a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/12/2015

Mini folhinhas vaidosas (neste blogue os títulos custam muito)

Sinto um prazer íntimo ao colocar um toro de lenha na lareira e só recentemente aceitei apossar-me de razões. Faço-o com a mão dentro de uma luva almofadada para desencorajar completamente uma farpa de se me espetar num dedo e depois fico a velar o cepo enquanto pega as chamas emprestadas dos outros, vultos meio cinzas ainda unas, cinzas vencidas no final deste texto. Enquanto olho a transformação dar-se lentamente, o meu prazer será cruel?, tenho o mesmo pensamento de sempre, que vem em forma de pergunta: alguma vez no tempo ou no espaço de todas as lareiras do mundo, se repetirá a mesma configuração de toros e chamas, exatamente o mesmo número de toros do mesmo formato e as mesmas chamas a dançar a mesma dança, em um dado momento? se sim, então temos infinito não, temos antes um muito círculo teimoso e dele poderão a seguir advir inúmeras certezas quanto a tudo; caso contrário, caso contrário (está repetido de propósito, aplica-se assim). Mesmo que vivesse os quinhentos anos de que me sinto merecedora, nunca viria a saber a resposta a esta estúpida pergunta que não me larga no inverno, angustia-me. Porém, continuo: luva, toro, fogo, olhar, pensamento, pergunta, resposta?, angústia, sai luva, levanta, vai, estende a roupa, ao vento, enche a cabeça, de molas, agrupa as meias pela cor, fecha este ciclo.

Sim, continuarei, em dois mil e dezasseis continuarei a colocar os toros na lareira p'raí até abril, tempo de virem as magnólias conversar comigo, o prazer íntimo, queria eu dizer, vem desta conversa da Terra, murmúrios azuis doutras ondas que me chegam ao âmago e me pedem isto e aquilo, e eu dou isto e aquilo, o toro na fogueira, a roupa ao vento, o fechar dos ciclos.

Por causa destas brincadeiras, fiquei amolecida e hoje quase comprei uma árvore anã em Coimbra, tive mesmo um impulso para ela, detive-me ali à sua frente, ai que é isto, mas segurei a mão direita com a esquerda a tempo de nada disso. Aquilo irrita-me, as bonsai, sempre me irritaram, as coisas são mesmo como são, e fazê-las mirradas é estúpido, eu amo árvores das grandes e muito e de repente uma dessas atarracadas à força caber-me-ia à janela, em qualquer janela, do lado de dentro, é que eu ia amolecida, mas não. Não comprei atarracadinha-lingrinhas, deixei-a lá com as suas mini folhinhas vaidosas a brilhar. Ali, na grande superfície onde estávamos as duas, debaixo das luzes branco-gelado-tipo-frigorífico que iluminam a grande área comercial que por sua vez vende grandes soluções para a sua casa e o seu jardim, não me chegou murmúrio nenhum, apenas a vontade de sair dali depressa.

28/12/2015

A batata doce


De entre todas as batatas doces que estão à venda na secção de legumes do supermercado, escolho aquela que, na parte mais larga, tem um diâmetro conveniente ao encaixe da minha mão. As batatas doces só o são se entrarem no pequeno mundo em que me movimento sem lhe perturbarem a ordem. Uma batata doce muito fina perder-se-ia mais tarde no seio da caixa de legumes do meu grande frigorífico, sufocada entre cenouras e alfaces, alhos franceses e limões, couves coração e tomates, a batata doce muito fina, que tem uma área de pele demasiado extensa quando comparada com o seu volume, seria rapidamente agredida por estes elementos externos na sua magrinha harmonia, degradando-a. Embora não seja imprescindível fazê-lo, prefiro notar ainda que são todas feias as batatas doces. Foi só alguns dias depois, sem estar planeado – a ordem do pequeno mundo meu só parcialmente é planeada – que me dediquei a ela, a peguei e a lavei debaixo da torneira, com os dedos a esfreguei, e com uma faca a cortei depois, devagar, às rodelas. Para manter a harmonia - vou atrever-me - celeste, as rodelas têm a espessura de um dedo meu medido a olho (também meu). Abri o armário de cima e escolhi o prato fundo que já pertenceu à minha avó e que lhe mereceu muitas vezes o nome de pyrex, põe isso num pyrex, filha, ter-me-ia ela dito agora, e eu obedeci dispondo as rodelas sem as atropelar umas com as outras, encostando tangencialmente a pele de uma e de outra rodela, acomodando-as assim. Com a voz da minha avó ainda a soar dentro da minha memória, põe isso num pyrex, filha, coloquei o prato dentro do forno micro-ondas e liguei-o. Nos minutos seguintes a esta cena, se tivéssemos um microscópio capaz, veríamos como as ondas micro mergulham para dentro das moléculas de água que calhou pertencerem a estas rodelas de batata doce e não a outras, e nelas chapinham de forma também ordenada, veríamos que minimalmente quantificada, micro-magia que excita muito as moléculas de água, seria então uma alegria que nos faria exclamar ahhh e ohhh observar os hidrogénios e os oxigénios vendo as suas quenturas subir docemente a um nível maximal. 
Mas não temos um microscópio capaz. Ao fim de vinte minutos ou vinte e cinco, abro a porta do forno micro-ondas e dos meus olhos nus vislumbro os calores translúcidos emanando das rodelas agora macias de um cansaço feliz, um pouco coradas, bastante transpiradas de todo o micro-bombardeamento que lhes excitou as aguinhas e retiro uma do prato fundo. A rodela esquentada morde-me os dedos que, com um jeito certeiro, lhe despem a cinta de casca e, assim pelada, a levam perto da boca. Sopro-lhe então doçuras minhas, faço-lhe um pedido de arrefecimento simples e só depois, suavemente, lhe enterro os dentes.

26/12/2015

Mesmo que traga o iva eu quero

Ouvi a mensagem anunciar-se no telemóvel havia já um bocado de tempo durante o qual continuei a ler o livro sem me alterar. A janela que deita para a serra deixa-me ver as pontas das folhas da palmeira alta que sobreviveu ao abandono de décadas e depois às obras de reconstrução desta ex-ruína, e que, esta manhã, se agitam muito com o vento. Não encontro em mim a urgência do contacto permanente com o mundo exterior conhecido, não me lanço em ânsias de ler a mensagem. Foi apenas quando fechei o livro para iniciar as tarefas do dia, que me quedei um pouco tentando adivinhar o remetente. Ora num dia de acalmia após as turbulências festivas talvez seja da Raquel, que não me respondeu à mensagem de boas festas e é seu hábito responder tardiamente. Das minhas filhas não será, que ainda dormem no quarto ao lado: imagino-as de olhos fechados, tranquilas, os cabelos longos e encaracolados espalhados pelas almofadas, são quase iguais os cabelos das minhas filhas, então talvez seja do pingo doce anunciando uma baixa extraordinária do preço do quilo de borrego, que eu nem morto nem vivo compro borrego ao quilo, mas pode também ser da fnac, dos livros e suas promoções só para pessoas que não sei quê e isto, caramba, isto aborrece-me, não sei se mais se menos que as mensagens de boas festas por atacado, vindas de quem as envia para toda a sua lista de contactos à qual eu pertenço por acasos da vida, aquilo entope as vias dos operadores de telecomunicações e pessoas como eu não valorizam mesmo nada essas mensagens por atacado, até ficam a considerar um pedacinho menos quem as envia, pensando bem prefiro saber do preço do borrego ao quilo, sempre acho tanta graça aos borregos.

Levantei-me e aprovisionei o telemóvel para ler a mensagem, errei. Nem Raquel nem livros nem borrego, a rádio popular optou por vender os grandes eletrodomésticos em promoção, tanto pode ser um frigorífico como uma máquina de lavar, o iva nestes dias está de férias. Mas do que eu preciso agora é de um telefone novo, um que venha com filtro de spam de mensagens, já com certeza há desses, e mesmo que traga o iva eu quero.


(a fotografia tirei-a a meio do post interrompido por motivos evidentes; a palmeira referida desta vez não quis ficar e o vento também não)

24/12/2015

A todos um Natal Feliz

Também neste blogue, enquanto as filós se aprontam e o bacalhau está quase, fica uma mensagem de Natal para todos. Uma do tipo à-antiga, cuja ideia muito boa foi copiada daqui.



(a máquina fotográfica não quis focar tudo, porquê não sabemos e pelo incómodo pedimos desculpa)

22/12/2015

A banda

Desde há um tempo que não consigo escrever do fundo, entrar nos meus confins e escarafunchar em busca de tesouros, o que me sai é raspado com esforço da superfície da pele e depois vou compor sem graça num retângulo igual a este em que escrevo agora. Tenho muita pena de ficar assim desagregada em duas partes, a casca e o núcleo, que deixou de estar ao meu alcance. Causa-me a situação um tom esverdeado no rosto, muito feio, que vejo ao olhar-me no espelho da casa de banho lá no trabalho. O verdadeiro espírito do natal não me entrou como de costume, ainda não me bateu a espécie de amor pela humanidade em geral, o desejar boas festas a torto e a direito mas do coração, o caminhar a sorrir por defeito, tudo isto era assim e nada disto está sucedendo. Hoje até dei um salto acrobático à hora do almoço ao centro comercial e em duas lojas comprei cinco prendas, estou quase lá que eu no total são mais de trinta, e quando estava já de volta ao carro, esbarrei na Margarida, olá, disse-me a Margarida e eu mas donde a conheço, esta moça, ah! conheço do trabalho e claro que ali nunca a tinha visto, no centro comercial, de férias, informou-me, e então a ela sorri e dei as boas festas, por acaso simpatizo mesmo com a Margarida, mas o natal nem aí, de sacos de presentes na mão, me entrou de frente, portanto durante a tarde tentei rodear-me de jingle bells dos bons e tudo, mas acabei n'"A banda" do Chico Buarque que é o melhor jingle bells que podia haver afinal, principalmente a parte do velho que se julga moço e sai dançando na rua e se alguém estiver a fim é aqui se faz favor.

De maneira que às vezes apetecia-me ser brasileira e fazer-me bonita, dizer-me: deixa p'ra lá não esquenta a cabeça não (aposto que voltava a ter o rosto cor de rosa). Por exemplo, a dona Rita, que é brasileira e limpa o escritório lá do trabalho, assoma à minha porta com as luvas de borracha amarelas e, toda bem disposta com o seu rabo de cavalo loiro a dar a dar, diz-me que é um calor humano que dali vem. Mas não é. O calor que dali vem, de dentro da minha sala, é do aquecedor elétrico. Que faz vzzzzzz o tempo todo sem parar e só foi interrompido quando eu toquei "A banda" do Chico Buarque e acabei me consolando um pouco com a parte da moça feia que vai à janela e pensa que a banda toca para ela.

20/12/2015

Um livro que não faça chorar

- Chegou a ver-me do livro?

A dona Esmeralda é daquelas pessoas que acorda às cinco horas da manhã desde antes de ela própria ter nascido e que nunca se atrasa em nada, tudo o que faz é para adiantar, prepara o dia seguinte porque se cá já não estiver, ninguém terá de fazer o trabalho por ela, esfrega e lava diariamente o que a meu ver seria feito de acordo com a necessidade a cada três dias.

- Não, dona Esmeralda, esqueci-me, desculpe. Trago amanhã.

Eu nasci depois do tempo, creio estar sempre em atraso, não me levantei nunca às cinco da manhã senão quando o telefone tocou com a pior notícia da minha vida, vivo desde que me lembro numa espécie de certeza de estar em falta, mas isso talvez se deva apenas ao facto de receber da vida mais do que dou. Não me tinha verdadeiramente esquecido do livro, mas precisava de mais tempo para o escolher, caso que não quis explicar-lhe naquele momento em que ela varria o chão da cantina e eu passava com um café na mão e a urgência do trabalho à espera.

- Não faz mal, se me trouxer para o fim de semana pode ser, não é pressa.

A filha e as netas da dona Esmeralda orbitavam em redor dela e da sua cozinha até há dias. As voltas que a vida dá sem lhe serem pedidas, levaram o orbitar da sua família para longe, sobretudo longe para quem terá de se servir de comboio, barco e autocarros para as visitas, que não podem ser frequentes.

- Trago amanhã, dona Esmeralda - prometi.

A cozinha é, como sabemos, o coração de uma casa, é nela que nasce o aroma do café e o da laranja acabada de espremer pela manhã, é ela que inspira as melhores conversas, foi nela que criei este blogue, entre o fim de um jantar e o arrumar da loiça. Imagino a cozinha da dona Esmeralda sempre quente e arrumada, um rádio ligado baixinho em cima de um naperon branco feito por ela, em crochet, em serões frente ao televisor no tempo em que o marido era vivo. O rádio ligado baixinho não imagino, é verdade, no momento em que me pediu um livro, um que não faça chorar, um que seja levezinho de ler, está a ver? contou-me do rádio, eu disse que sim, que estava bem, nada de livros que fazem chorar, o rádio fica ligado para o canário se distrair, coitadinho, o dia todo sozinho, o irmão deu-lhe o canário para compensar o vazio que agora o livro deve ajudar a preencher.

Visitei as minhas estantes de livros com os requisitos da dona Esmeralda em mente, este não, ela vai chorar, aquele talvez seja muito rebuscado, este aqui não me parece que lhe capte a atenção, precisei de mais tempo do que esperava para me decidir, na verdade foi tarefa muito mais difícil do que supunha. Escolhi dois para aumentar as minhas possibilidades de acertar. Um livro de contos da Isabel Allende que li muito antes de ser mãe e me fez desejar ter uma filha - vim a ter duas - e o livro das pequenas memórias de Saramago que a mim fez chorar mas talvez a ela não faça. Não podia emprestar-lhe livros que não me tinham marcado o coração. Expliquei-lhe no dia seguinte, no cantinho do café onde a apanhei depois do almoço dela, que esse sim é tarde, a seguir ao de toda a gente, os meus porquês de lhe ter levado aqueles dois livros.

E agora estou aqui a pensar que, indo o fim de semana a meio, talvez um dos livros também já o vá e mal posso esperar por segunda feira para saber qual.

15/12/2015

Vertigem

Sempre me lembro de carregar o medo de me deixar cair no puré morno interior e escuro, sem fim, que sabes, este que mantenho especialmente fechado dentro da caixa forte em aço escovado para nem sequer brilhar. Nela sei aprisionar a voz dos séculos que desdobrada lê mensagens de outros milénios nossos e mais nada agora para não doer. Confere-me, porém, a certeza de ser imortal. Por causa da vertigem que vem toda de mel, que me queres escorrer lânguida para o milenar eu, é que tenho o medo. Pode cá haver dentro essa poesia, isso pode. Essa tão quente e cheia, que se me perco engolida nela é por inteiro que vamos e depois é capaz de, quando eu regressar, o pobre mundo já estar rodando em dois mil e duzentos pedaços a sul, e ao erguer-me? serei atingida por um vazio estranho de um tempo sem nós, desmoronado. Portanto finco-me à superfície do eu, não caio não. Sei parecer a olhos muitos algo quase nada, um todo murcho, um ramo seco ante ideais gravados em promoção nas capas brilhantes de folhetos grátis, personagem sem nome, sei parecer, e sem unicidade, um programa fictício de domingo à tarde, um arrancar de bocejos às pedras.

Levo-me pois à cozinha. Ponho a cafeteira a funcionar – o anteceder do café é sempre feliz - e deixo-me já tomar pelo aroma que mergulha-me bem, entras-me logo sem medo neste toda-eu sem fim.

Sento-me com a chávena a fumegar delícias frutadas de alívios indefinidos para me pôr a escrever devagar sobre a luz. Não essa tua do olhar, mas a do farol do meu carro que finalmente se fundiu, eu sabia - é a oficina, o pagamento, o número de contribuinte e um suspiro furtivo: porque à tona fico, embora mortal, a salvo de mim.

10/12/2015

Incubadora de posts dá nisto

Voltei a usar o meu caderno de notas para incubadora de posts, daqui em diante acabou-se o ai-eu-não-me-esqueço. Esqueço. As ideias são tão perecíveis como a flor da magnólia ou os morangos.

Posto isto - brincadeirinha com a palavra - posto isto:

Hoje jantei sozinha, quer dizer, com um livro. Mas um livro de tal maneira grosso que não queria manter-se aberto com o peso próprio das duas metades, não obstante uma bem maior que a outra, e fechava-se enquanto eu cortava o frango com os olhos no prato. Meto-lhe, então, depois de o voltar a abrir, o comando da televisão atravessado em cima das páginas abertas, mas o pobre também não tem peso próprio para desempenhar a tarefa e o livro dá-lhe uma dentada franca, chláp. Considerei ir buscar mais comandos de televisão, da playstation três, etc, devo ter uns seis em casa ou sete se contar com a wii, mas devido a não serem transparentes, a leitura tornar-se-ia impossível ou muito difícil entre duas garfadas bem cortadinhas de frango junto a um livro coberto de comandos remotos atravessados.
Mas vamos ao ponto. Acabei então de comer sem ler e no fim sobrou um bocado do vinho no copo, perfeita ocasião para dar alimento finalmente aos meus famintos olhos. Começámos, mas o vinho pediu um pedaço pequeno de chocolate negro para brincar na boca. Dei-lho, até lhe dei dois, para ele sossegar e me deixar ler. E então, às linhas tantas, solto uma gargalhada muito boa, tão boa que me lancei em notas na incubadora de posts por causa dela. A magnífica Clarice Lispector estava a contar-me na página aberta que usa máquina de escrever (o meu nível de interesse sobre a questão intensificou-se porque aquilo foi escrito enquanto eu me incubava dentro de minha mãe, fiz as contas), e usa máquina de escrever no colo. Como se a máquina fosse uma pessoa. Que a máquina lhe provoca pensamentos e sentimentos, que lhe capta subtilezas e, depois, a gargalhada minha aqui: "Eu gostaria de dar um presente a minha máquina".

Quando parei de rir, disse à página aberta que adoro isto de oferecer presente a máquina de escrever, que ela é maravilhosa por se lembrar de coisa assim, que se eu pudesse ir ver a Clarice ao Brasil eu ia, mas lembrei-me de repente de uma coisa. Eu já fiz pouco, gozei mesmo a sério, quase achincalhei, em outros natais, as minhas duas irmãs que tinham cães, cada uma o seu. Só porque elas ofereciam presentes aos cães. Ao próprio e ao cão-sobrinho. E isto eu sempre achei parvinho. Mesmo mesmo parvinho. E só conto hoje aqui no post porque agora já não acho.

08/12/2015

A professora de matemática

Lembro-me bem dela, chamava-se Helena e o nome assentava-lhe bem, pela elegância. Eu tinha onze anos e ela era alta, o seu cabelo bonito. Era a minha professora de matemática. Mandava-nos ao quadro fazer exercícios e falava com voz firme, quente e calma. Era mulher que me inspirava respeito e admiração, era muito bonita a professora Helena e eu queria ser como ela. Naquela altura eu tinha - tínhamos todas, era uma moda - um livrinho de autógrafos. No final de uma aula de matemática, pedi um autógrafo à professora. Ela escreveu que me desejava felicidades na minha vida académica e privada. Fui ver "académica" ao dicionário. A letra dela era alta e elegante, a condizer-lhe com o nome, Helena. Lembro-me que escreveu a azul. Um dia a professora de matemática faltou, um dia, dois, uma semana, ouvimos dizer que estava doente. Doente também eu tinha estado, e as minhas irmãs, o xarope ajudava e as atenções da nossa mãe também, por isso não me importava nada o estar doente, pensava que era normal estar doente. Continuei a correr no recreio com as minhas colegas, a jogar ao mata ou a saltar à corda, que era a minha especialidade. As meias de lã até ao joelho que tínhamos de usar - era um dos requisitos da farda - tinham a mania de escorregar até formarem um fole no tornozelo. Havia muitas meninas a puxar as meias para cima no recreio, uma meia, depois a outra.

Quando a professora de matemática voltou, aproveitei o final de uma aula, aproximei-me da secretária quando ela estava a escrever no livro dos sumários e perguntei-lhe que doença ela tinha tido. Olhou para mim e hesitou. É uma doença das senhoras, disse por fim. Doença das senhoras. Fiquei mais um segundo ou dois à espera de saber qual doença era essa das senhoras, mas ela baixou a cabeça e continuou a escrever. A professora Helena tinha duas filhas a estudar lá no colégio, eram mais velhas do que eu e por isso não me atrevi a perguntar-lhes de que doença das senhoras se tratava. Pouco tempo depois a professora Helena tornou a faltar e veio outra cujo nome não me lembro, nem se era alta ou como era. A professora Helena desta vez não voltou. Soubemos pouco depois que morrera da doença das senhoras. Fiquei muito triste e horrorizada por ela ser tão nova, pensava que só as velhinhas morriam, pensei que se a minha mãe morresse eu também morreria, que uma mãe não podia morrer, era proibido as mães morrerem e senti uma dor aflita e terrível pelas filhas dela, não sabia como se respirava se a mãe morresse, como se fazia para o coração bater. Não me atrevi a aproximar-me delas quando retomaram as aulas, limitei-me a observá-las discretamente no recreio. Mas notei, nestas observações, que elas continuavam a correr como dantes, que as meias também lhes escorregavam para os tornozelos, tal como as das meninas que, como eu, tinham mãe. E que elas também as puxavam para cima, uma meia, depois a outra. E foi precisamente isto que, ao fim de algum tempo, me sossegou.

06/12/2015

O espírito do natal e por que fiz eu um blogue

Num dia em que subi ao escadote cinco vezes, comprei um calendário aos escuteiros à porta do centro comercial, num dia em que temperei o peito de peru para o jantar de amanhã, em que bebi um cappuccino preparado pela minha filha mais nova, num dia em que comprei atacadores para as botas antes de os velhos se romperem por completo, em que ouvi numa loja uma mulher velhota e muito bem arranjada dizer a outra mais nova que quando ele se cruza com ela no elevador, por ter uns olhos azuis que parecem água e um sorriso maravilhoso, ela ganha o dia, num dia assim percebi, numa espécie de epifania de cristal, embrulhada no calor do aquecedor que está junto de mim num sopro contínuo, entre uma linha e outra do meu trabalho caseiro, entre uma nota e outra do concerto para piano número dois de Rachmaninov, sentada no canto onde ainda não está armada a árvore de natal dois mil e quinze porque o espírito natalício não me chegou este ano, ainda não, percebi que o que me levou a criar um blogue não foi a vontade de escrever. Foi uma vontade mais nuclear, mais essencial, foi uma necessidade. A de alargar a celebração da vida para fora de mim. Transbordava eu, sempre foi assim, de celebrações solitárias que caíam ao chão, enterravam-se no cimento das pedras, eram lavadas com a chuva, evaporavam-se no verão, seguiam nas asas das gaivotas que as largavam no mar, fugazes. Ó mãe tu gostas de tudo! disse a mais nova aos quatro anos porque eu todas as manhãs achava a praia linda na fila da marginal, meninas, olhem, a praia está linda (e estava mesmo). Nunca me importei de perder um jogo de cartas ou qualquer jogo, ou em corridas com as minhas irmãs, jamais empurrei as outras raparigas do colégio para subir primeiro na carrinha que nos levava a casa, subia em último mas havia sempre um lugar para mim (apenas tinha mais trabalho em descobrir qual). As minhas celebrações interiores de vida chegavam-me. Chegam-me. Não quis ser a melhor, não me era necessário, continua a não ser, fui algumas vezes a pior e até chorei sem ninguém ver, depois as mãos limparam as lágrimas, o nariz fungou pela última vez e os minutos continuaram a passar, veio um bom e depois mais vieram. E fui uma das melhores num momento ou noutro, dádiva que me fez subir às nuvens de um céu azul. Basta-me olhar ao espelho e constatar que não há ninguém igualzinha a mim, nem entre as minhas irmãs: num caso a voz, noutro as mãos, não mais que isso. Portanto, o meu lugar é meu. Seja ele qual for, na carrinha do colégio, na cadeira em que me sento sem árvore de natal, o Carl Sagan tinha razão, sou única.
E tu também és.
Este momento que partilhamos porque nascemos no mesmo século (tens entre quinze e cento e quinze anos?), estamos aqui no mesmo tempo, entendemos a mesma língua, não te importas de ler o português do acordo ortográfico de que pouca gente gosta e dás a tua voz às minhas palavras: era mesmo isto que eu queria. A celebração já não é minha, é nossa: cresceu, viverá.

(estou aqui estou a achar que isto é amor… mas no natal pode-se, alarga-se o amor um bocado, ninguém estranha nem dá medo e depois faz bem)


(ou seja, acabou de me chegar o espírito)

05/12/2015

Eu serei linda em Lisboa

A luz do frigorífico novo é de um branco-gelado que foge para o azul-glaciar, oscila entre emitir sensações de nave espacial e sala de operações de um hospital perto de si. Cobre-me esta luz oscilante enquanto alcanço o iogurte natural sem açúcar para lhe meter dentro os flocos de aveia simples, os flocos de aveia simples lembram-me os papelinhos tipo confetti que saem do furador de folhas de papel e faço a piada do costume para os meus botões sobre que bom não ter de assinar estes todos, divirto-me muito sozinha quando trago a alma dentro, sendo então todo este preparo em prol de ver se me largo de uns quilos que andam sempre comigo, eu mereço a elegância eterna. Mas vá, neste ponto, e sendo o frigorífico novo muito lindo e metalizado por fora (e é precisamente deste lado do grande eletrodoméstico linha-branca-variante-metalizada que nos encontramos), admite-se uma luz indecisa entre a tal nave espacial e a sala de operações -vou dizer - onde levei uma injeção na pálpebra superior do olho esquerdo por uma pequena coisa que ali estava indevidamente e tudo isto para quê?

Tudo isto para dizer que em Paris fui nova, linda, se fui, ninguém me avisou. Linda é em Lisboa que vou conseguir, como já expliquei com o parágrafo do frigorífico. No entanto, para ser linda depois de nova já não, necessito ocupar-me muito de mim, de forma que para poupar tempo que utilizarei a meu favor vou repostar (postar segunda vez) um dos textos que saíram na altura em que só eu lia este blogue, no qual se pode observar na verdade pura das crianças que de facto nova já não:

Eu ainda não tinha completado quatro décadas de idade. Estávamos as três a jantar, as minhas filhas adolescentes e eu. Elas sentadas à minha frente, do outro lado da mesa. Como gosto de as ouvir e de estimular a sua expressão de opiniões, iniciei uma conversa cujo tema já me fugiu, apesar de não terem passado muitas primaveras desde então. Porém recordo-me que desatei a utilizar tipo isto e tipo aquilo: "Hoje tipo o meu dia foi tipo bom e tipo o vosso?"

- Ó mãe, não gozes, não se diz tipo assim!
- Ah não? Então tipo como é que se diz?
- Sei lá, diz-se, pronto! Não dá para explicar...
- Explicar - continuo a divertir-me - ou tipo explicar?
- Ó mãããããee!!! (coro)
- Pronto, está bem. A mãe está velha e gorda...- rematei, para as deixar ganhar.

Dois pares de olhos bem abertos e sérios a fitarem-me, em jeito de avaliação. Os garfos pararam a meio dos trajetos verticais, cena congelada. Durou uns segundos, garanto.

Depois saiu o veredicto, sincero, claro:

- Gorda não estás...

(este post inspira-se neste outro, que me enterneceu, que gostei tanto de ler)