a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

21/04/2018

Fogo de deus

Eu já tinha visto - tenho andado a reparar que os posts que mais gosto de ler nos outros blogs usam muito pouco, ou nada, a palavra eu, ao contrário de eu - mas vamos lá, já tinha, então, visto o nome dele na lista de participantes. Por isso ontem, quando me sentei para a reunião da tarde, não me admirei de o ver entrar. Envelheceu muito. Era um senhor - ainda é - um senhor de porte direito, alto, voz grave e olhar tranquilo, sabedor. Era ele falando e todos os restantes, eu incluída, atenta, sentada na audiência, a ouvi-lo. Talvez até que se lembre vagamente da minha cara, de quando, há quantos anos, o interpelei no intervalo, lhe fiz perguntas, me apresentei. Vinha a entrar na sala, devagar, um nada curvado, procurando obter um lugar que ainda estivesse vago. Ajeitei a cadeira vazia ao meu lado e indiquei-lha interesseiramente: eu (quatro) queria usufruir da sua companhia nos trabalhos da tarde. Agradeceu e sentou-se. Puxou do seu pequeno computador, meteu-lhe uma drivezinha daquelas de apanhar internet e já parcialmente descontinuadas e começou a dedilhar as teclas. A sessão decorria aos arrancos, que os temas discutidos não estavam de pleno consenso. Aborrecida pelo pouco fluir dos trabalhos, olhei pelo canto do olho para o que ele fazia - dedilhava agora no smartphone que tinha na mão - eram mensagens para uma menina cuja foto eu (sete) podia ver. Quedei-me talvez tempo demais na observação - ele notou. Inclinou-se ligeiramente para mim e disse-me em voz baixa, quer ver a mensagem da minha neta mais nova?, quero, claro que quero. Era uma mensagem de amor que pude eu também ler intrametida nos trabalhos da tarde.
No fim, enquanto nos levantávamos, e a propósito da palavra pirómetro que tinha surgido e ainda pairava, fogosa, objeto de uma derradeira discussão, diz-me sem eu perguntar que "piro" quer dizer fogo e por conseguinte dióspiro é o fogo de deus, diós, deus, piro, fogo - se eu sabia isto? não, claro que não sabia, por isso é que quem puxou a cadeira para ele se sentar ao meu lado logo no início da tarde fui eu (onze).

11/04/2018

Há, mas é verde (e não muito original)

Saí para a rua com o guarda-chuva (sai um guarda-chuva) de recurso. O guarda-chuva de recurso é verde, feio, grande e torto. O feio vem de ser verde, obviamente, o grande vem de origem e o torto das intempéries a que tem sido sujeito quando os guarda-chuvas efetivos desaparecem todos misteriosamente (é o caso). Não satisfeito com isto, o guarda-chuva de recurso ainda compreende uma pega completamente user-not-friendly-at-all. Isto quer dizer alguma coisa. Quer dizer que devido à sua forma cilíndrica, não se consegue pendurar o dispositivo (para não repetir guarda-chuva) em lugar nenhum: a pega ocupa por isso uma mão inteira. Mas como tinha logo hoje de ir comprar um esquentador novo, eu fui. Eu e o guarda-chuva. Entrámos na loja dos eletrodomésticos e eu disse quero um esquentador se faz favor. Durante toda a discussão relativa às potencialidades dos esquentadores que ali estavam disponíveis e a subsequente tomada de decisão sobre qual deles levar para casa, o guarda-chuva manteve-se a ocupar-me toda uma mão. E para proceder ao pagamento? Aí, o guarda-chuva encostou-se entre a caixa de um aquecedor a óleo e o balcão, sem escorregar pelo chão fora como ele costuma sempre fazer, ou seja até aqui tudo bem. Ora uma pessoa como eu não vai assim para casa sem mais nem menos após comprar um esquentador novo, uma pessoa como eu vai ainda tomar um cafezinho no cafezinho preferido dela. Se calhar é melhor explicar que o esquentador ficou na loja; ele vai depois lá ter com o instalador, isso está prometido. E voltamos ao café onde está então uma pessoa como eu a tomar um ao balcão. Não dispondo porém este balcão de meios para amparar o guarda-chuva verde feio grande e torto sem escorregar por todo o lado, teve a pessoa que acionar o plano B e o plano B consistiu em prender o objeto (para não repetir guarda-chuva) entre as pernas na parte em que precisou de fazer uso de ambas as mãos no manuseamento da carteira para proceder ao pagamento do café. Ora o friozinho da água da chuva que ainda se encontra agarrada ao tal objeto, chegou-se às pernas da pessoa e a pessoa o que fez? A pessoa claro que espirrou!

Portanto vamos já diretamente para a loja do chinês onde se vendem também, para além de pregos, escadotes, quadros em cortiça, alguidares, ganchos para o cabelo, telas para pintar quadros muito bonitos (mas desconjuntam-se, as telas desconjuntam-se quando a pessoa as tenta enfiar no carro, ouvi dizer), brincos, capas de plástico e caixas de todos os tamanhos que não se sabe para que servem, fones de várias cores, pijamas, sandálias, tesouras, malas de viagem, umas coisinhas brilhantes que também não se sabe para que servem, isto só para dar um ou dois exemplozinhos, onde se vendem também, evidentemente, guarda-chuvas. Pequeninos, enfiados neles próprios, com capinha de proteção a condizer, e atenção!, botão de abrir e fechar automaticamente! A cereja no topo do bolo é, pois claro, a fitinha de pendurar no pulso, muito jeitosa, tudo por uma meia-duzinha de euros e ainda com direito à demonstração, pelo próprio chinês dono da própria loja, do funcionamento do sistema de abrir e fechar automaticamente. Pá, quer dizer, está comprado. 

08/04/2018

Ah, mas são verdes

Então ela falou no verde, a sua cor favorita. Juntou-lhe, ao verde, ao seu verde, um conceito dadaísta de joia, de criação. Um conceito, frisa. Há infinitos conceitos de joia, basta perguntar qual é o teu. O que diz a tua joia de ti? Neste seu trabalho, e dos seus colegas, os jovens artistas não vão criar. Desta vez vão contar a história que uma sua joia encerra. A meu pedido leu em voz alta os textos que trazia, uma compilação de doze artistas em formação, entre eles, ela. Fazia pausas perguntando se me estava a maçar, ou se devia continuar. A minha filha, sua amiga desde a infância, responde por mim: continua, a minha mãe está a adorar.
Quando Talissa acaba de ler, está formada na minha mente aquela que deve então ser a minha joia favorita. Não a uso há muito tempo. Por isso, enquanto os legumes ainda se aconchegam uns nos outros nos calores da wok, a minha filha a dar conta das almôndegas e da massa para o nosso almoço, corri ao quarto. Abri a caixa de metal e de lá retirei o comprido colar de contas de vidro que herdei da minha avó. As faces planas das contas refletem inúmeras cores que se veem melhor erguendo o colar à luz da janela. Olhá-las faz arder um bocadinho os olhos e ao mesmo tempo hipnotiza um pouco. Depois, reparei num outro colar na caixa. Tem contas verdes, maiores que as de vidro. Cada conta está retida numa larga malha metálica. Nunca o usei: o verde não é para mim. Regressei à cozinha com os dois colares nas mãos. Primeiro apresentei-lhe o de contas de vidro. Vês Talissa, o teu trabalho e dos teus colegas acordou esta joia na minha mente, talvez seja então a minha favorita. Ela riu-se e depois ficámos em silêncio a olhar o colar deixando-nos hipnotizar um pouco. A seguir, com muito jeitinho, abri o colar das contas verdes, gostas deste? Gosto muito! Expliquei-lhe que ele nunca tinha saído da caixa. E que para lá vai voltar e ficar uma vez que não uso verde. Que triste destino para um colar de contas retidas em malha, não te parece Talissa? Então, depois de argumentar muito bem, fazendo-a imaginar o colar servindo apenas para sempre de companhia, dentro da caixa, ao de contas de vidro, à pregadeira em vermelho, à medalha de madrepérola que a minha mãe trouxe há muito tempo de uma viagem, então consegui convencê-la a fazê-lo seu. Ficou feliz, eu também e as contas verdes quem sabe. Quem sabe o que vão, por ela, com ela, contar.

(O que diz a tua joia de ti?)

04/04/2018

Atendimento

Faltam seis números para a minha vez. Dentro da sucursal do banco o ar está pesado mas ainda consigo inspirar fundo. Se o fizer várias vezes seguidas começo a ficar tonta. Decido não esperar mais do que quinze minutos. Há muitas pessoas à espera, os seis números à minha frente destinam-se ao mesmo assunto que eu, mas o menu de atendimento tem mais assuntos possíveis, é eletrónico. Noto que as pessoas que entram demoram-se a ler o menu antes de selecionarem a opção no ecrã tátil. O sistema é novo na sucursal. Acabaram de entrar alguns ciganos: uma mulher, dois homens e um adolescente. Conversam baixinho.
Logo depois, chega a minha vez. Sou atendida por uma funcionária que parece feliz por ali trabalhar. Sem saber, empresta-me alguma energia. Recebe-me com um sorriso e palavras frescas. A seguir, toma tempo para responder às minhas questões, faz as três operações que lhe peço, uma delas demorada. Pede desculpa quando interrompe para aclarar a garganta bebendo um pouco de água da garrafa de plástico que tem em cima da secretária, mesmo ao lado da máquina de contar notas.

03/04/2018

Vácuo

Com saudades do tempo velho, fui
vê-lo dentro dum livro, dormia
fundo eu, com ele, 
no sofá o tempo que cobra, me cobre e
tu não sabes, quem sou, não sabes
mas Sabes, abriu-se o livro 
numa página inteira, toda Eu
leio e leio só 
que depois cortou, caiu
o marcador acordou 

“Autores que não perdoam” *

Pífio. Corta.

(* o pindérico slogan dos marcadores da Quetzal, nem parece dali)

01/04/2018

Água mole em pedra dura

Deu-me a época pascal um motivo para é hoje, vou ligar à dona Esmeralda. Se bem o disse melhor o fiz (em criança tive dificuldade em entender esta expressão, perdia-me na interpretação, mas depois lá foi; e também aquela que a minha mãe dizia muito “gato escaldado da água fria tem medo” – eu achava que o gato devia ter medo era da água quente, mas depois também lá foi). Só que ela não atendeu. Ora eu fiando-me na tecnologia, pensei que mais tarde ou mais cedo o registo da minha tentativa iria fazer-se notar. E foi mesmo: hoje ligou-me de volta. Assim que me ouviu deu uma gargalhada – primeiro – e depois: foi você que me ligou ontem?
- Fui sim, dona Esmeralda. – outra gargalhada (dela).
- Bem me parecia. É que eu e o telemóvel não vamos lá muito um com outro, sabe?
Começa.
- Ah, sim?…
- Escute, é que eu ponho-o a carregar no quarto depois vou para a cozinha, quando vou para o quarto já ficou ele na cozinha, a gente não se entende, eu e ele.
Que saudades (acho que suspirei).
- Dona Esmeralda, como está? – foi a minha deixa.
- Eu estou bem, menina! Sabe lá, perdi muito peso, estou bem melhor, agora gosto de me ver ao espelho! E pinto o cabelo e faço a minha ginástica, olhe estou muito bem, pronto! E consigo, está tudo bem?
Sim, está, e…
- Olhe lá, quando tomamos um cafezinho? Gostava de conversar consigo, podíamos encontrar-nos depois do meu trabalho, ia ter comigo ali perto…
(ena!)
- Só não pode ser à segunda e à quinta que são os dias da minha ginástica e eu já agora, está a ver a menina, já agora não faltava à ginástica!
Estou a ver, estou, dona Esmeralda. Marcámos o dia e a hora, desliguei a chamada. Depois entrei neste blogue e pesquisei pesquisei até encontrar este post. Num papelinho, fiz a lista dos livros sugeridos pelos queridos leitores na preciosa caixa de comentários, levantei-me, vesti o casaco e fui à livraria. Como não tinham lá nenhum dos que pedi (quem não tem cão caça com gato - esta era fácil), escolhi um substituto que deve fazer boas vezes (mas guardei a lista na carteira, que isto há mais marés que marinheiros).
- É para oferta?
O livro para a dona Esmeralda foi embrulhado num papel às florinhas vermelhas e azuis enfeitado com um lacinho dourado de um brilho mate mesmo lindo.


(a dona Esmeralda é a senhora que serve os almoços na cantina do meu anterior trabalho e também foi musa inspiradora deste blogue nesse tempo já ido; não a vejo vai para dois anos)