a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

04/10/2024

Felicidades velhinhas, muito grandes

Não fosse a avisada ideia de começar o dia a ler Adília Lopes para acompanhar o café, corria o risco de me esquecer da palavra calorífero.
Encontrei-a num poema com Vergílio Ferreira como personagem secundária intitulado Geometria Descritiva. A única disciplina em toda a minha vida que me deu nota vinte.

Não fosse a avisada ideia de começar o dia a ler Adília Lopes para acompanhar o café, e não teria misturado duas pinturas antigas dentro da cabeça. A escola secundária onde as minhas mãos e a minha cara andavam cheias de riscos das canetas que usava com fervor na disciplina do vinte e a voz da minha avó, ao aproximar-se a hora de me ir embora: "Vou desligar o calorífero, para não te constipares com a mudança de temperatura, lá fora está frio."

28/09/2024

Os pêssegos, de Raul Brandão (a quem possa interessar)

Era sexta-feira e havia pouca gente no escritório, menos ainda do que é habitual no último dia útil da semana. Por causa disso, e também porque saí mais tarde para almoçar, fui comer sozinha.
Sozinha não: tinha um livro na mala, um livrinho, deve até ser o mais pequeno livro do mundo.
Pedi a perna de frango assada, legumes e desta vez batata no forno. O frango estava seco, em acordo com a minha preferência, e, enquanto lhe ia desfiando as fibras de carne, que metia à boca em alternâncias ávidas com a couve, a cenoura e a batata, li metade do livro: o primeiro conto. Não comecei a ler o outro, porque a perna de frango estava já toda desfeita, a batata muito acabada, a couve e a cenoura desaparecidas. Fui então arrumar o tabuleiro e saí para a rua. O vento apanhou-me de camisa, o casaco havia ficado nas costas da cadeira, no escritório. É o outono a chegar. Algumas folhas caducas esvoaçavam já secas, estaladiças. Passei pelos homens de calças sujas, que almoçavam na esplanada. As suas camisolas informavam, a quem pudesse interessar, que pertenciam à equipa de montagem do evento. "É a nova exposição", dissera-me a rapariga da caixa quando perguntei que evento era aquele no ato do pré-pagamento da perna de frango.
Depois, como ainda tinha muito tempo de pausa para almoço em crédito, não regressei logo ao escritório. Subi a rua e entrei no café sujo com um específico intuito. Comprar um chocolate. Comecei a comê-lo enquanto descia a rua. De repente, sem aviso prévio, sem que alguma coisa ali se perturbasse, sem um pássaro, sem um sorriso de alguém, uma palavra, um aroma a padaria, nada, sem mesmo nada, de repente, enquanto comia o meu chocolate, senti-me completamente em paz.

21/09/2024

O outono deve estar a chegar

Pela primeira vez que eu me lembre tenho uma cadeira de praia daquelas que se dobram e são muito leves. Ora pois bem, o jeito que a cadeira me dá! Levo o estudo para o areal e com o querido som da rebentação das ondas por fundo, sento-me nela a ler a matéria que entra muito melhor assim (em vez de estar meio deitada e toda torta com as folhas a esvoaçar). É o meu segundo grande estudo e ainda faltam três anos. Portanto vou dar um uso brutal à cadeira. 
Aliás, a cadeira é tão boazinha, que nem é preciso estar sol e calor. Hoje estava lindamente envolta em neblina por todo o lado e com gaivotas barulhentas a fazer imensos voos rasantes. A bandeira começou em verde mas mudou diretamente para vermelha, e eu zero aborrecida. Também não se via nada além de uns metros, só se ouvia (o mar e as gaivotas). E salvar pessoas no nevoeiro deve ser muito difícil mesmo para rapazes daqueles com boa visão, portanto percebi perfeitamente a ideia da mudança. 
Mas às tantas, o meu relógio esperto já estava farto da cadeira (que não tem bluetooth nem faz bips por tudo e por nada, e também não vibra quando alguma notificação chega a derrapar), e mandou-me pôr a andar, mexer o corpo (sair da cadeira). Como é para o meu bem que o relógio faz aquilo, obedeci. Pousei os papéis, o lápis e o marcador e fui apanhar conchinhas lilases, pedras achatadas pretas, arredondadas vermelhas e arredondadas em amarelo ocre. Pelo caminho, trouxe uma toda branquinha, quase transparente, que ilustrava o dia muito bem. 
Agora tenho estes tesourinhos lavados na bancada da cozinha não sei para quê. Mas vou descobrir (talvez os ofereça de presente à cadeira). Boa noite, até amanhã. 

18/09/2024

As rosas (toma e vai buscar)

De um lado, a estrada que atravessa o vale tem casas, do outro, um prado onde por vezes pastam ovelhas. As casas são muito velhas. Algumas têm as paredes mesmo à face da estrada, outras erguem-se um pouco afastadas, para lá de um muro. Porém, não estão desabitadas. Por trás de um desses muros sobressai uma linha de roseiras oferecendo uma forte densidade de rosas cujo colorido vigor combate, como numa frente militar, organizadíssima, o decaimento evidente em redor. Sempre que por ali passo, ainda que a conduzir, deito um olhar rápido àquela fileira de rosas, só para dar prazer aos olhos. Um dia, ainda vinha longe, mas já a focar a vista para as flores, não as vejo na sua formatura. O muro parece abandonado. Ao aproximar-me, dou então de caras (atrás do vidro do carro, mas dou) com os cotos sozinhos e, no alcatrão, caídas na estrada, uma faixa de pétalas. Fiquei escandalizada! Pensei feio, achei o pior. Alguém malvado que passasse a pé tinha destruído as rosas todas! Há pessoas que não sabem ver uma beleza, uma coisa linda e logo querem destruir, são cruéis! E assim por diante.
Mas, como a natureza tem o víço lá dela e sempre vence a parada, algum tempo depois as rosas tinham florido de novo e o quadro que elas pintavam, ali no seio de casas tão velhas, regressou em pleno. Eu passava de carro, sorria cá para dentro dos meus acessórios (botões, fechos de correr, presilhas e fivela), muito satisfeita.
Mas, após alguns dias, ou semanas, de esplendor rosado, eis que, de novo, o tapete de pétalas estendido no pavimento e, encabeçando o muro, só a linha de cotos despidos. Ai valha-me deus! Como é isto possível! A minha cabeça, neste ponto, mudou logo as ideias para outra mais cabeluda e miserável: alguém odeia os donos desta casa pobre, ainda que rica em roseiras, e está a vingar-se de alguma coisa! Ah, se a polícia passasse no momento do golpe e autuasse o diabrete que faz isto! Não há direito, umas flores tão bonitas! E por aí fora.
Todavia, conforme já estamos à espera, as rosas regressaram na potência toda que eu, humilde observadora das suas vicissitudes, lhes conhecia. Tão lindas outra vez! Ou mesmo mais viçosas ainda! Rejubilei ali bastante para o para-brisas, o volante, o retrovisor. Toma e vai buscar, ó ser demoníaco que estragas as flores! 
Só que, tal como nas novelas da televisão, a história repete-se e, passado mais um tempo, de novo as flores desfeitas na estrada. 
Ei! Espera aí! Isto merece uma análise mais aprofundada. Tu não me digas (o tu sou eu para os meus botões, colchetes, rebites e alças), que a destruição é propositada! Tu não me digas que é a dona, ou dono, (perdão, tutora ou tutor!) das rosas que lhes faz isto para lhes atiçar o vigor! Tu não me digas que é por seres uma ignorante destas ações sábias, que as tuas próprias roseiras são uma mistura esquisita de flores mortas e botões promissores mas mirrados!
Pois bem, meus pacientes amigos que chegaram até aqui: há dias passei lá e apanhei a cena em flagrante! Era a própria dona da casa e das rosas (quero dizer, tutora) que estava, com um jeito especial de mãos, meticulosamenre, a destruir as suas próprias rosas! Com ar de quem sabe muito bem o que está a fazer! 
De modo que aprendeste a lição (digo para com os meus botões, bainhas, coses e atacadores), a não julgar logo à primeira.
Nem à segunda, nem à terceira.

14/09/2024

O pior bolo de chocolate do mundo*

O biquíni azul desistiu de esperar pela sua vez. É compreensível: muitos verões passaram desde a última visita a um areal. Encheu-se de tristezas, ali dobrado no escuro de uma gaveta de cidade. Vê-se isso pelos elásticos do cós que passaram a plásticos e em bocados se desfizeram (talvez pelo último natal). O mofo ganhou tempo e entranhou-se na licra de tratamento metalizado. Libertou o seu aroma quando puxei o biquíni azul para fora da sua última morada. Portanto, com receio que o calção me caísse na primeira onda ou ainda antes, resolvi trazer o vermelho, comprado no mesmo dia muito antigo, mas mais robustinho, ainda jeitoso nos rebordos, apresentando a resiliência dos materiais intacta incluindo o bordado inglês a imitar lençóis.
Felizmente, não pereceram ambos.

*inspirado num lugar longínquo para os lados de Campo de Ourique

11/09/2024

Ó rio conta lá

Faltavam cinco minutos para as oito quando chegava ao lugar onde costumo tirar a fotografia à ponte, sempre a mesma fotografia, sempre o mesmo lugar, mas nunca a sair igual. À minha frente um pescador vindo de norte, virando à sua esquerda, caminhava ao longo do passadiço. Então desviei a mira e resolvi diferente, captei-o.
E só depois vi o que levava na mão. 

10/09/2024

Uma incerteza

Por causa da Maria Judite de Carvalho, fico a pensar coisas novas e diferentes.
Não na cozinha que está a pedir renovação total com muita intensidade, ou no trabalho que por vezes me exige mais cérebro do que o meu, também não nas expressões que se usam como "ter mais mundo", quando alguém não é fútil, ou "não estou a saber lidar", quando se acha outro ser demasiadamente adorável e se o quer esmagar de "amor" (e me irritam muito, grrrr). Nem, por exemplo - é só mais isto -, nas manchinhas muito feias que vêm cobrindo a minha pele.
Com a Maria Judite de Carvalho, a minha cabeça afasta-se do próprio umbigo e fica maiorzinha por dentro.
Agora mesmo trouxe-me a divertida interrogação sobre quando virá o dia em que, pela primeira vez, alguém me vai dar o lugar no autocarro. Tenho um bocado de medo desse dia. Quero que ele nunca chegue.

(Mas não tenho a certeza.)

08/09/2024

Oh!

Tivesse eu poder e os energúmenos que conduzem veículos a urrar propositadas ondas sonoras violentamente para longe propagadas, capazes de despertar uma leoa enfurecida em mim, tivesse eu poder, digo, e esses atrasadinhos cerebrais seriam todos enfiados numa masmorra nojenta onde poderiam ouvir independentemente da sua vontade os piores rugidos ensurdecedores ininterruptamente a mais de cento e cinquenta decibeis durante aí uma semaninha.

06/09/2024

A janela fingida

No ano muito antigo em que imensas pessoas, entre as quais eu, nasceram, não havia Internet nenhuma. Nem sequer a palavra Internet havia. E portanto também não havia blogs, posts, likes, etc. Era o tempo da telefonia, dos automóveis que pediam água para acalmar as temperaturas cansadas do caminho, e às vezes também óleo mas por outras razões, era o tempo da Crónica Feminina, uma revistinha que contava mentiras de amor e que a nossa empregada lia muito. Era o tempo da acetona, dos panos para engomar as calças do fato, da mioleira. Das resistências que os miúdos ofereciam às mães - e só a elas, se as tinham - quando estas lhes punham no prato os nojentos miolos de vaca misturados, para disfarçar, com ovos mexidos. Era o tempo dos domingos, dos passeios de automóvel, das idas ao Estoril. 
Nesse ano muito antigo, não havia portanto blogs nem os posts que os "alimentam". Mas, ao contrário do que possa parecer, havia-os com outros nomes: textos publicados num jornal diário (feito em papel).
Estava aqui a ler alguns destes textos publicados, agora, em dois mil e vinte e quatro, eu já quase a ficar velhinha, e os textos (publicados) no quarto volume das Obras Completas de Maria Judite de Carvalho, um volume com três títulos: A janela fingida, O homem no arame, Além do quadro.
E estou a fazer-me não só sua seguidora, como sua fã. A deitar likes por todos os lados, é lindíssimo.
E por isso venho recomendar muito e com entusiasmo esta imensa leitura. Por favor. 

28/08/2024

Jopie Huisman 5/5

"You need to finish your apple," I told my granddaughter Eelkje. 
"Grandpa needs to finish it himself," was her answer. "It's sour." 
So I decided to draw the apple. 

Jopie Huisman 4/5

These knickers have been mended dozens of times. To me, they're the most moving item of clothing I ever found in the rags. 
She always tried to mend them with yarn that as far as possible matched the colour of the knickers themselves. 
But then, when she became a widow - meaning that nobody was going to see her knickers but her - she stopped worrying about the colour. As you can see from the yarn she used for darning after that. 

Jopie Huisman 3/5

Jelmer is my cousin and my closest friend. Whenever I see him or think of him, it evokes everything that is good and gentle in me. 
One time, in the television programme 'De Stoel', the host Rik Felderhof asked Jelmer: "What's the deal, Jelmer: don't you two ever disagree?" 
To which Jelmer answered:"Quite often." 
"So how do you solve it then?" 
"It's very simple," said Jelmer. "I start walking in one direction, and Jopie in the other." 
To which Rik said: "And how long does that take?" 
Jelmer: "It always blows over after a few steps." 

27/08/2024

Jopie Huisman 2/5

The best comment I ever got about this painting was made by the poet Rutger Kopland. 
He wrote: "The heart of the painting is the pale, motionless face that looks away from the mirror. 
It isn't the face of a painter, but of a rag-and-bone man. 
A rag-and-bone man who's rolling a cigarette before posing for his portrait. 
Taking a breath for a moment - forever!"

Jopie Huisman 1/5

"I wore these shoes for almost 40 years, " is what old Yde told me. 
He actually could have afforded new shoes - because he was already getting a pension - but it was hard for him to take leave of them. 
Later on, I traded him a bottle of brandy for them. 
The brandy is long gone and Yde has passed away, but I got to draw his shoes. 

Jopie Huisman

Jopie Huisman foi o sétimo e último filho de uma família com escassos recursos materiais, mas abundante em amor, como ele próprio descreve. Nascido em 1922 na pequena cidade de Workum na região Frísia holandesa, Jopie sentia-se tão absurdamente encantado com as planícies fartas em água, paz e vegetação luxuriante, que cedo começou a pintar a beleza que lhe entrava pelo espírito adentro.
Ao longo da sua vida, foi apurando o olho para outros encantos que descobria em objetos caseiros sobretudo se fossem usados, ou muito usados, pois só assim se podia neles ler a história que carregavam. Veio a falecer no ano 2000, não longe do lugar onde nasceu.

Nunca quis vender nenhum dos seus trabalhos, apenas aceitava expô-los, até ao dia em que três dos seus quadros foram roubados de uma dessas exposições.
Hoje, à exceção desses três que foram furtados, os seus quadros estão expostos no museu, em conjunto com as histórias que contam, na sua cidade natal.

26/08/2024

Férias

Tudo está a conjugar-se. Não deixei pontas de trabalho para os meus colegas, daquelas que me impedem de descansar a cabeça toda. O tempo tem oferecido um leque razoável entre o vento e a calmaria, o sol e a chuva forte, a água agitada e o espelho onde deslizam patos, gansos, galeirões. Visitei um pequeno museu numa pequena cidade, como se visse à lupa o olho de um malmequer cravejado de minúsculos seres vivos. No supermercado, deram-me o troco em moedas para pagarmos as pontes levadiças se não for grátis fazer subir alguma. As minhas avaliações quanto à altura do barco e das pontes fixas em aproximação não falham: o primeiro passa sob as segundas, ainda que sobrem apenas dois ou três centímetros em alguns casos. Afrouxei a dieta no sentido de gelados, sobremesas e o bolo com morangos em excelente forma, sem no entanto ter engordado. Em Portugal todos estão bem, incluindo os gatos, e não há incêndios (o tremor de terra não foi nada). Finalmente, para cúmulo da perfeição, trouxe um livro comprado na Feira de Lisboa, fruto de um impulso um bocado arriscado e doido, um livro que não consigo largar. Quer dizer, conseguir consigo, mas por pouco.
Por outra palavra, fui. 

18/08/2024

Isto, isto

Pessoas caminham três cães ou dois, enquanto as vacas arrancam a erva molhada de domingo e no prado as éguas estão silenciosas, mas só com as moscas. Um galo insiste, ao fundo inteiro da estrada, no orvalhar de algum minuto que já esqueceu. Além disso, dois pombos, ao alto, esticam o pescoço bicudo para o voo urgentemente rasgado à sua frente.
E eu, depois de um bocado da manhã às voltas, depois das calças acabadas de lavar, depois de, por cima do molhado da erva alta, colher a única amora madura à beira do caminho, depois, até, da lebre saltar sobre as flores e as flores e as flores silvestres em cheio, em rosa, em azul, e depois, ainda, de me sentar num banco tão vazio, eu não sei o que fazer com isto. 

Isto

14/08/2024

Misericórdia?

O céu acalmou. A manhã avança docemente numa luz cristalina e ténue vencendo, a espaços, as nuvens quietas que a tempestade de ontem não desfez.
Acordei cedo. Hoje é o meu último dia de trabalho antes de férias, ocasião que me dispõe lindamente.
A olhar o jardim através da grande janela, muito encantada com a luz, o complexo de nuvens e tons, cenário que justifica perfeitamente o conhecido ardor do pincel dos pintores flamengos, pus-me a pensar.
Qual terá sido o livro sobre um lar de velhos que a mulher do senhor Pereira trazia na mala*? Livro esse que entediou uma leitora exigente e experiente, como a querida MP?
Misericórdia, de Lídia Jorge?
A máquina de fazer espanhóis, do Valter Hugo Mãe? 
Os esquecidos de domingo, da francesa Valérie Perrin? 
Estes três vieram-me à cabeça com o prado verde ali mesmo à frente, tão belo, todo ele agosto, mesmo intenso.
Mas vou mais no primeiro. O do Valter Hugo Mãe já é antigo, o da francesa não levará MP a mergulhar nele, talvez. Ou é um qualquer outro cuja existência desconheço. Enfim. A verdade é que estou aqui diluída no verde, na manhã, nas nuvens, e nos livros sobre lares de velhos, antes de me pôr ao trabalho.
Mas Misericórdia não me atrai, precisamente porque desconfio que me iria entediar. 

(certo será que Em nome da terra entrou para a lista, aliás, já lá estava, mas subiu uns lugares na prioridade, subiu, subiu)


*13.8.2024

10/08/2024

Os arados

Hoje começa a festa da vila. Primeiro tomamos café no lar de idosos, que tem mais espaço, às nove e meia. Anunciam-se as novidades, os novos residentes da rua são apresentados. Alguém distribui as folhas já um pouco amarrotadas com a canção. É uma espécie de hino. Eu vou fingir que canto, tenho sempre vergonha da minha péssima voz. Como a letra está no holandês que acho que nunca aprenderei decentemente, a coisa vai disfarçar melhor, tenho desculpa. A seguir vamos montar os enfeites da rua. Todas as outras ruas fazem o mesmo, mas tomam o café noutros lugares, devem ter os seus hinos.
Será, como sempre, uma atividade de equipa. Os enfeites são pesados, altos postes em madeira, é preciso remover uma pedra do passeio em frente de cada casa para os enterrar bem, vão lá ficar uma semana. Os homens fazem esse trabalho, algumas mulheres também, duas a duas consegue-se. Depois martelam-se as estacas que prendem as faixas laranja ao chão, combinando com as faixas encarnadas, brancas, azuis que pendem verticalmente. As cores representativas do país. Não ficam muito lindas umas com as outras, mas nestas situações de festas da vila aceitam-se melhor os folclores, ninguém se vai importar com cenas chatas de estética e tipo isso. 
Vai ser a primeira vez que montamos os enfeites com o vizinho irrequieto, barulhento e até agressivo, aquele do absurdo cortador de relva. Como serão os seus dotes de cooperação?
Muito antes da hora do almoço, a rua estará pronta. Cada poste de enfeite ostentará um arado de madeira, cem por cento inspirado no nome da rua, cem por cento feito à mão por um vizinho que mais tarde se mudou para a Noruega depois de ter enviuvado. Acho que são quase trinta arados que todos os anos saem das garagens, cada casa tem o seu, e voltam a erguer-se nos seus postes. Ele deve ter sido carpinteiro nas horas livres. Ainda conheci a sua mulher. Vieram ambos dar-nos as boas-vindas no verão de dois mil e dezoito, quando chegámos. Trouxeram de presente uma espécie de cabaz de natal mas em agosto. Tomámos café no jardim, apresentámo-nos, falámos das nossas vidas, contámos dos filhos, das nossas idades. Ela era uma senhora muito bonita, lembro-me de ter pensado como aos setenta anos se pode ainda ser tão bonita. Num braço, tinha uma faixa branca, um grande curativo. Disse-nos que era o cancro, que iria morrer em breve. Disse-nos isso com uma tranquilidade própria de quem fala de dias felizes, não da sua morte iminente. Morreu em dezembro desse ano.
Sempre que chega este sábado de agosto e participo na decoração da rua, martelo as estacas das faixas laranja, ajeito o enfeite com o arado de madeira pregado no poste, penduro as luzinhas que, ao final da tarde, se acendem com as suas bateriazinhas, sempre que chega este sábado de agosto, dizia eu, lembro-me desse vizinho viúvo que se mudou para a Noruega. Penso em como ele estará e se alguém daqui, algum outro morador mais antigo, lhe envia fotografias dos seus arados a enfeitar a rua, depois do trabalho concluído.
Mas hoje vou perguntar. 

07/08/2024

Galinheiro sem galo (aparentemente)

Fechei o computador e debrucei-me na janela. Vem um ruído astronómico do lado do vizinho irrequieto. Vejo-o então manejar um maquinão de cortar a relva e fazer estremecer, sei lá, o pavimento da rua, senão mesmo os vidros das casas. É completamente desagradável. Nem a trovoada que rebentou de manhã conseguiu lançar tanto decibel. Mas não quero queixar-me, sempre posso correr escada abaixo e porta fora e só parar no adro da igreja onde talvez já não se oiça o rugido imenso. 
Mesmo assim, antes isto que vê-lo a fazer chichi para as hortênsias em flor, plantadas ao canto do seu jardim, do lado oposto ao do novo galinheiro. Blhec. 

04/08/2024

Descascar horrores também podia ser (mas é descansar)

Dois mil quilómetros separam-me do minúsculo tubinho de plástico flexível com os restantes microlitros do soro fisiológico com que, ainda ontem muito cedinho, lubrifiquei os meus olhos.
Microlitros que agora iam bem nesta hora pós-sesta (no âmbito da qual se propagam os ruídos aspersores da máquina de lavar loiça). Lentes de contacto e uma ranhosa necessidade que se me entranhou de descansar horrores não combinam.

Além disso, para um minúsculo tubinho de plastico flexível, dois mil quilómetros é muito. 

02/08/2024

Ah, Lisboa em agosto

O autocarro corta Moscavide a direito. Vai na bisga. Tão depressa que nem me dá tempo de explicar melhor a sua velocidade.
Mas é agosto. E Lisboa está já, em grande parte, a descansar no Algarve ou na República Dominicana. Não sei se ainda se usa ir para a República Dominicana. Porque é preciso fugir às torturas de Albufeira. 
Na Praça José Queiroz quase sou cuspida do banco. O veloz autocarro contorna a estação de serviço servindo-se - que lindo isto - do seu fole de ajuda ao longo do veículo. Não dá para escovar isto melhor, já estou um bocado enjoada.
Escovar, não, explicar. 
O telefone esperto não me salta da mão nas travagens, porque eu sou mais, muito mais, que ele. Daí o post, ainda que aos arrancos. 

23/07/2024

Diz-se oiçai?

O cair da noite está quase pronto. Mantenho-me imóvel, colada à almofada do assento de jardim. A menos de dez metros de mim, está o mastigar das ameixas, maçãs ou peras que rejeitei durante o dia depois da inspeção visual. Digamos que a taxa de defeitos anda nos vinte por cento, o que sem a intervenção de cenas químicas é excelente. Lanço os frutos rejeitados para o terreno abandonado, aqui ao lado. Não que eu seja mal-educada, trata-se antes duma espécie de aquisição de bilhete para o espetáculo noturno e ao mesmo tempo redução do desperdício para zero. Mas é o elegante mastigar de um javali. Podemos sorrir a isto, claro, porém cuidado que ele é muito idêntico ao nosso, especialmente quando alguém se esqueceu de nos ensinar que não se mastiga de boca aberta.
Sabendo a quantidade de frutos que o animal tem para degustar, estimo que a cena vá durar. Continuo portanto firme (e hirta) a ouvir o repasto. Ainda a possibilidade da suína libertação de ar, o derradeiro momento deste longo ato, tem força que basta para me fazer superar o ataque das melgas, que já se pôs jeitoso.
Melgas. E não mosquitos, meninos. Okay? Melgas! 

Entretanto gravei o primeiro ato da banda sonora, oiçai se mais quiserdes.



16/07/2024

Muito me conta a dieta

Sabia que a doutora já estava à minha espera, por isso adiantei a hora de bater a porta, meter-me no carro, e fazer-me às curvas. São oito minutos sempre a descer até à entrada da farmácia. A tarde estava amena, os raios de sol entremeando os ramos dos carvalhos, dos pinheiros e dos eucaliptos em ângulos bastante agudos. As flores caídas da buganvília, à sombra da qual o carro passa o verão, desinstalavam-se, a cada curva, da concavidade entre o para-brisas e o capô. O seu rosa-choque esvoaçante contra o verde abundante da paisagem. 
Ao entrar no gabinete, a doutora abraçou-me, libertando centelhas do seu perfume na minha roupa. Já estou habituada. Teoricamente, alcancei o objetivo ao cabo de quatro meses de dieta rigorosa. Oito quilos foram à vidinha deles depois de uma estadia demasiado prolongada chez moi, como se diz em francês. "Agora só a quero ver em Setembro e depois tem alta", foi a sentença. Estou mesmo contente. Em idade metabólica e segundo as maquinetas de medições várias, diminuí quinze anos e melhorou-se o fígado, a vitamina bê um e mais uma data de ingredientes. Ora mesmo que isto não passe de uma animada estratégia de marketing, não há problema nenhum, evidentemente.

(seguem-se as notas de rodapé para quem não tiver nada melhor para fazer) 

O processo trouxe dois ensinamentos. Um, ficar muito tempo sem comer ou fazer horários desregrados ensina o cérebro a precaver-se contra a falta de provisão e portanto ele manda o corpinho reter o esporádico alimento o mais possível. Dois, parar às onze, às dezasseis e às dezoito para tomar um breve lanchinho zero por cento açúcar, proporciona três momentos diários de puro mindfulness que não só sabem lindamente como caem que nem ginjas. Recomendo muito.

Um dia na serra

Hoje tive seis reuniões e quase não consegui trabalhar a sério, ainda que algumas tenham sido rápidas e todas remotas. Quando no fim do expediente fechei o computador, queria completamente outra coisa. Algo simples. À hora de almoço colhera do terreno as ameixas da manhã e trouxera-as para dentro, quentinhas de estarem ao sol. Já íamos em vinte e cinco. Parece pouco para ameixas, mas é muito. Elas são grandes como bolas de ténis. Ora pela tardinha, esse chão que dá ameixas já dispunha de mais algumas e por isso tomei medidas. Fui buscar dois sacos. Meti-lhes dentro exemplares inteiros - quer dizer, não semicomidos por gaios, melros e formigas enormes.
Saí para a rua. Pendurei o primeiro saco na porta dos vizinhos da frente que estão cá de férias, e o segundo na dos vizinhos ingleses que estão cá sempre, fizeram um brexit ao contrário. Enviei mensagens a ambos a avisar das ameixas e, enfiando os auriculares com fios* nos ouvidos, pus-me a andar dali para fora da aldeia em direção ao pôr do sol na estrada de terra. Liguei para uma filha e depois para a outra. Estão ambas a espalhar beleza em Lisboa, mas quem me dera tê-las aqui.

* ah pois. 

26/06/2024

Veado ou corça

Por causa da emigração que operei para a serra, pude observar, numa destas noites de verão muito raras, dezenas de pirilampos machos. Sei que são machos porque voavam e piscavam as suas luzinhas. Fêmeas não pude avistar nenhuma, elas não voam, ficando apenas com a luzinha no chão a indicar o caminho aos machos. 
Ouvi, então, vindo do terreno mais baixo, um cervídeo, que podia ser veado ou corça, esses não sei distinguir, mas seria jovem, caminhar na direção da estrada atrás de mim, atravessando o terreno aqui ao lado, todo focado no seu intento e sem se deter a comer a erva nem nada dessas cenas óbvias, como é hábito dos seus companheiros de espécie. E não é a primeira vez que isto acontece. Quando chega à rua estreita, empedrada, abranda, olha para um lado e para o outro. Depois continua, desaparecendo da minha vista, rua fora. Estou desconfiada que vai procurar os gatos, que gosta de os ver. É que ali, àquela hora, e não contando com os pirilampos que foram atração de uma noite só, não há mais nada além dos gatos e dos dois carros empoeirados, estacionados à luz amarelinha do candeeiro de rua.
Reentrei em casa e continuei a ler uma alegria que trouxe do espaço Leya numa das duas visitas à Feira do Livro deste ano. "A febre das almas sensíveis", de Isabel Rio Novo.

23/06/2024

Chá preto

Dizias "Vou pôr mais água no chá" enquanto te dirigias à cozinha com o bule de porcelana decorada a florzinhas ao estilo inglês, já vazio. E regressavas  segurando o bule de modo mais firme, cauteloso, superando assim o peso da tua idade de avó experiente. Devagar, e só depois de passar um minuto ou dois, tornavas a encher cada uma das nossas chávenas. Era chá preto. Nos pratos havia paezinhos de leite com fatias de queijo flamengo cuja espessura havia sido supervisionada por ti, não fosse alguém lembrar-se de as cortar demasiado finas.
Nessa altura - quantas décadas já lá vão? - eu não sabia de outras maneiras de tomar chá. Não sabia, por exemplo, que iriam fabricar-se saquinhos mais pequenos, cada um destinado a uma chávena só. Nesse tempo nosso, chá era o nome de um momento de comunhão, de encher a barriga com doçuras e, acima de tudo, um momento de amor. Não havia, não na tua casa, chá só para um. Esse era um nome tão amplo que, dentro dele, cabia toda a tarde de domingo.
As toalhas que usavas para cobrir a mesa cheiravam a lavado. Ora bordadas ora com aplicações em croché, haviam sido feitas por ti. De uma revista, de um modelo, da tua imaginação. Fiquei com duas, sabes? A verde clarinho e a das rosas vermelhas. O bule, aquele que transportavas para "pôr mais água no chá", também ficou para mim. Mas, tal como as toalhas, passa os domingos arrumado. E os sábados, os invernos - anos inteiros. Ao lado da pilha de pratos e das chávenas encaixadas duas a duas. As florzinhas de estilo inglês no silêncio do interior escuro do armário.
Hoje o chá é individual e ninguém tem tempo para toalhas bordadas. Não que as pessoas não estejam juntas, mas, sabes, cada um tem o seu gosto, a sua preferência, o seu problemazinho. E, depois, há mil e quinhentos chás.
Há de frutos do bosque, mel e limão, maçã e canela, chá para a noite, para as pernas, para a cabeça. Há chás para tudo. 
Só não há um para as saudades, querida avó, estas tão grandes, velhinhas, persistentes, que cá deixaste plantadas no meu coração. 

05/06/2024

A mãe (as mães)

O carro morreu outra vez. Completamente. Os botões nada, a chave idem, dentro ou fora. Tanta inteligência artificial, tanta encomenda da peça, tanto telefonema com menus de escolha e autorizações de gravação. Um carro quase novo. Liguei para a assistência. A assistência atendeu à terceira, depois da música de espera interminável a lembrar o barco de descer o Douro adornando com turistas: distorcida no máximo. Tomou nota da ocorrência e nos intervalos das perguntas tentei explicar que devia ser a bateria, a pequena, de doze volts, de novo. Mas a assistência não estava interessada nisso, o técnico iria ligar para combinar a visita. Perguntou se podia ajudar em mais alguma coisa. Podia, que era ouvir-me um bocadinho. Mas disse que não, agradeci. Voltei com as mãos para cima do teclado e continuei o trabalho em teleligação.
O prometido telefonema do técnico chegou. Atendi e reconheci-lhe a voz. Era o mesmo homem mal disposto que veio ressuscitar o carro da outra vez. Dessa, lembro-me que trazia uma velhinha muito magrinha com ele. Uma velhinha que se torcia sobre o corpo esquelético e não falava. Talvez fosse a mãe. Expliquei-lhe o sítio, confirmei a morada. Com jeitinho. Tentei falar da bateria, mas nem pensar. Palavras inúteis, ele é que saberia do mal do carro ao chegar (como se eu fosse burrinha atómica ou sem cérebro). Estou no meio da cidade, grunhiu, é o tempo de chegar aí. Qual cidade, perguntei, Coimbra? Claro!!, soltou o homem, e acrescentou no mesmo estilo, qual é que havia de ser!? Não lhe expliquei que este país tem outras cidades, e coisas tipo assim esquisitas.
Meia hora depois, exatamente como da primeira vez, voltou a ligar. Bufava, estava no sítio errado, de novo se havia extraviado e de novo a imbecil era eu que não expliquei ou que não arrumei melhor os lugarzinhos perdidos na serra do Portugal. Acusou-me de inexatidão (sem usar a palavra inexatidão). Comecei a repetir o nome da aldeia, mas ele não ouvia, bufava, dizia que isto é uma chatice. Mas de repente num intervalinho da má educação, ouviu. Quê?! Carvalhinhos?!, cuspiu. Para o Caralhinho é que teria sido bem enviado o senhor. Todavia não. Direcionei-o para este Carrinho. Morto. 

E desta vez nada, morto continua ele, agora só amanhã. Com reboque.

(a velhinha muito magrinha que se torcia vinha de novo com ele, a aturá-lo desde Coimbra - só pode mesmo ser a mãe)

26/05/2024

As portas

O apartamento onde, em criança, morava com os meus pais e irmãs era servido por duas portas de entrada. Uma, a principal, dava para o hall, a outra, então chamada de serviço, dava diretamente para a cozinha. 

A porta de serviço era a porta onde tocavam o padeiro, o leiteiro e alguma empregada de outro andar que vinha pedir um pé de salsa ou um ovo que lhe faltasse para o pão-de-ló. Ao domingo, também aparecia o Damásio, namorado da última empregada que tivemos. Ele vinha namorar com ela à porta (a porta ficava aberta), ou então vinha buscá-la para passear no seu dia de folga. O Damásio não tinha ordem – provavelmente nem lhe passava pela cabeça pedir – para entrar e namorar com a rapariga dentro de casa. Só me lembro dele à porta. Um dia, achando-o muito alto – eu devia ter seis anos ou sete – perguntei-lhe a idade. Ele respondeu "vinte e um ano". Assim, no singular, “ano”. Lembro-me que fiquei a pensar que não me podia esquecer de dizer “ano” quando eu própria chegasse aos vinte e um. E logo a seguir duvidei se estaria bem assim, vinte e um ano, mas ele sendo tão alto devia saber com certeza e eu ainda teria muitos anos para confirmar aquela maneira esquisita de dizer a idade. A campainha da porta da cozinha tinha um trriimmm potente e irritante, ainda por cima anunciando visitantes que não me despertavam qualquer entusiasmo ou interesse. Se acontecia o tinido estridente tocar quando eu passava perto daquela porta, não escapava a dar um salto de susto.

A porta do hall era muito melhor. Por ela chegavam os avós para jantar, os convidados para a festa de anos de alguma de nós ou, melhor ainda, para a consoada. Também o toque da campainha era muito diferente. Um harmonioso e musical, suave dlim-dlão. Por vezes, o dlim-dlão prenunciava a visita dos padrinhos da minha irmã Catarina que vinham lanchar. Tratava-se de um casal muito distinto. Estavam sempre sorridentes um para o outro, o olhar azul dela pousava no rosto gordinho dele, e era com tanta ternura que o fazia. A sua voz era baixa, falava devagar. Ela conversava comigo e com as minhas irmãs de coisas de mulheres. Eu queria sempre ouvi-la e desejava ser como ela, quando fosse grande, por exemplo aos vinte e um. A distinta senhora fazia os seus próprios casacos compridos de fazenda tão macia. Reagindo ao nosso olhar de admiração, ela estendia uma pontinha do casaco para nós podermos tocar o tecido e confirmar a suavidade. Um dia, ela trouxe-me um presente que anunciou ser adequado ao meu cabelo, ao meu tipo de cabelo. Era um pente com dentes ondulados, muito afastados, que não iriam arranhar-me a cabeça, nem puxar-me os cabelos. Eu detestava pentear-me porque o processo era sempre doloroso, e ela devia saber disso. Aquele pente parecia realmente muito melhor, ao contrário dos outros pentes horríveis. A madrinha da minha irmã Catarina ensinou-me então a utilizar apropriadamente o novo utensílio. Quando terminou, explicou-me de que modo devia colocar o cabelo na almofada quando me deitasse para dormir. Era um modo especial de manter o cabelo penteado e que tinha ainda a vantagem de evitar que se partisse. E eu então, admirada, aprendi que o cabelo, não sendo de vidro nem nada, podia partir-se.

23/05/2024

Banda de borracha

Steve Jobs mostrou numa conferência, algures em 2007, o chamado efeito de banda de borracha ou rubber band effect que a sua equipa havia criado. 
O que é o rubber band effect
Para o demonstrar, Steve Jobs fez o dedo deslizar no ecrã de um telefone Apple mais esperto que os demais, para correr verticalmente uma lista de dados. Também se chama fazer scroll. A lista, obedecendo, correu toda até ao fim. Mas ele continuou de propósito deslizando o dedo como que a forçar a lista a mostrar mais linhas de dados ali no ecrãzinho. É então que surge o tal efeito banda de borracha. A lista exaurida, não tendo mais para andar, estica-se ali um bocado aumentando os espaços e depois faz ao contrário, encolhe. Tal como uma banda de borracha. Isto para sinalizar ao teimoso dedinho que, temos pena, mas já não há mais nada na lista, ok? Com certeza utilizadores da marca referida sabem do que estou a falar. 
Cinco meses depois a Apple depositou o pedido de patente para o novíssimo efeito borrachado. Cinco meses depois veio a revelar-se demasiado tarde. Devia ter sido um dia antes da tal conferência. 

Foi só após a morte de Steve Jobs que a patente foi retirada na Europa: o tal efeito já não havia sido novo, uma vez que o próprio inventor o divulgara previamente. 
Fiquei a saber disto hoje.

(Steve Jobs morreu em outubro de 2011, com apenas 56 anos.) 

22/05/2024

Só faltava começar cada frase com imagina

Comprei, pela wook, em modo entusiasmo e de urgência, um livro de uma autora desconhecida recomendado num local de bom consumo literário.
Logo que chegou a encomenda, apreciei a capa. Pareceu-me infantil, mas o problema com o mundo infantil é meu; portanto endireitei as costas e afastei o cabelo dos olhos. Abri então o livro com uma avidez intacta. De pé, mesmo, entrei-lhe pelas palavras a derrapar. Mastiguei as primeiras pseudoideias com o paladar configurado, a cabeça um bocado inclinada a sul, quer dizer, a mente aberta a qualquer luz que viesse, os olhos bem focados. 
Mas estava a escapar-me um sentido, uma imagem sequer. Alguma lógica. Comecei a correr atrás daquelas palavras que fugiam todas em ausência. Eram e não eram em verbos estranhos ou não. Acompanhadas por doses absurdas de talvezes e incertezas de rumo, parei de comer na terceira página. O problema seria meu, evidentemente. Com certeza as pressas. Pousei o livro, voltaria mais tarde. Depois do trabalho, do banho, de um jantar (da luz verde e azul muito linda na noite). 
Porém, na segunda visita, fui recebida com a mesma bacidez, o mesmo vácuo onde nada cabia. Não pude formar qualquer imagem por deslavada que fosse. Aquelas palavras estão inanimadas. 
Não foi uma possibilidade continuar a leitura, e morri-a na página oito. Entreguei muito depressa o livro à estante, recolhi as mãos limpinhas e consumi a indignação num suspiro intitulado sem-título. Foi melhor assim.

13/05/2024

Uma maiúscula, um número e um caracter esquisito, de resto nada que se possa associar a si, compreende? *

Nos intervalos das horas extra laborais em que estou a tentar provar que sou eu deste lado do ecrã necessitando aceder a um determinado serviço em linha e não a minha mãe ou sei lá avó, através de palavras passe cheinhas de requisitos facílimas de esquecer e declarações de não-robô tipo vá lá era p'ra hoje, por vezes, consigo ler umas páginazinhas de um livro. Poucas.

*não

17/04/2024

Boa viagem, disse ela

Então como está Fátima, não perguntam vocês. (faz de conta que isto é uma rede social das normais) 
Fátima está na mesma, não parecem passar os dias por ela. Nem os meses, tirando o do Natal, evidentemente. O Burger King informa-nos que é desde mil novecentos e cinquenta e quatro - e a gente acredita - numa iluminação em branco puro mas que lembra os cafés de estrada americanos. Aqueles dos filmes em que as portas têm sempre algum penduricalho que fica a tilintar, vocês percebem. (não me esqueci que estamos a brincar às redes sociais) 
Já a loja de vestidos de noite está fechada, bem como o restaurante Viva Maria e a Clinica Dentaria Sorriso Branquinho. Podemos então especificar, sem medo, que Fátima repousa em paz e em toda a sua extensão de, segundo pude apurar, setenta e um vírgula vinte e nove quilómetros quadrados. Nada mal, sim Senhora.

Agora não sei se vou ter likes, mas acho que não dá para tanto. Portanto se gostaram da minha publicação, paciência, podem ficar aí sem fazer nada, sossegadinhos a repousar dentro de toda essa beleza própria.

(mas obrigada, a sério, consegui distrair-me da baratinha que se passeava no chão do autocarro no sentido de trás para a frente, em Fátima, pois, em Fátima, só não tiro foto porque a barata fugiu do meu campo de visão além de que também vou um bocado enjoada) 

10/04/2024

Pensei pintar de azul (mas só pensei)

Enquanto lá fora anoitece devagarinho, as pessoas entram no autocarro e instalam-se. Olham para cima, focando o rebordo da prateleira para a bagagem leve, e consultam o número atribuído ao lugar. Algumas duvidam, outras enganam-se, poucas perguntam. Estamos em Portugal, mas muitos são estrangeiros. Espanhois, brasileiros, russos ou talvez ucranianos. O azul cinza do céu esvai-se num rosa escarlate ao meu lado direito. Como se lhe doesse morrer o dia. Saímos por fim com catorze minutos de atraso. Mas nesta rota é normal, não sei porquê. A mulher de cabelo pintado de roxo vai sentada do outro lado da coxia e prepara-se para dormir. Sei isso porque enfiada no seu braço vinha a entrar uma almofada em forma de C da mesma cor do cabelo. Assim, toda combinada, a mulher de cabelo roxo vai dormir um soninho bem bom. Aposto.

26/03/2024

O fígado ainda melhor e a idade metabólica ninguém me dá

O livro coreano que estou a ler por interesse tem um erro de revisão de texto na página 10 e outro de contas 59 páginas depois. Estou a decorar isto, porque quando escrever à editora a mencionar os erros para o caso de pretenderem corrigi-los numa próxima edição, não preciso de ir à procura deles.

Porém, continuarei a leitura. Não podendo levar o grande monte de moléculas de que sou feita à Coreia, nem do Sul e muito menos do Norte, viajo assim, no sofázinho, no comboio ou enquanto espero pela consulta da nutricionista, que achou excelentes os meus resultados e deu-me até os parabéns e um abraço. Ah, sim, sim.

20/03/2024

O melhor são as séries da televisão

A Adília Lopes escreveu, em agosto de 2014, que detesta o paradoxo do gato de Schrodinger. Exatamente ao contrário de mim. O que eu não gosto é da interpretação errada que se faz do paradoxo do gato de Schrodinger. Diz-se que a curiosidade matou o gato, mas sem se saber o que é o paradoxo. 
E também escrevo que, se dezoito por cento de pessoas se inteirasse muito mais da ciência e das questões fundamentais da vida e menos dos respetivos umbigos, não apostava no ódio e na destruição. Valores que eu, pessoalmente, desprezo.
Espero que isto esteja a milhas da Adília Lopes.
É bastante bom ter um blogue e escrever o que quiser. Mesmo temas assim todos confusos, que parecem desprovidos de nexo e tipo isso. 

08/03/2024

Coisinha

Não sei mas 
Se eu disser
Ao meu lado vai um preto lindo
Estou a ser racista
Se eu disser
Ao meu lado vai um homem lindo
Estou a ser sexista
Se eu disser 
Ao meu lado vai uma pessoa linda 
Estou a ser pessoista
Se eu disser
Ao meu lado vai algo lindo 
Estou finalmente a ser (quase) inclusiva
Só fica de fora o nada e eu
Estou a ser 
nada.
Quer dizer, 
que linda estou a ser.

E está calorzinho com o aquecimento ligado

Tenho um gato quase todo preto e enrolado no colo, tenho um livro novinho a ler com a lombada pintada em azul, tenho o cabelo pintado mas não de azul (como devia), e sim castanhinho.
Tenho o estômago a guinchar de fome, tenho oito quilos a mais, tenho um trabalho do espaço dois mil e vinte e quatro para entregar às onze horas, toma lá onze horas. 
Tenho medo do vizinho novo que põe ameaças nas caixas do correio, tenho duas filhas com olhos grandes e todas grandes, são duas ou muitas, também tenho amor pelas flores e pelo veado que na segunda-feira pela manhã comia erva do chão que eu quase pisava e tenho
o livro de coutos do mia conto para entregar na Biblioteca. 
(penso que ele não se importa) 

18/02/2024

Então e hoje?

 


Saudades da câmara melhorzinha (que foi roubada e já não se fabrica daquelas). É que os telemóveis sinceramente. É assim muito ao longe, bem mauzinho. Mas enfim, pelo menos percebe-se que não se trata de gatinhos.

17/02/2024

Da velhinha série o que vês da tua janela e assim


Mas não se compreende o prémio: uma pessoa entra e sente-se no balcão do talho ou no bloco operatório. E depois a pessoa senta-se, pronto. 

15/02/2024

António Arnaut

Comecei a ler Ken Follet depois de Domingos Amaral. Com um desconhecido Mia Couto pelo entremeio. Que é uma espécie de tempero, dar um tonzinho, puxar ao surreal.
Entrei no ano a optar por isto assim muito novo: dispensar a posse de livros, porém lendo-os. Então pus-me, num húmido sábado de janeiro, a caminho da pequena biblioteca municipal. Ela recebeu-me com as portas envidraçadas do estilo braços abertos, amplos, envolvendo-me logo naquele tanto silêncio. Ao balcão eu disse o nome e a idade, mostrei identificação. Daí sorriram-me e deram-me sins e podes. Também um cartão de papel grosso, um número lá manuscrito e o meu nome. Próprio.
Percorri o espaço pontuado de alusões ao conterrâneo que, em tempos, fez obra digna de conferir nome à pequena biblioteca. Ali como que a cuidar dos livros, do seu repouso entre leituras. Reparei que a linha de saramagos tem os exemplares muito manuseados, embora não tanto como os da linha de josés rodrigues dos santos. Esses mal se teriam de pé não fosse ampararem-se uns aos outros.
E então descobri o que não esperava: a liberdade de trazer todos os livros que eu quisesse (num máximo de seis... de cada vez), autores que nunca comprei mas queria experimentar. Todas as possibilidades, quer dizer, os tais sins, os podes, sem amarras com, um, orçamento disponível e, dois, espaço nas prateleiras. Estou completamente radiante! Trouxe apenas três porque sei da minha lentidão. Portanto agora passeio os "meus" livros etiquetados de códigos cifrados, identificativos de prateleiras, secções, como se orgulhosos do seu lugar, entre Lisboa e Coimbra, dos arredores de uma para os arrabaldes da outra. Estes livros não enjoam no tal do flixbus nem se assustam com as travagens e as pressas, conhecem o chilrear de todos os pássaros de lá naturais, o cheiro das lareiras no inverno e, acredito, o florir das acácias mimosas que, este ano, veio mesmo no seu tempo.

21/01/2024

Os apitos da dona eletrónica

Amadurecida há que tempos na insónia orientada a sul, desejei encharcar-me numa belíssima laranja de mesa (a explicação colhida em Que pressa é essa, João Vaz de Carvalho). O inverno, ao invés, aconchegando-se em parte na escuridão, entrega os silêncios gelados entre as zero e as sete.
Sem saber, tínhamos a comida estragada por uma trovoada à deriva, talvez nomeada, também capaz de agitar o eucaliptal muito senhor em projeto de pasta e de papel assinado. 
O meu problema não é a saudinha, ou sequer o dinheiro. O meu problema é pequenininho. 

19/01/2024

Círculos

Um dia ficarei só para os livros. Abandonarei o horário, e portanto os atrasos de vida, deixarei de ouvir o sino da igreja (que foi entretanto reparado). E de circular pela chuva ou almoçar mais cedo. Um dia serei essencialmente simples. Talvez escreva antes ou depois de jantar, não pretendendo resolver os problemas do prédio.
Mas por enquanto são sete e meia e, ao fundo da rua onde trabalho, há um café. Dentro, o ecrã televisivo ocupa uma grande parede e passa, em círculos, insufladas, as notícias mais chocantes dos últimos dias. À saída, com a boca morna do café quente, antes de enfiar a cabeça na chuvinha que se ouve cair na rua, podemos tornar a esfregar os sapatos no capacho exausto. 

03/01/2024

Nossa! os três pastorinhos

Em Fátima, na rua onde circula este autocarro, há iluminações de Natal que brilham contra o negro da noite de janeiro. Têm a forma de um ondulado substancialmente vertical, encimado por uma estrela e acolhendo nas suas concavidades três bolas que, lentamente, mudam de cor. Olhando-as por entre os bocejos que me saem do sono, ponho-me a adivinhar o caderno de encargos emitido pelos serviços da câmara municipal e que o designer cumpriu lindamente: algo assim alusivo ao lugar, compreende?

(e fotografei um caso que passava por lilás, passava, passava)