele também sem sono. Ganhou, meteu-se entre duas árvores onde a trabalhada estrutura que lhe ornamentava a cabeça conseguiu caber e desapareceu. As maçãs tinham assado bem, meti-lhes canela e vinho do porto e as sobras do natal estão quase consumidas, está tudo arrumado e limpo. Senti o sabor da chanfana do jantar, admira-me ter gostado tanto daquilo. Daqui a trinta e nove anos farei apenas o que me apetecer, ouviste? Teremos asas nas costas e levar-te-ei ao núcleo da Terra para te mostrar de que cor é este amor que plantaste na minha existência e me está a queimar os olhos.

Abro-os. O sol já vai alto, o céu vestiu-se de azul vibrante, a janela ainda aberta e o estômago a dar horas. Dez e meia e o padeiro passa daqui a nada. Está tudo por fazer. Queres um café ou tomamos chá verde?

25/12/2014

A noite de natal

- Consegue levar?

O saco onde ela tinha metido as couves que eu acabara de comprar para o bacalhau da consoada, estava crescido: começava no chão onde ela o pousara e terminava à altura das minhas mãos que já estão a sair dos bolsos.

- Este não tem pegas, mas não tenho outro deste tamanho, consegue? - a rapariga da mercearia do centro comercial duvidava das minhas capacidades de transporte de sacos de couves crescidos e sem pegas.

Agarrei-o como se fosses tu nos meus braços para comigo dançares uma valsa, o compasso terciário não é difícil nem com um monte de couves assim, fomos juntos, o saco a levar-me pelo corredor das lojas, que bem dançamos nós, ainda é um pedaço até à porta, vamos lá, e eis que o vejo sentado no banco, pouso o meu companheiro de valsa, a música espera um bocado.

O rapaz que passeia os cães está sozinho no banco de madeira junto à loja de fotografia, passa das sete da tarde e parece-me triste.

- Estás sozinho.

- Estou cansado - corrigiu, ao cumprimentar-me - hoje já passeei quinze, levantei-me às seis da manhã - diz-me num sorriso lento.

De cada vez que o encontro, o Renato faz-me o relatório do negócio que também vai crescido, quinze cães?!, quinze, sim, ele orgulhoso conta-me o seu dia e o grande saco das couves, que não são tantas mas parecem, vai ouvindo a conversa, espera que retomemos a valsa.

- E o teu natal, como vai ser? - a pergunta fugiu-me: o Renato não tem família, o negócio de passear cães salva-o sabe deus de quê e pinta-lhe sorrisos no rosto quando descreve os seus amigos de quatro patas.

- Talvez com o meu tio.

- Talvez? E se não for com o teu tio?

- Fico fechado no quarto - responde com um encolher de ombros que lhe assina a resignação.

E eu agora quero retomar a valsa contigo, levar este amontoado incrível de couves que sei serem demais, vão sobrar, sobram sempre, levá-las para o calor do lar, assistir ao outro amontoado, também incrível, de presentes que toda a família vai depositar junto ao pinheiro de natal, os jingle bells a tocar e rostos vermelhos, felizes, em toda a gente.


- Consegue levar?

As couves consigo. O que não consegui foi deixá-lo passar a noite de natal fechado no quarto.

Onde comem dezoito comeram dezanove. E a nossa noite de natal teve um sorriso novo.

20/12/2014

Mais perto

Comecei por varrer as folhas secas que ficaram no terraço esquecidas pelo vento. O sol está cá e está quieto embora seja este um dezembro como os outros, queres ver, sacudo o tapete da entrada da cozinha e ontem à noite o termómetro não deu mais de três graus bem medidos, três graus que agora ao sol se somam, se multiplicam, e depois sentei-me no primeiro degrau da escada de pedra.

O verão parece que ainda não saiu, ficou a fazer horas extra neste terraço onde me deitei a escrever-te novidades que supus serem-no para ti. Tudo verde então e tudo verde agora, se não olharmos ao céu que tem os tons de branco pintados, fiapos de nuvens vestidas de frio contra o azul magnífico. Tons de branco talvez consigas imaginar, eu descrever não sei melhor. Vi um pássaro preto com a cauda vermelha, tem o tamanho de um pardal e fiquei a olhar para ele saltando de poiso em poiso, poleiros escolhidos da malha replicada na vedação que delimita o terreno até ao fim. Faz perfeita pontaria entre as linhas metálicas que lhe ficam quase justas ao pequeno corpo, um trapezista. Imaginei-o a errar o alvo, bater com a cabeça nas linhas da vedação e ficar tonto, sei lá, deixar-se ir em queda livre até recuperar o norte, se pudesse. Mas ele não errou o alvo, não fica norte para recuperar, e isto o bem que me faz.

Isto e o ciclo da roupa, coisas que não conto a ninguém. Sinto a tua falta e por isso é que me saem estas linhas tortas que escrevo enquanto te ponho aqui a ouvir-me, se calhar estou a maçar-te, a roupa ainda não secou. Eu sei que me entendes, é o que me diz esse teu sorriso sábio, a roupa e o seu ciclo de lavagem é assunto sagrado porque me firma as raízes e de repente pertenço aqui para sempre, deixo cá histórias que um dia alguém quererá contar, o que achavas tu? Liberta-se este aroma ao sol, essência lavada que acena, cúmplice, ao chilrear dos pássaros e combina tão bem com o borbulhar da água que leva pressa para chegar ao vale, o curso mais grosso, claro, e por isso ouve-se daqui, acreditas?

Comecei por varrer as folhas secas que ficaram no terraço esquecidas pelo vento mas o verão parece que ainda não saiu. Ou és tu que estás mais perto?

18/12/2014

Chocolate quente

Normalmente não preciso. Mas de vez em quando, talvez me leve distraída o dia ou sou atravessada por neutrinos dos maus, afogo-me. É um buraco.

Chega-se a mim, e eu, donde vieste buraco?, interrompe-me o estado completo, passo ao incompleto, sou engolida, é isto, olha, precisava mesmo agora que me dissesses assim, com cara séria, olhos nos meus, os teus cheios de luz, eu acho que isso é luz mas um poeta é que diria o que é, não te preocupes.

- Não te preocupes.

E eu obedecia enquanto bebia um pedaço dessa tua luz que se calhar é chocolate, também bebo chocolate, mas um poeta é que sabe. Inspirava fundo, então, voltava a completar-me e depois tu podias ir embora outra vez.

No interstício – aos séculos que não escrevia esta palavra! – no interstício de tempo que medeia, fico-me afogada no buraco que me engoliu e enfio nos ouvidos uma música das que, com um jogo de roldanas bem orientado, me puxará a alma de cimento para cima, ali à altura da bandeira lusa do parque, aquela que acena aos satélites, bem gostava de saber a área de pano que ali está e até havia de sorrir, mesmo que em tons de amarelo.

Lembro-me da miúda que se enganou na coreografia de sábado, no espectáculo de natal que fizemos. Chorou o resto do tempo, dançou em lágrimas, soluçou até depois de tudo acabar e nos enfiarmos na chuva da tarde.

- Que idade tens, querida?

- Onze – arrancou ao pranto.

- Não te preocupes – passei-lhe a mão pelo cabelo ainda montado em carrapito - só não se engana quem não faz nada. Não viste que eu também me enganei?

Levou abraços de cada uma de nós, consolo foi o melhor que pudemos, melhor, mas ineficaz se mostrou, ela não se perdoou o engano e o tempo não se rebobina, ou tu isso consegues?

- Não te preocupes – precisava de lhe passar a mão outra vez pelo cabelo, mesmo que o carrapito já lá não esteja, nem a fitinha de cetim rosa, e assim enchia este buraco, saíamos as duas dele e a chuva da tarde continuaria a cair.

Mas agora, engolida assim, longe da tua luz que deve ser chocolate quente, a música que meti nos ouvidos não funciona, estragou-se com os neutrinos maus, a minha alma de cimento afunda-se e eu precisava.

- Não te preocupes.

15/12/2014

Lindas lindas

Tem dias em que me farto de mim. Noites não, nessas ponho-me a dormir e depois esqueço. Mas dias. Farto-me da minha voz e os espelhos, ai jesus, evito o que posso.

No salão onde se desenrolam muito bem as aulas de dança, há uma parede de espelhos que contribui, evidentemente, para este aspecto. É cabisbaixa que me ponho então, fartinha que estou, uma vez que no chão não os há.

- Susana, tens de olhar para o público e não para o chão, assim, estás a ver – oiço a voz de comando da professora.

Olhar para o público já se vê que é brincadeira, pois público não há mais que eu própria ali reflectida e as outras colegas, não muitas mas boas, pelo menos eu acho que tirando uma elas são boas.

Era sem espelhos e haviam de ver umas determinadas coisas como deve ser. Mas as modas são as modas, estas trouxeram espelhos para os ginásios, e eu já basta não ter um aifoune, os aifounes são muito giros mas põem distância entre as pessoas, põem põem, e eu do que gosto é de pessoas.

Quando estou no aeroporto à espera de alguém, lembrei-me agora, mesmo ali à boca das chegadas, observo as gentes que descem a rampa pouco inclinada mas ainda assim rampa (aborrece-me não saber de onde vêm e sou capaz um dia de perguntar, olhe, se faz favor, era para saber de onde vem) e gosto daquilo, suspeito que fico com uma cara qualquer, felizmente espelhos não os há, só o anúncio do Martini que cobre todo este desembocar das chegadas, vai de uma ponta à outra do aeroporto, estou desconfiada que praticamente entra no metropolitano, coisa mesmo à grande sim senhor e que renovaram recentemente, o outro estava ali ainda eu não me fartava de nada, vamos lá ver quantos fica agora este e o parágrafo está tão grande, fecha-se já.

Observo então os abraços, os sorrisos, os abraços, os sorrisos (dizem que as repetições trazem tranquilidade e eu tomo-as agora para ver se me descanso de mim), observo um grande grupo que enche toda a largura do fim da boca das chegadas, malas a ajudar, caros a escorregar, não era para rimar, é favor desculpar, são muitos e apresentam pessoas a pessoas, beijinhos beijinhos, muito prazer, igualmente, apertos de mão, como está, sorrisos e depois vem uma lá atrás mal disposta, resmunga que estão a ocupar e diz olhe desculpe, mas devia dizer olhe deixe passar, esta não tem cá ninguém, nem abraços nem beijinhos, sopra o ar, revira os olhos.

E eu ponho os meus nas costas dela, vejo-a ir para a fila dos táxis, coitada vai para a fila dos táxis, e quando devolvo a cara à observação das pessoas aparece o Manuel, olha está mais gordinho, mas não digo, ele vem a sorrir, vens de onde Manuel, de Bruxelas, ah de Bruxelas, diz-me que eu mais nova, mais nova eu mas farta farta, estive com as tuas filhas no outro dia, sabias, sabia, estão lindas, pois estão, lindas lindas.

E eu com o pensamento nas lindas que são mesmo mesmo as minhas filhas, rio-me com o Manuel e do meu riso por acaso ainda não me fartei.

11/12/2014

Primeiros acordes

Dia.

Subimos lado a lado a alameda dos ciprestes a esta hora inundada de sol. Ela estremece de um frio que eu sei vir-lhe mais de uma memória com muitos espinhos que deste cortejo fúnebre, vejo-o diluído em lágrimas que lhe trazem mais luz aos olhos verdes. Ao caminhar, imprimimos no alcatrão novo o rasto das nossas sombras, que são irmãs. Escolhi fazer este trajecto lento ao seu lado, mantenho os olhos secos e conto-lhe uma história enquanto, por cima de nós, os aviões são cuspidos para o céu.

- Ainda não te contei esta história. Eu tinha catorze anos e gostava muito de uma música de que conhecia o título. Entrei com o pai numa loja de discos onde ele ia muito, comprava-os lá.

- Uma discoteca.

- Exacto, uma discoteca. E pedi ao senhor da loja que pusesse a tocar a música para a mostrar ao pai. Era o “More Than This” dos Roxy Music, conheces?

- Não, acho que não…

- É natural, se eu tinha catorze tu terias sete, brincavas com as Barbies… Bem, aos primeiros acordes, o pai disse logo que o comprava, pareceu-me que adorou a música e eu fiquei toda contente. Ouvi milhares de vezes aquele vinil.

Fizemos o resto do caminho na companhia das suas lágrimas silenciosas, nascente daquela memória antiga que este contexto fúnebre desenterra. Eu queria tirar do coração da minha irmã a dor que vive tão fundo nela.

Quando saímos do crematório, a alameda dos ciprestes continuava inundada de sol e os aviões seguiam cuspidos ao céu.

Noite.

Saí da reunião e fiz-me à estrada para chegar a horas ao jantar no bar da praia. A luz no painel de instrumentos insiste na ideia de meter combustível, pisca com energia cadente e eu faço contas aos quilómetros a ver se posso abastecer no regresso. Posso. O telemóvel também dá alarme, está quase sem bateria e tenho ainda dois telefonemas a fazer pelo caminho. Faço. Lembro-me entretanto que não há pão em casa nem tempo para o comprar. Paciência. Há bananas.

Chego com dez minutos de atraso, a Catarina já tem uma imperial e amendoins à sua frente. A praia nas noites frias de inverno também existe, mas o bar está quase deserto.

- Caty, importavas-te de não parecer sempre teres vinte e oito anos, importavas?

Ela ri-se e abraçamo-nos. Não nos vemos há um ano e estes jantares são praticamente sagrados.

Duas imperiais e dois hamburgueres depois, nada gourmet e tudo à grande, não vamos ao engano, despedimo-nos com desejos de boas festas e no regresso a casa parei na estação de serviço. Ao retirar a agulheta para abastecer, o aviso esganiçado no altifalante cliente da bomba seis, o serviço está em pré-pagamento, saiu automático e eu dei um grande salto, não gosto de dar grandes saltos. O pré-pagamento inclui tentativa de me venderem dois chocolates Toblerone maiores que, deixa ver, maiores que o meu úmero e ainda coisinhas estranhas para fazer pega monstros por dois euros e noventa e nove.

- Produto nacional, muito bom, quer?

- Não. Quero pão, tem pão?


No resto do caminho pus a tocar o CD dos Roxy Music, descendente do vinil dos meus catorze anos, que trago no carro. Tocou em repeat os acordes que pedi ao pai para ouvir naquela tarde em que tu brincavas com as Barbies e nenhuma de nós sabia ainda o que era morrer.

08/12/2014

Tempo

Cheguei-me ao rio. A lua reflecte-se ali a meio caminho entre esta margem e aquela, mostrando-me um carreiro de gotas todas juntas e eu escolhi uma, acolhi-a na mão, bebi-a. Sabe um nadinha a mar.

Começando a prosa com tanta poesia até parece que, em ganhando balanço, vai derreter um ou outro coração mais adiante e mais natalício ou mesmo distraído. Pois assim não será, que esta prosa serve-se azeda.

Hoje tinha pensado morrer. Para isso, fui comer uma refeição do tipo porcaria servida em recipientes de cartão armado ou de plástico em cama de tabuleiro revestido com papel total e visualmente poluído com tretas que não valem nada e ainda a factura debaixo do copo da bebida açucarada, das piores.

Sentei-me na esplanada dando as costas ao sol, a carregar, a ver se vem a mim um resto de energia e eu pego.

Uma mulher muito gorda fuma sentada no meu campo de visão e enternece-se com os pombos, anda aqui uma legião deles a debicar nos restos deixados nos tabuleiros abandonados. Eu não me enterneço com nada, como esta porcaria em cima dos materiais perecíveis depois de mim e da factura, que é sem contribuinte, e acaba de voar o celofane onde vinha metida a palhinha.

À minha frente está a revista do jornal de sábado que trouxe comigo e que me quer dar ideias para presentes de natal, perfumes, meias de lã, mas eu não quero estas, as minhas é que são boas ideias.

Entretanto, com o sol a carregar-me nas costas devo ter enfim pegado, reparo que neste cenário nem os olhos mais benevolentes podem registar uma centelha de beleza e uma batata frita desolada voa por cima da minha cabeça e vai embater na mulher que fuma e se enternece muito, olha que lindos, vê-se mesmo que gosta dos pombos. Eu era as gotas de água em carreiro a correr ao luar junto ao rio, mas doçuras não são para hoje.

Acabei com aquilo, o meu lixo levei-o para fora do alcance do vento e recolhi a casa com o saco do jornal na mão.

Pelo caminho percebi que afinal não podia morrer hoje, havia ainda a árvore de natal para fazer e uma pilha de roupa a tratar.

Fica para amanhã, então. O tempo que me vou subtrair corto-o em pedaços: anos para a família, meses para os amigos e semanas para o porteiro lá da empresa, que fica sozinho na noite mágica a vigiar a entrada de ninguém. Embrulho todos em papel muito bonito, ponho um laço vermelho com o brilho que lembra o luar no rio e ofereço-os pelo natal, isso sim.

Cá perfumes e meias de lã. Da falta destes não se ouve alguém queixar.

Já da falta de tempo, sim. 

Muito.

Mas pouco espero que demore a reflexão do amigo Xilre. Muito grata estou eu e, não tarda nada, saudosa.

07/12/2014

Maria Lúcia

Não sei se era natal naquela noite, sei que estava frio.

Maria Lúcia, viúva conformada com a sombra de um amor que o foi pleno, deita-se normalmente tarde. 

Mulher devota, crente num deus bom, não concebe naturalmente intenções outras que não pares das suas. Esquece-se de cuidar de males, muito menos esperar que lhe escorreguem para dentro da sua existência já longa mas frágil, contada em mais de sete décadas.

Deitava-se tarde à quarta feira e à sexta, ao domingo e em todos os dias.

A única luz que deixa brilhar nos serões solitários do seu apartamento antigo, num rés-do-chão de Lisboa, é o quadrado do ecrã de televisão. Dali toma, transferido, o consolo levado com o marido, o ecrã luminoso conta-lhe as histórias que lhe embalam os dias e desconfio que também os sonhos.

Na sala, os móveis cheiram ao cansaço de uma madeira escura, indefinida, colhida em florestas antigas onde imaginei ter havido duendes e elfas a tecerem os séculos, hoje decerto cruzadas por auto-estradas vazias. Os napperons que lhe saíram das mãos em décadas passadas, quando a vista ainda podia, filha, estão dispostos pelas superfícies nuas, que nudez é assunto para se ocultar em presença da Nossa Senhora, ali, de vigia na cristaleira.

As pernas cobre-as com a manta velha, que o aquecedor gasta muito. E é assim que, naquela noite em que não sei se era natal mas sei que estava frio, parece que ouve um barulho abafado.

Põe-se à escuta subtraindo mentalmente as vozes do filme que corre no ecrã e confirma: uma restolhada lhe chega aos ouvidos, esses não a enganam.

Afasta a manta, levanta-se da poltrona e, sem acender outra luz, sai da sala e entra no corredor de acesso ao quarto, parece que o barulho é dali.

- Não teve medo, Maria Lúcia?

- Medo de quê, filha? Não tive medo, mas quis ver o que era.

Agachado entre a parede branca e os pés da cama feita da madeira retirada aos mesmos duendes e elfas, estava um homem. Maria Lúcia viu-lhe os olhos brilhar à luz da televisão que fez com ela o corredor e ali ficou a secundá-la.

- O que está o senhor aí a fazer?

- Nem então teve medo?! – eu estava admirada.

- Não, filha, ele é que parecia assustado.

Disse-lhe para se levantar e pegou-lhe nas mãos, estavam frias.

- Tem as mãos frias. Eu sopa não tenho, mas venha até à cozinha e faço-lhe um café, para aquecer.

Ele obedeceu. Era um homem novo, podia ser meu neto, filha. E estava com frio.

O homem bebeu o café e agradeceu, palavras ouviu-lhe poucas. Ela acompanhou-o à porta e disse-lhe que da próxima vez não saltasse pela janela, que se podia magoar, tocava a campainha e ela oferecia-lhe sopa, se tivesse. Se não, havia de ser outro café.

Hoje de manhã, enquanto metia a roupa na máquina para lavar, o sol que me entrava pela janela bateu-me nas costas e eu lembrei-me dela. Por uma coincidência, por ser quase natal ou por haver duendes e elfas nestas linhas, Maria Lúcia faria hoje anos se fosse viva. Da história mudei um bocadinho o seu nome e não mudei mais nada.

04/12/2014

Gargalhadas suadas

Fala-se imenso do amor. E fala-se das coisas do facebook, de música má e de sushi, pagam-se contas pela internet e vêem-se montras nos centros comerciais aos domingos. E moda, fala-se da moda, desdenham-se os políticos, usa-se muito o desdém, vendo bem combina com os metais alaranjados que são a tendência deste ano em relojoaria, isso já eu percebi. Também se mastigam almoços de boca aberta com a cabeça inclinada ao tecto a olhar as notícias do jornal da uma na televisão dos restaurantes. Ou então, isto vê-se muito, tecla-se no aparelho electrónico que nos liga uns aos outros.

Ou desliga uns dos outros. Mas amor, era aqui que queríamos ir.

Fala-se do amor. Até se faz publicidade com o amor. É normal. Reduzir o amor a um par de gargalhadas soadas em muitos lados, dentro de carros parados em semáforos, nas cozinhas das casas das pessoas ou nas lojas, soam do outro lado da emissora rádio por causa de um reclame imbecil sobre uma bela loira que afinal era uma cerveja. Reduções baratas de coisas grandes porque a loira era para ser o amor de alguém mas não passou de uma fermentação bem maltada ou assim para se beber bem fresca. Qual amor?

Não é preciso falar do amor. Não falemos do amor. É preciso é fazer o amor.

Não merece a pena neste ponto incendiar entusiasmos e abrir expectativas, que eu não tenho arte para me esticar por terrenos delicados, há muitas maneiras de se cozinhar bacalhau e o amor português também joga nesse time.

Hoje. Na cantina lá da empresa onde todos os dias me encontram normalmente dentro da minha bata cujo corte não conheceu alfaiate, assim como muitos edifícios – quase todos – em Lisboa não sabem o que é um arquitecto, adiante que esta mágoa carregá-la-ei para a cova - abandonei a linha de alimentos onde me servi de vários, e sentei-me à mesa onde pousei o meu tabuleiro. À minha frente a Carla já vai adiantada mas o seu tabuleiro exibe ainda inteiro um dióspiro vermelhinho de maduro, coisa tão rica que até me veio um bocado de água à boca. No meu tabuleiro uma maçã assada raquítica a envergonhar-se, mas que amor.

- Ó dona Esmeralda, onde estão os dióspiros? Eu só encontrei esta maçã assada resmenga e salada de frutas, que é coisa que não como.

- Res… quê? – a dona Esmeralda aproxima-se da mesa a esfregar as mãos no avental.

- Resmenga, dona Esmeralda, inventei a palavra e por acaso faz muito sucesso.

Não passou um minuto e eu tinha no meu tabuleiro um dióspiro nascido de uma prateleira escondida lá das coisas da dona Esmeralda. Ora isto é amor. No fim houve que lavar as mãos e a boca, mas isso foi o menos, que me regalei à grande.

Esta manhã, eu ainda na cama. Abre-se a porta do quarto e entra uma chávena de café a fumegar e – já sabemos esta parte – a aromatizar o espaço como mais nada o pode fazer. Agarrada à alça da chávena vem a minha filha mais velha a sorrir, é mesmo linda esta miúda, bom dia, mãe.

Ora isto é coisa que eu não ensinei à petiza quando era petiza, portanto só pode ser o quê? Deu-me um beijo na testa e saiu para a escola, até logo. Amor.


E antes que pensamentos cruéis sobre uma mãe que fica na cama quando as pobres crianças saem de casa para a escola em vez de as conduzir de carro, coitadinhas, vão a pé ou de autocarro, antes que pensamentos assim invadam cabeças, vamos ouvir outra opinião:


(gargalhadas soadas adorei, são muito boas, mas se forem suadas serão ainda melhores, era reflectirmos nisto se faz favor, que é quase natal)

01/12/2014

Quietinho no prato

Os rapazes da Coreia do Norte, não sei, talvez lendo “Dentro do Segredo” do José Luís Peixoto, mas os da Coreia do Sul, se recebem alguém que vem, por exemplo, da Europa, é mostrar o que valem em comidinha fresca. Peixe.

Sabendo já nós de sobejo que os japoneses nem sempre chegam lume ao pescado, preferindo enrolá-lo em pequenas obras de arte coloridas e de meter na boca mas só depois do equilibrismo nos pauzinhos e é para quem pode, e o comem, ao pescado, mesmo cru, estaremos certamente preparados para a eventualidade de os rapazes da Coreia do Sul enveredarem por caminho não muito díspar. 

Erik e dois colegas, enviados dos Países Baixos a uma conferência ali organizada, constituíram alvo da espontaneidade risonha dos orientais deste país do sul e viram-se acomodados em restaurante bem afamado, peixe cru é o petisco que está para vir, muito fresco muito fresco, tão fresco tão fresco que na verdade, vendo bem as coisas, ainda não morreu. E se não morreu - esta é fácil - está vivo.

Ora, quando o apetite não é desmesurado e os bichinhos esperneiam alegremente no prato, num prato sem gradeamento nenhum, era ou não era de lhes segredar discretamente: fujam, fujam!?

- Então como fizeste? Comeste?!?

Erik não comeu, um dos colegas ficou ligeiramente esverdeado na dificuldade: desiludir a generosidade dos sul coreanos que riam e acenavam muito em incentivos à degustação, contra a impossibilidade prática de meter um bocado de polvo vivo na boca, os polvos vêm cheios de pernas, ou serão braços?, e trazem ventosas de origem, aquilo é capaz de se querer meter no nariz se der uma chicotada no ar pelo caminho, nunca se sabe, e depois para descolar?


Eu cá penso que se torna bastante conveniente, ao almoço, ter tudo quietinho no prato.

29/11/2014

Viagem a Marte

Aconteceu hoje.

A máquina fotográfica estava mesmo ao meu lado.

Chamei-lhe um figo e ela captou isto. A ver.



É que fugiram de mim as palavras e calou-se-me a voz. Bem tentei.

(as pessoas que se inscreveram para a viagem a Marte estavam com certeza a brincar)

27/11/2014

Coisa tão linda

Lavo as mãos e sento-me à secretária para continuar o trabalho. A caldeirada de pota do almoço libertou vapores aromáticos típicos que parece que vieram comigo. Concentro-me, calculo que isto já passa e o resto, que também calculo, não dá zero.

Despacho-me, há que estar pronta para a reunião das três, já sei como é. Isto feito tem de ficar e eu tenho de ir.

Enquanto teclo os cálculos, o zircónio que me brilha no dedo brilha-me no dedo. É a receita da primeira hora da tarde, a hora morta, pesada, fastidiosa, estica o dia para dentro de um bocejo muito comprido, espreguiço-me, vou mostrar.

(coisa tão linda)

Continua a cheirar a caldeirada de pota, mas eu lavei as mãos.

À minha esquerda, pendurada na parede, está uma das minhas obras de arte favoritas, para não dizer uma das minhas paixões, a obra que contém mais beleza, mais ciência, mais técnica, estudo e dedicação, um trabalho de uma grande equipa a tempos diferentes, uma pérola ainda incompleta, uma estrela: a tabela periódica dos elementos.

(pausa para sorrisos rasgados e inclinações amorosas de cabeças visivelmente enternecidas e um café se for rápido)

O zircónio elegantemente exibido ali em cima também está no retrato, tem o número quarenta, e portanto não resisto e levo o dedo ao papel, toco no quadrado onde mora o zirconiozinho que bonito e que cheiro a caldeirada.

Admiro o brilho desta pedra preciosa, hipnotiza-me ligeiramente, uma riqueza que me faz revirar a mão, inclinar de novo a cabeça em enternecimento já referido, esquecer por um bocado os cálculos do resto que não é zero antes que a reunião comece e ver melhor.

Ver melhor e bastante bem a grande mancha amarela muito suspeita com ramificações transversais nos dois sentidos, estrutura ligeiramente fractal, impressa na manga da minha bata de trabalho que não tirei para ir à cantina, visto que me fica tão bem.



(Isto é o que acontece quando tento escrever um post pequeno, curto, rapidez no consumo que há mais que fazer. O que demorou imenso foi a fotografia)

25/11/2014

Males que vêm por bem ou a borboleta castanha?

A minha colega que apanhou Legionella regressou hoje ao trabalho. Diz que não tem fumado desde então, sempre foram duas semanas, sorria e estava, pareceu-me, mais brilhante o seu sorriso. A minha avó, se ali estivesse, teria dito àquela hora há males que vêm por bem.

E eu estou muito de acordo com ela.

Hoje ao final da tarde, quando o trânsito saiu à rua a marcar o ritmo dos dias que caem invariavelmente nos braços das noites, eu encontrava-me dentro do carro, a minha filha ao meu lado, o consultório do dentista a ficar para trás, devagar. 

Isto não seria interessante notar, se não fosse ter reparado que está uma roda pouco gigante dentro do recinto onde antes pulsava de farturas e música fanhosa, de luzes coloridas e cheiro a frango assado, de algodão doce colado ao meu nariz e a esperança de mais uma volta na montanha russa, vá lá, mãe, por favor!, a Feira Popular.

Distraiu-me aquela roda pouco gigante, ou fui eu que cresci?, e agora distraem-me os gritos da miúda no quarto, porque está aqui uma borboleta enorme!, das castanhas! e não pára de voar!, ó mãeeeeee!

Difícil não é ter um blogue, difícil é rasgar o tempo sem doer nada a ninguém e meter-lhe dentro um post, no tempo, fazer uma espécie de sanduíche de torresmos, assunto que não discuto porque nunca semelhante coisa me cruzou os dentes, mas há quem aprecie.

Os males que vêm por bem. Há-de ser aqui que chegamos.

Aproveitando o vagar com que rodavam os pneus atrás dos outros, enquanto a Feira Popular se afasta de nós e eu esqueço o cheiro do frango assado, lembro-me da velha professora de ginástica do colégio. Ela não morria de amores por mim, acho que nem sabia o meu nome, comigo usava sempre o apelido. Ao segundo jogo de andebol do sétimo ano, não esqueci, quando viu que eu não metia golo mesmo nenhum, aliás a bola escolhia muitas mãos, isso era, mas não vinha amiúde aconchegar-se nas minhas, pôs-me o apito pendurado ao pescoço e declarou que a partir dali eu era o árbitro, tu não jogas nada.

O jogo recomeçou e eu sem ideia certa das regras, esqueci-me de estudar aquilo, foi ao calhas. Deixei passar uns minutos e de repente apitei com força.

Porque apitei?!... Ai não era?... Tu vê lá se atinas, que não foi falta! Vou tentar, prometi.

Mais um bocadinho e vejo uma colega muito rápida, parece que troca as mãos, com certeza aquilo é a tramar alguma, cá vai disto e apito outra vez. Pelo sim pelo não faço-o com menos força, não vá ser inoportuno apitar naquele momento e isso aborrecer alguém, com sorte ninguém ouvia, poupava uma maçada a toda a gente, ouviram. Então?!? Outra vez?!?

A professora apontou os passos largos e o corpo possante para mim, arrancou-me o apito, tu nem para isto serves, e mandou-me para a baliza, vê lá se agora defendes.

Não foi estratégia brilhante e isso viu ela daí a poucochinho quando alguém se lembrou de querer meter um golo e o meu instinto não quis colaborar, mandou-me fugir da bola em vez de me manter à frente dela, aquilo parecia que vinha cá com uma força, portanto o golo entrou muito bem, aliás viu-se ao longo do jogo que veio mesmo com a família toda, à vez, que o instinto é coisa forte, dificilmente se vira ao contrário e o meu não foi excepção.

Aspirei a borboleta castanha enorme que não parava de voar, com o cano do aspirador apontado ao tecto e a miúda sossegou, já está tudo a dormir. 

Tudo menos eu, que não sei como fazer este mal que sou no andebol, vir por bem.

21/11/2014

Pais que não são meus

- A senhora fala português?

Ando a inventar.

Inventei de tricotar um cachecol azul muito bonito com um castanho entremeado em certos sítios, mas primeiro acendi seis velas de cores diferentes, espalhei-as pela sala e gastei os fósforos nisto para não queimar os dedos.

- A senhora fala português?

Inventei de acordar muito cedo e experimentar acender luzes em casa, mas tinha tanto sono que embati na ombreira da porta e fiz o corredor todo a esfregar o braço às escuras.

- Português falo e até bastante bem – percebi que a pergunta era para mim.

A electricidade tinha ficado do lado de fora da porta e eu fui inventar de tomar banho à luz das velas mas troquei os produtos na aplicação, quando se está zen não se pode ler miudezas como “shampoo” ou “dê mais brilho ao seu cabelo”, com esta luz sei lá com que brilho posso contar, de qualquer forma a coisa lá se fez. Depois, ao sair da casa de banho, tropecei na mala de viagem que ainda está no chão e lembrei-me dele.

- Então não me arranjava umas moedinhas, que a máquina ficou-me com o cartão?

Contra a minha mais habitual vontade, também inventei de comprar numa loja chinesa um chapéu de chuva que abre de repente ao pressionar-se um botão e torna a fechar de repente pelo mesmo botão, já o usei três vezes e ainda está bom.

- Moedinhas? – obeservei-o por um momento. Tresanda a tabaco e a desequilíbrio, os olhos não se fixam, parece que tremem. É domingo à noite, estamos no aeroporto, eu à espera do táxi para me levar a casa, a mala no chão ao meu lado.

- Sim, eu vim visitar os meus pais a Castelo Branco e agora faltam-me doze euros, a máquina ficou-me com o cartão, trabalho em Marrocos, a senhora não me arranja umas moedinhas?

- Não. Acabo de levantar dinheiro para o táxi e não tenho moedas.

Não abri a carteira para confirmar. Inventei a certeza de não ter moedas. Ele afastou-se e fiquei a vê-lo abordar outra pessoa que fala bem português: abriu a carteira e deu-lhe moedas.

E eu, da próxima vez, inventarei uma atitude diferente. Darei as moedas.

Porque mesmo inventando muito, não preciso de inventar que trabalho em Marrocos, que a máquina me ficou com um cartão que não tenho e que fui a Castelo Branco visitar uns pais que não são meus. 

Afinal não falei bem.

18/11/2014

Charco do bem comum

Ligo então o rádio e oiço-a pela segunda vez hoje. Mona Lisa entoada por Nat King Cole.

Não gosto desta música. Enjoa-me. É repetitiva. E lembra a Mona Lisa, deve ser essa a ideia, portanto há uma coisa que agora vou dizer.

Ou antes, declarar, pela primeira vez na minha já longa vida, que não acho graça, nem muita nem pouca, ao quadro mais conhecido do mundo. Por mais que eu pestaneje, leia até tarde, fuja da televisão, pague impostos, durma e acorde, ou os esfregue, os meus olhos gostam é de se fixar em coisas mais, digamos, evidentes. Um sorriso meio sorriso ou um quarto de sorriso ou um ensaio de sorriso ou um sorriso tão levemente sorrido ou um sorriso que vem a cair das nuvens torna-se cansativo e a gente não consegue arrumar o assunto de uma vez por todas.

Eu cá achava mais interessante se o Leonardo tivesse posto a moça a sorrir como deve ser ou séria e acabou-se. Facilitava a vida às pessoas. Está bem, eu sei que a arte reside nestas dificuldades, nestes vai não vai, nestes encanares de pernas às rãs, mas a verdade é que andamos nisto, nesta discussão, há quantos? cinco séculos? As pontes que não se podiam ter já construído, pontes a ligar terras, a promover o trânsito de produtos, a elevar a economia dos países, coisas realmente úteis, é que vendo bem cinco séculos são cinco séculos, não é?

E agora não saia do seu lugar que, mesmo correndo o risco de este blogue se tornar mal-amado como tudo, isso me ferir deveras e ter de fechar as portas por falta de visitantes, sai ainda mais esta verdade: a Mona Lisa nem sequer é bonita.

Tampouco o vestido a favorece.

Se liga com as sandálias o Leonardo não quis mostrar, mas isso já vai dos gostos de cada um e mais não me vou pôr a dizer.

Não vou porque de qualquer forma, outra verdade, o problema é meu.

Tomemos o George Clooney. Esse deus da beleza, não é?

Não é. O sorriso - aí sim vê-se que é sorriso, essa parte está boa - mas o sorriso costuma abrir-se mais de um lado que do outro, não sai direito, até talvez fosse uma questão de ele treinar mais vezes, não sei, costuma funcionar.

E depois destas duas pedradas no charco do bem comum estabelecido num caso há cinco séculos no outro há menos de um, não fico nada contente quando faço rimas, as rimas são feias, mas eu tenho pouca arte e nem sei se fiz uma, dizia, não me vou perder, hoje não, que depois destes dois pedregulhos que acabo de lançar, me resta agradecer a todos a paciência, de caminho manifestar a minha alegria porque o TEMPO CONTADO acordou, embora... será que vai voltar?, e deixar mais esta informação, não vá alguém achar coisas:

O Johnny Depp vestido de pirata sim, há ali sainete, ou então o Javier Bardem de toda a maneira, lembro-me agora, desde que se exclua o filme em que limpou o país que não era para velhos e ainda o do zero zero sete, nesses nem quero pensar. 

E pronto, ficávamos aqui.

14/11/2014

A dar sede

Para compensar o incompensável, comi um extraordinário, possante, inchado e estrondoso croissant com chocolate. Quente, como tu.

O momento veio sem eu esperar, era a aula de ginástica que hoje não houve, e eu meti-o, ao momento, na fenda deste final da tarde chuvosa que me lavou a alma, o que eu gosto de chuva. Assim sozinha encho-me de ti sem distracções. Não me sentei, na croissanteria não há mesas nem cadeiras, não há nada senão o essencial. Os fregueses fazem fila mas hoje não havia, a chuva fecha as pessoas em casa. Tirando eu, estava o homem do talho com tatuagens nos braços e avental vermelho para não se notar o sangue, de certeza que é, a deliciar-se com um exemplar destes que já vai a meio, presumo que deve precisar muito de chocolate este homem.

Queimei os dedos com o líquido escuro que sangrava da massa a fumegar e que cuidei não caísse no chão, já me basta tu sei lá onde.

Não tenho a destreza de quem degusta amiúde estes pedaços de mau caminho, eu só lá vou duas vezes por ano. Vagueei então pelas montras ao acaso, vi os sapatos. Detive-me para manobrar mais um fio grosso de chocolate líquido que quer chegar ao chão depois de me revestir dois dedos, não chegou, mas deu-me tempo de constatar que os do tipo matacão ainda se vendem, parecem armários bons para guardar ferramentas. Ou então para caixa de costura se viessem a pertencer à minha avó.

Passei à montra seguinte, a loja dos brinquedos. Nunca tem ninguém e eu continuo a achá-los quase todos inúteis. Quanto mais se desenvolvem para subir no ranking do muito lúdico, menos a criança tem de imaginar. Enfadada estará ao fim do primeiro tempo, natais e natais que acumulo mostraram-me isto.

Ao imergir nestes pensamentos que não servem para nada lá se foi a parca destreza e tive de inclinar a cabeça a quarenta e cinco graus, com urgência, para sorver o chocolate a formar piscina no papel que se está a desfazer, mas não me escapa este néctar, são só duas vezes por ano. Escondi-me atrás da pilha de jogos educativos, que é mais alta que eu, daqui mesmo inclinada vejo as lupas e as redes de caçar borboletas, a torre eiffel de construir e um presépio de madeira que custa quase tanto como as botas que quero comprar, escondo-me da lojista que olha para mim fixamente, não vá ela ter ideias brilhantes e avançar.

Foi aqui que terminou o assunto e eu suspirei. As minhas mãos denunciam na perfeição o que acaba de se passar, ninguém me vê a tricotar meias para bebé. Felizmente a sorte está do meu lado e os lavabos também, de maneira que deslizei lá para dentro e não tomei banho mas praticamente. Pode parecer às pessoas que há exagero, não há. Havia era muito chocolate, muito.

Não sei se este post está a dar sede. A mim costuma dar. Quer dizer, imagino que sim, porque um post destes nunca vi. É único.

És único.

11/11/2014

Castanhas sem gengibre

Dei a reunião por concluída às quatro e meia da tarde e regressei com o computador ao colo para a secretária, em cima da qual está um pacotinho com quatro castanhas assadas dentro e lembro-me de repente que hoje é dia de São Martinho.

Primeiro devolvo a alimentação ao pêcê que estava exaurido de todo, coordena-se isto bem com a duração da reunião e é no que dá, e depois trato das castanhas. Quatro dá para pensar muito.

Acho que a minha casa está a ficar farta de mim, com certeza isso é possível. Eu própria, que sou eu, também de vez em quando fico.

O batente da porta da casa de banho do fundo do corredor descolou-se e está de costas voltadas, uns nervos. Não lhe mexi.

O ferro de engomar, que passa demasiado tempo na minha mão, tinha uma pecinha de plástico muito fininha que nas instruções dizia ser muito importante e que se partiu. Se era importante não devia ser fininha, isto é fácil, mas já cheguei tarde com a minha opinião, portanto o ferro deixou de o ser, nem para combater a anemia serve, lixo. De caminho levei uma cadeira velha, ai que bem me soube, e a alguém também, que já a foi buscar. Geralmente gosto mais de deitar coisas fora do que de comprar novas.

Que boas estão as castanhas, já só me falta uma e ainda não pensei tudo.

No outro dia não percebi nada do que o taxista de Delft me disse no caminho da estação de comboios para o meu destino, que ficava a dois quilómetros e seiscentos metros e demorava nove minutos, foi o que me valeu, e vamos lá, esta parte percebi. Mas a seguir não, bem me estiquei e acenei com a cabeça, nada. Será de mim? A ver se era de mim, pus-me eu a falar o resto do caminho e o que eu disse percebi tudo. Não era de mim.

Calada agora, que não está aqui ninguém para me ouvir, deito fora as cascas das quatro castanhas e decido ir para casa.

Mas primeiro passo no centro comercial para comprar um ferro novo. À porta, está uma comprida fila de gente, mesmo junto à senhora do carrinho das castanhas. Bolas! (sorrio cá comigo a pensar “não podem ver nada!”)

E então lá me lembrei, outra vez de repente, que hoje é dia de São Martinho.

Estava difícil.

(mas não tanto como arranjar títulos para posts: o gengibre quis vir, coitadinho, e eu deixei)

10/11/2014

Uma ideia

- Outra vez às escuras?!

Não são poucas as vezes que oiço esta pergunta. E nestas não poucas vezes, encontro-me na copa de uma árvore, sentada, a baloiçar os pés e a pensar que sou um pássaro fugido de um quadro do Cruzeiro Seixas.

- Não estou às escuras, se estivesse não me tinhas visto aqui – respondo.

É que isto irrita-me. O facto de haver um interruptor de luz na parede não obriga o visitante a accioná-lo, isto deve estar escrito num lado qualquer, de certeza que está, e se não estiver está agora aqui, que também é válido.

A copa onde estou não é a da árvore, isso foi bug a meter-se connosco, e Cruzeiro Seixas apareceu porque é arte que não aprecio, tal como esta perguntazinha. Refiro-me, isso sim, à copa que dá para o refeitório onde costumo almoçar e que tem a máquina de café que uso duas ou três vezes por dia, depende de circunstâncias. Esta copa recebe luz natural que entra pelas enormes janelas da parede oposta do refeitório e recebeu logo na origem, aplicada no tecto, uma luminária de mau gosto e luz branca duvidosa do tipo câmara dos horrores que, uma vez acesa, confere um tom esverdeado aos rostos de quem ali está, não há maquiagem que nos valha, e distribui sombras fantasmagóricas por todo o lado. 

Eu acho que na pausa do trabalho as pessoas têm direito a um momento de repouso mental, um recolhimento à penumbra mais um menos sinuosa do pensamento, o que interessa isso, uma visita a memórias quentes, um refrescar de cansaços antigos, numa palavra, acolhedor.  

E isto enquanto a chávena acolhe o café que corre borbulhante, libertando o seu aroma insuperável de bom que é. Qualquer pessoa entende isto, mesmo as que não bebem café reconhecem-lhe a superioridade do aroma.

Dependendo do meu interlocutor, se é muito ou pouco de iniciativas, muito ou pouco observador ou muito ou pouco aberto a diferentes abordagens dos gestos habituais, posso ter de repente a luz acesa a queimar-me o cérebro como se estivesse há oito horas na sala de espera de um centro de saúde com cheiro a clorofórmio e muita ansiedade.

Portanto neste escorvar de semana, caso a qualidade da descrição acima não esteja ao nível do aroma do café, o que pode perfeitamente acontecer - arquitectos, por falar nisso, cadê vocês? - cá está mais uma fotografia. Imagem colhida este sábado num bar que de acolhedor tem tudo, se situa algures nos Países Baixos e que trago aqui hoje para desejar a todos não um bom natal, lá iremos, mas uma boa, e porque não acolhedora, semana. Voilá.


Acho que dá uma ideia.

E se uma não der, dão duas.

07/11/2014

Cabeçadas no vidro

A minha secretária anda sendo visitada por formigas vivas.

A taça dos rebuçados que compro porque me trazem a cor que os objectos do trabalho carecem ou porque gosto de ver os meus colegas relativamente comprometidos a virem tirar um rebuçado mesmo que não queiram nada comigo ou então trouxe a ideia de uma reminiscência da infância, até é bem capaz de ser isto, mas a taça. É alta e elas não a viram ainda, as formigas, o que me traz a contar os dias, são experiências.

O que há de estranho nisto não é eu vir aqui escrever uma coisa que não tem interesse nenhum.

Se contasse que uma vez vi uma abelha entrar-me pela janela da cozinha, voar para debaixo da mesa, fazer-me ajoelhar porque lhe quis seguir a rota de voo (não podia dizer que lhe seguia os passos, isso sei eu) e acabar vendo-a desaparecer no alvéolo por onde tinha entrado um grande parafuso que segura o tampo a uma perna, acho eu, e depois voltar a sair, o que seria das pessoas? Talvez quisessem mais, mas também podem ficar já nesta paragem. 

Ora a abelha sai do casulo, estando lá dentro não a vejo, e voa janela fora, desaparece.

Levanto-me e fico ali um pedaço a observar as coisas, olho em volta. No chão, por baixo do local onde se aloja o parafuso há muitos anos, há um material amarelado que parece esponja desfeita. Apanho-o e vejo logo quem tratou de fazer aquele serviço.

E quem tratou de fazer aquele serviço está a entrar-me pela janela aberta uma vez mais e a ir direitinha sem instruções de voo fazer-me ajoelhar de novo e outra vez meter-se dentro do cilindro escuro onde jaz a cabeça do parafuso referido, não sei se estamos todos a visualizar a situação. Eu não tenho jeito para fotografia, mas se tivesse não ajudava muito, estimular a imaginação das pessoas é que é, a ver se dá.

E não sei quantas vezes me ajoelhei, mas a brincadeira repetiu-se e a esponjinha amarela desfeita continuava a cair do alvéolo, não queria lá ficar.

Idas e vindas, continuámos assim um bocado. Ao ver-me sozinha de novo, numa ida, fechei a janela. Apanhei os restos de esponja e reservei para mostrar à família os vestígios de uma aventura destas. 

Antes de seguir com o meu dia e não sem hesitar, olho para a janela e vejo a abelha à procura do local por onde tinha entrado. Até me parece que deu uma ou duas cabeçadas no vidro.

Não tornei a abrir a janela e isso não foi bonito. Mas também não o seria acordar um sábado de manhã com uma legião de abelhas acabadas de nascer em casa. Melhor nascerem noutro sítio.

O que há de estranho nisto não é eu vir aqui escrever uma coisa que não tem interesse nenhum.

O que há de estranho nisto é eu gostar das formigas que passeiam na secretária onde trabalho e não as matar nem nada.


(e estava para ir dormir, mas de repente leio uma coisa e arrepio caminho – dá-me saudades não poder comentar naquele blogue, dá dá, saudades e inclinação para escrever uma coisa que não tem interesse nenhum)

05/11/2014

Duras e lindas

Quando saí do trabalho já não estava ninguém no edifício. Os corredores que atravessam a área administrativa estariam já mergulhados na escuridão, não fosse o rectângulo luminoso do ecrã da fotocopiadora, que nunca dorme. Não sei bem onde se acendem as luzes depois de toda a gente sair, mas não é preciso. Continuei sem abrandar, liguei o alarme e saí nos sessenta segundos de tolerância antes de começar a sirene aos uivos. Tranquei a porta com a chave, dei duas voltas e entrei na noite.

Na rua o trânsito engrossou e o termómetro do meu carro marca treze graus. O outono conseguiu furar o verão e fazer-se sentir. Finalmente.

Mergulhados na escuridão, disse eu sobre os corredores. Se fosse nevoeiro, estariam envoltos, tenho a certeza. E se fossem mudar de emprego, haviam de ir abraçar um novo desafio. Há palavras que quando casam nunca mais se largam. Devem ficar felizes para sempre, não te parece?

Mas eu ia dentro do carro e agora não quero voltar atrás, os treze graus vão fora, ai não, não entram, escuridão por aqui também não há porque os néons e os automóveis cortam-na em pedaços demasiado pequenos para mergulhos. Ao longe vejo um relâmpago iluminar o céu, fica dia durante um milisegundo, p'raí, o que não tem graça nenhuma. Desde que um relâmpago por pouco não me caiu em cima há umas semanas, fiquei com medo. O carro é que apanhou com ele tão certeiro que lhe fez saltar a ponta da antena, descarregar a bateria, coisas assim engraçadas num carro, eu já te contei isto. Mas entretanto recuperou – a bateria, a ponta da antena ainda não – e tem andado bem, dentro dos limites da velocidade.

Entretanto com a conversa, quase me distraías, já cheguei a casa e vejo-me em preparos para a aula de dança. Torno a sair para a rua e cruzo-me outra vez com o rapaz que passeia os cães. Deve ser a pessoa que mais encontro casualmente, hoje trazia dois grandes e dois pequenos e vinha a sorrir. Parou para me dar os dois beijinhos da praxe e os cães às voltinhas, a arfar, a esticar as cordas em direcções estranhas, cada um na sua, Renato, és tu que os passeias ou levam-te eles a ti? está a ficar frio, adeus, prazer em ver-te!

A professora de dança diz que estamos todas moles, como é possível isso? manda-nos apertar imensos músculos como se tivéssemos onze anos, e depois vamos ficar duras e lindas, ela é que sabe. Obedeço e esqueço-me que já aqui vou, os onze anos multiplicaram-se por quatro já lá vão dois, não preciso de pausa para fazermos as contas, e a vida, que segue depressa, vendo bem, é cada vez melhor.

Mas sempre quero ver no fim da operação duras-e-lindas. Se até lá os relâmpagos me passarem todos ao lado, claro. Estás a perceber, não estás?

02/11/2014

De chumbo

Gosto muito mais de café que de chá.

Só bebo chá por interesse. Quando tenho frio. Ou então quando não tenho nada para fazer, o que na verdade não sucede há décadas, acho mesmo que nunca sucedeu, mas era para compor o parágrafo.

Não é que hoje tenha tido frio, que o outono anda a brincar ao verão, mas pus-me a beber um chá de jasmim e morangos, verde e branco não sei se às riscas. O que me causa espanto no mundo do chá é a infinidade de combinações que se podem fazer, e que resultam numa infinidade de sabores, embora sempre todos bastante insipidozinhos, mas vejo muitas vezes, perante uma recheada e colorida prateleira de supermercado, o meu braço direito esticar-se em direcção a uma nova caixa de chá com novos frutos de imaginações férteis, tomara eu.

(a fotografia ajuda ao crédito da afirmação, veio o chá da Holanda, e eu não me importava nada de ter jeito para a fotografia de objectos que até costumam ficar quietos)


E ponho-me nesta conversa que não estava para ser o mote, mas motivos escondidos me levam a escrever um post quando bebo chá, porquê não sei.

O mote era Schubert, oiço milhares de vezes a Ave Maria que ele escreveu e tenho sempre pena que ele tenha morrido tão novo, se tivesse chegado aos trinta e dois, havia de ter ensinado os pássaros a cantar-lhe as músicas, acho eu.

Quando eu tinha filhas pequenas, tinha também um carro pequeno que um dia se lembrou de não deixar sair o CD que estava metido dentro do leitor. Calhou esse ser um CD de Schubert e eu não censurei o carro mesmo nada, até gostava muito dele.

Quando eu tinha filhas pequenas, tinha o tempo também pequeno para levar o carro à oficina só para o fazer devolver-me o CD que ele tinha engolido. O facto de ser possível ouvir o CD vezes sem conta não me motivou por aí além para ir à oficina no meu pequeno tempo. No entanto, à medida que as semanas passavam, os protestos que vinham do banco de trás aumentavam consideravelmente.

- Minhas queridas, esta música, oiçam bem, é linda, é a Ave Maria de Schubert. A tia entrou na igreja ao som desta música - tentei.

Quando eu tinha filhas pequenas - dizem que a repetição das coisas dá muita tranquilidade e eu estou a fazer fé nisto - fui à oficina tentar que um mecânico com muita arte convencesse o carro a devolver-nos o CD de Schubert, visto já o ter deglutido há nada menos que quatro meses, lembro-me bem porque fiz as contas.

Aproximei-me do balcão. De cada lado levo uma filha, a mais nova tem cinco anos.

- Boa tarde, trago aqui a parte frontal do rádio do meu carro, vê o senhor? Este rádio tem lá dentro um CD já há um tempo (omiti a parte dos quatro meses para não manchar a minha imagem) e o CD, embora toque normalmente, não sai nem que a vaca tussa (não tenho a certeza se falei na vaca, mas lembrei-me agora de o fazer e que bem ficou).

Antes que o homem de fato-macaco azul atrás do balcão pudesse responder, oiço do meu lado esquerdo a voz de cinco anos dizer muito depressa, a miúda em bicos de pés para estabelecer contacto visual com o homem:

- Ó senhor, por favor! Arranje o rádio que eu já estou farta da Ave Maria de chumbo!

(o rádio não ficou arranjado dessa vez, foi preciso outra oficina e muita paciência, mas não da minha parte, que eu nunca me farto)

29/10/2014

Corações de Portugal

Não sei onde eu estava com a cabeça quando aceitei o copo que me ofereceram há anos na estação de serviço da BP.

Beber água, leite ou mesmo cerveja num copo alto com o logótipo da BP não mata bem a sede, nem que haja um prato com tremoços por perto. Também tentei chá, vinho tinto e só falta sumo de dióspiro, mas não acredito. Beber por copos a invocar combustíveis para automóveis, motociclos ou carrinhas de caixa aberta não é boa ideia, isso qualquer pessoa vê.

Digo que não sei onde estava eu com a cabeça, porque geralmente não aceito ofertas do tipo quer-aproveitar-a-promoção-e-com-quarenta-litros-de-combustível-leva-uma-caixa-de-pastilhas-elásticas-que-lhe-dão-para-a-vida, claro que não. Cartões de pontos ou outras inutilidades que nas lojas se oferecem com entusiasmo, sacos de praia, chinelos cor de rosa, óculos muito feios e bolsas que não servem para nada. Detesto. Rejeito tudo.

Tirando isto costumo ser pessoa razoável. No entanto, como já tenho dito, há limites.

Continuo a não compreender a ideia que animou pessoas com a responsabilidade de tomar decisões sobre frutas, de se colarem etiquetas em forma de coração ou outras, mas a de coração é pior porque se rasga sempre, nas maçãs que nascem em Portugal e depois vendem aquilo assim, com chancela à laia de pedigree que não tem graça nenhuma. Havia de se poupar papel, tinta, o trabalho de colar aquelas porcarias, o trabalho de as descolar e ainda os efeitos secundários que a ingestão de cola terá na população que come maçãs com casca e que se irão reflectir após muita maçã; parece que já estou a ver a abertura do jornal das oito lá para dois mil e vinte e três, os jornalistas hão-de chamar-lhe um figo, apesar de terem sido maçãs.

Maçãs mas não só e é isto que me traz aqui hoje.

Ao fazer alegremente uma salada para o jantar, descubro que a ideia que animou as pessoas mencionadas acima já se espalhou por mais áreas de intervenção. Isto traduzido por miúdos e não para miúdos, ou vindo do todo para a parte, corrijo, partes, que não foi só um, é o mesmo que anunciar não sem indignação que também já se colam corações de Portugal nos tomates.

Coisa muito engraçada de se fazer, não digo que não, no caso de lhe reconhecermos préstimo. Os tomatinhos são lindos, doces e suculentos sem coraçõezinhos colados, como toda a gente sabe. Portanto eu agradecia imenso a quem puder informar, que me esclarecesse sobre esta matéria, não sendo incómodo de maior.

Eu cá, a seguir ao próximo ponto final levanto-me, vou ao armário, pego no copo da BP e ponho-o no contentor do vidro, acabou-se.

26/10/2014

O presente

Preciso de te encontrar. Saí de casa, entrei no centro comercial e subi ao andar que tem o café de que gosto mais. Tomei um mas pedi dois, o outro é teu, comi um chocolate em forma de caracol que se derreteu um bocadinho nos meus dedos e o que tinha forma de flor embrulhei e meti-o no bolso.

Saí do café e entrei na loja em frente. Dentro, já está o natal a chegar em construções coloridas, luzes a piscar e jingle bells a soar. Toquei no brinquedo que tinha bonecos de coro com bocas abertas e pessoas a deslizar para dentro da igreja e a sair do outro lado, num círculo inventado que me aqueceu as recordações dos natais da infância, onde tudo brilhava no meu pequeno mundo. A janela de quatro vidros na parede de massa fingida, descobre uma luz amarela que cintila dentro. Acolhedora na imaginação que teço, nas jarras já secaram as flores de um verão, mas as suas cores fazem o natal mais cedo. Em redor da igreja e do coro que não sai do mesmo acorde, há neve caída no chão e a noite caída aqui. Posso ajudar? não obrigada, vinha à procura de uma pessoa. Preciso de te encontrar.

Desci ao piso de baixo e sentei-me no banco de madeira ao fundo das escadas, entre uma família que dava papa ao bebé e outra família que dava papa a outro bebé.

Fico a olhar as pessoas que passam e o tempo também passou. Os bebés comeram as papas, cresceram, as famílias mudaram, alguns velhos morreram, outros, velhos ficaram. Eu continuo sentada, são dias ou serão meses, talvez o infinito esteja aqui; tenho medo que seja natal outra vez e eu ainda não te vi.

E então, para descansar da saudade, fecho os olhos. Na minha mente tão presente, está o presente que és para mim.

25/10/2014

Gordura antiga disfarçada com lixívia ou a marcha nupcial

Pus a tocar "Spiegel im Spiegel" de Arvo Part (Part leva trema em cima do "a" mas o meu computador não tem, já me fartei de procurar), havia ainda tanto trabalho para fazer e o cansaço anda a correr atrás de mim, mas tenho conseguido desviar-me.

O problema é que o Arvo Part é coisa para nos soltar a alma cá de dentro se não nos pomos a pau e eu esqueci-me disso. À laia de aviso, adianto que tão nucleares são estes acordes que se entra em modo zen num instante, há que ter cautela em situação de condução de máquinas ou outras que requerem estado de alerta, como por exemplo na caça ao javali. É que começa a desenvolver-se cá dentro, por causa da música, uma espécie de construção que se enrola devagar no centro nevrálgico das células primordiais e depois se transmite às outras, entorpece primeiro as mãos e o pescoço e eu levantei-me e fui tomar um café.

A cantina está vazia a esta hora da manhã. Sentei-me a uma mesa qualquer com o meu café a fumegar, a tentar em vão aromatizar a atmosfera que cheira sempre a gordura antiga disfarçada com lixívia, coisa que na minha idade já se aceita. A dona Esmeralda esmera-se mesmo, lá limpas estão as mesas, muito postas em ordem a reflectir a luz da janela do lado oposto a este em que me sentei e que as faz parecerem brancas, o pior é que agora não me lembro de que cor são. Se tivesse sido eu a decorar esta cantina não faria assim. Havia de haver Armanda Passos na parede, e José de Guimarães, ao centro uma cópia da última ceia de Da Vinci para estimular o apetite, havia de tocar Mozart e Mendelssohn durante a refeição, em vez de se ouvir a televisão aos gritos. E eu já não precisaria de me curar com Arvo Part, a verdade é essa.

Mas há outra: estou muito contente por ter acabado a semana. Amanhã vou dormir até acordar e depois vou comprar um vestido muito bonito.

(sobre Mendelssohn, descobri que muita malta se casa com a marcha nupcial e não sabe quem foi o seu compositor, pode, isto?)

22/10/2014

Esplendor de implantação

Fiz uma lista e depois dobrei a folha de papel. Meti-a no bolso.

Olho pela janela e noto uma fileira de luzes vermelhas ao longo da pista onde o avião acabou de aterrar. Não me lembro de as ter visto antes, serão certamente arranjos para decorar o natal, se é que o natal se pode decorar. Eu decoro muito bem as matrículas dos automóveis, tenho esta mania desde os cinco anos e ainda não me livrei dela, às vezes cansa imenso, detesto automóveis.

Dói-me a barriga. Devo ter engolido um montão de neutrinos quando fotografei o nascer do sol. Estava cansada outra vez e irrita-me estar cansada, fico com tendência para me queixar e fazer listas de coisas que não gosto. Volto a tirá-la do bolso, ainda dá tempo de a reler. As hospedeiras da TAP dizem Ladies and "Gémen" (ponho maiúscula, mas é capaz de ser sem), só uma vez é que ouvi uma pronunciar bem a difícil palavra gentlemen. Sorri-lhe com uma inclinação de cabeça muito respeitosa antes de sair, boa noite.

Também seria tão bom se os jornalistas da rádio dissessem legislação, "leslação" enerva.

Mas não são só eles. Uma vez perguntei a uma pessoa que gosta de contar as suas aventuras a conduzir no auto-estrada (sim, no auto-estrada) se também de vez em quando gosta de conduzir no estrada; a pessoa olhou para mim como se eu fosse um borrego morto ou tivesse dito frigorífico em grego e não respondeu, desconfio que me odeia um bocado.

Não nos deixemos ir no engano de pensar que eu não meto argoladas, meto muitas, até costuma ser uma especialidade que não fica nada atrás do caril indiano, mas ao menos digo constitucional muito bem.

Por exemplo, não combino a mala com os sapatos a menos que esteja distraída, e também não compro mobílias a condizer umas com as outras a não ser que goste mesmo muito de as ver juntas. Combinar tudo é monótono.

E para terminar, que estou mesmo a precisar de sair daqui e respirar ar puro, fica esta a fazer fé no que afirmo acima, para compor o post que está nuzinho nuzinho (não, não me envergonho, só me dói a barriga):

Tinha nove anos de idade e como toda a gente de nove anos de idade à época, fui levada pela minha mãe ao arquivo de identificação tratar do bilhete, agora já és crescida, vês, treinaste a assinatura? Eu um bocado nervosa com medo de rasgar o papel como já me acontecera no caderno da escola, assinei devagarinho e de repente reparei numa coisa muito interessante, que me fascinou. O papel amarelado que eu estava a assinar chamava-se Bilhete de Identidade. Li duas vezes para confirmar: era mesmo Bilhete de Identidade.

E não Bilhete "Dentidade" como eu sempre ouvira pronunciar (mãe, nem tu dizes isto bem, confessa) e que eu vagamente achava estar ligado à questão da segunda dentição que, aos nove anos de idade, estava em pleno esplendor de implantação em toda a gente.

Aborrecido, não é?


(a fotografia do nascer do sol confirma tudo e está grande para se ver muito bem)

21/10/2014

A aula

Na minha nova aula de dança há mães que levam os filhos pequenos. Recomendam-lhes silêncio e permanência no canto onde os depositam, por hora e meia, quietos. Enfiam-lhes um tablet na mão e mostram o indicador vertical em frente aos lábios.

Dez minutos depois o menino Serafim, que há-de andar pelos seis anos, precisa de passar de nível ou qualquer coisa do género lá no tablet e invade o campo onde nos esforçamos para alongar o pescoço; a mãe respectiva acode a correr, acocora-se, fazes assim, querido, olha, ensina-o como fazer e torna a suplicar pela dose de silêncio que se esgotou em menos de um fósforo. O miúdo regressa ao banco dos suplentes a caminhar devagar, rosto paralelo ao chão e ao tablet, vai cansado.

Agora vem ali a miúda a quem perguntei a idade ao chegar, tenho sete anos, em rota de aproximação apontada a outra mãe, com o respectivo aparelho electrónico que lhe causa espanto e leva bloqueios, traz a urgência da idade, para não falar em outras urgências que não me assistem, mãe como se põe naquilo de ontem, e a mãe acorre, solícita, afaga-lhe o cabelo, já está de cócoras, é assim, já te disse, clicas aqui, vês, agora vá, volta para o pé da tua irmã.

À terceira invasão do campo, a professora dá um grito de comando ao Serafim, que vem a rabujar e ainda falta uma hora de aula, o relógio de parede só marca vinte e trinta, ó mãeeeeee, a mãe acode a esta nova aflição, ignora o grito de comando autorizando o filho a ignorá-lo também, abraça o petiz, meu amor, é só mais um bocadinho, olha, joga este, vai lá.

Agora a professora falou alto para a mãe e disse que se está a irritar. Com olhinhos tristes e cabeça enfiada nos ombros, corre a mãe do Serafim de volta à sua posição, com passinhos pequenos, como se criança fosse.

Olho em volta para as outras, as não-mães, ninguém parece importar-se. Devem estar habituadas, aqui a recém-chegada sou eu.

Portanto fiz mal. Em vez de ter esperado tantos anos que as minhas filhas crescessem antes de regressar aos ginásios, podia tê-las levado comigo, haviam de me ter dado um jeitão a costurar uma meia, a pregar um botão ou, em dias mais apertados, a adiantar ali mesmo a preparação do jantar com as dicas que eu lhes podia ir gritando.

Hoje seria uma mulher muito mais em forma.

E talvez não me inquietasse com o futuro de uma sociedade desfocada pela ausência de fronteiras que delimitam os lugares de uns e de outros, que preservam os tempos para as refeições e o sono das crianças, que mantêm firme o direito à não interrupção de uma aula, seja ela de que natureza for.

Por isso não se admirem, mães, se os professores dos vossos filhos vos disserem que eles são insubordinados, que interrompem, que falam constantemente, que não sabem respeitar uma aula.

14/10/2014

Bebe-se bem

Estou aqui estou, não a almoçar, que já não são horas disso, mas a vender o carro e acabou-se.

Aborrece ter muitos quilómetros a percorrer e depois um avião para apanhar e o raio do raio que caiu em cima do veículo, vindo do céu aos ziguezagues, que até lhe ouvi o zumbido, verdade que ouvi, destruiu a ponta da antena. Por conseguinte música agora nem vê-la, por acaso vê-la sempre foi difícil neste carro, mas pelo menos ouvi-la é que era, e depois foi a bateria que estava a dormir a sesta aconchegada debaixo do capot e o raio do raio, como digo, comeu-lhe a carga inteira, só deixou as cascas, e agora? Agora chove o céu todo de uma vez, o homem do reboque liga a dizer estou com medo de ir aí, não percebo nada desses carros, ai a minha vida, está com medo o quê, venha lá pela sua saúde e pela sombra que agora nem há outra hipótese, temos um avião para apanhar, está a ouvir não está, e ele então veio, apareceu na estrada a um palmo do meu nariz que a visibilidade deixada pelo nevoeiro não era mais nada, isto é capaz de estar um bocado confuso, mas é a verdade praticamente toda, ficando apenas a faltar a matrícula da viatura que eu punha aqui se me apetecesse.

Portanto estou aqui estou, não a comer, que é a beber um chá calmante que me encontro, mas a vender o carro. Chá marroquino, é novo.

Na sexta feira, por exemplo. Foi preciso comparecer em sítios bons para ir de metro e eu compareci. De metro, metro e mais um bocadão se me encontrar de pé.

Mas sentei-me, havia lugar. No colo dele, à minha frente, atenção à pontuação, é ler direitinho, repito, no colo dele, à minha frente, um bloco de desenho, ou melhor, em cima da perna um bloco de desenho, na mão um lápis, na ponta do dedo uma borracha incorporada na pele. Catorze anos tem este miúdo, não lhe dou mais. Tem um rosto negro, sereno, está concentrado, alheado de aqui e de agora, veste uma sweat-shirt que tem estampado o nome de uma universidade americana. Está um olho desenhado no papel. Sendo daqui um olho ao contrário, parece-me bem desenhado. Olho, agora eu, em redor, a tentar reconhecer o modelo. Vejo muita gente mas vejo ninguém, não está aqui. À minha frente, a cabeça ligeiramente inclinada, concentrado no desenho que progride avenida fora, debaixo do chão, nascido nas entranhas de Lisboa, vejo aparecer um nariz. Este nariz é de alguém? apeteceu-me perguntar. Não. Fico quieta a observar o quadro e vejo que é amor em desenho. Agora estão a aparecer os lábios e ele finge que apaga um risco a mais, com o dedo desliza-lhes por cima, mas eu sei o que é, a cabeça inclina-se para o outro lado, ligeiramente, observa melhor. A rapariga que para mim está ao contrário parece ter os olhos a brilhar e desejo intimamente que ela também desenhe assim os lábios de chocolate dele. O rosto transferido da memória para o papel está quase completo quando me levanto para sair. Levo para a rua um sorriso neste rosto que alguém um dia fez para ser meu, um sorriso que me foi posto aqui na alma, dentro do metro, como se acaba de ler. Portanto agora digo umas coisas.

O chá marroquino bebe-se bem é uma delas. A outra já sabemos.

(a parte mais difícil de escrever num blogue é arranjar títulos para os posts - fica mais esta, que ainda não tinha dito)