a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

20/12/2015

Um livro que não faça chorar

- Chegou a ver-me do livro?

A dona Esmeralda é daquelas pessoas que acorda às cinco horas da manhã desde antes de ela própria ter nascido e que nunca se atrasa em nada, tudo o que faz é para adiantar, prepara o dia seguinte porque se cá já não estiver, ninguém terá de fazer o trabalho por ela, esfrega e lava diariamente o que a meu ver seria feito de acordo com a necessidade a cada três dias.

- Não, dona Esmeralda, esqueci-me, desculpe. Trago amanhã.

Eu nasci depois do tempo, creio estar sempre em atraso, não me levantei nunca às cinco da manhã senão quando o telefone tocou com a pior notícia da minha vida, vivo desde que me lembro numa espécie de certeza de estar em falta, mas isso talvez se deva apenas ao facto de receber da vida mais do que dou. Não me tinha verdadeiramente esquecido do livro, mas precisava de mais tempo para o escolher, caso que não quis explicar-lhe naquele momento em que ela varria o chão da cantina e eu passava com um café na mão e a urgência do trabalho à espera.

- Não faz mal, se me trouxer para o fim de semana pode ser, não é pressa.

A filha e as netas da dona Esmeralda orbitavam em redor dela e da sua cozinha até há dias. As voltas que a vida dá sem lhe serem pedidas, levaram o orbitar da sua família para longe, sobretudo longe para quem terá de se servir de comboio, barco e autocarros para as visitas, que não podem ser frequentes.

- Trago amanhã, dona Esmeralda - prometi.

A cozinha é, como sabemos, o coração de uma casa, é nela que nasce o aroma do café e o da laranja acabada de espremer pela manhã, é ela que inspira as melhores conversas, foi nela que criei este blogue, entre o fim de um jantar e o arrumar da loiça. Imagino a cozinha da dona Esmeralda sempre quente e arrumada, um rádio ligado baixinho em cima de um naperon branco feito por ela, em crochet, em serões frente ao televisor no tempo em que o marido era vivo. O rádio ligado baixinho não imagino, é verdade, no momento em que me pediu um livro, um que não faça chorar, um que seja levezinho de ler, está a ver? contou-me do rádio, eu disse que sim, que estava bem, nada de livros que fazem chorar, o rádio fica ligado para o canário se distrair, coitadinho, o dia todo sozinho, o irmão deu-lhe o canário para compensar o vazio que agora o livro deve ajudar a preencher.

Visitei as minhas estantes de livros com os requisitos da dona Esmeralda em mente, este não, ela vai chorar, aquele talvez seja muito rebuscado, este aqui não me parece que lhe capte a atenção, precisei de mais tempo do que esperava para me decidir, na verdade foi tarefa muito mais difícil do que supunha. Escolhi dois para aumentar as minhas possibilidades de acertar. Um livro de contos da Isabel Allende que li muito antes de ser mãe e me fez desejar ter uma filha - vim a ter duas - e o livro das pequenas memórias de Saramago que a mim fez chorar mas talvez a ela não faça. Não podia emprestar-lhe livros que não me tinham marcado o coração. Expliquei-lhe no dia seguinte, no cantinho do café onde a apanhei depois do almoço dela, que esse sim é tarde, a seguir ao de toda a gente, os meus porquês de lhe ter levado aqueles dois livros.

E agora estou aqui a pensar que, indo o fim de semana a meio, talvez um dos livros também já o vá e mal posso esperar por segunda feira para saber qual.

20 comentários:

  1. ando com um problema contrário... o de fazer crescer a vontade de ler a quem diz detestar livros :)

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    1. Esse problema contrário eu também tenho, Manel. Não consigo entender quem diz não gostar de livros, não querer sequer tentar.
      Bom domingo.

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  2. É uma boa sensação e é com gosto que o faço mas fico desorientado se mo devolvem dobrado,vincado,sujo.

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    1. Eu fico pior quando não me devolvem os livros. Já aconteceu mais do que muitas vezes. Por isso é que só empresto livros que já li. :-)

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  3. Gosto de emprestar livros e de ler livros emprestados. Estes livros - os que se emprestam e os emprestados - ficam com mais gente dentro porque, quase sempre, são uma possibilidade mais segura de troca de opiniões. O que peço sempre é que não me dobrem as folhas, façam sublinhados, no fundo que os deixem por fora (quase) como os receberam.
    Já percebi que em 2016 teremos uma Dona Esmeralda muito mais multifacetada e polivalente.
    Beijos, Susana.

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    1. Discutir com alguém o mesmo livro que se leu é como viajar em conjunto, há lá melhor coisa que a partilha?

      (ocorreu-me emprestar-lhe o Inquietude... mas vou aguardar primeiro pelas reacções a estes :-))
      Beijos de volta, querida Isabel.

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    2. Eu não sou nada como a Isabel. Sou ciosa dos meus livros. Tenho-lhe um amor. Não consigo separar-me deles. É só estúpido, eu sei, mas tenho esta grande falha ciumenta.

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    3. Uva, não me parece que isso seja uma falha. Eu não gostava nada de emprestar roupa às minhas irmãs, e também não vestia a roupa delas, quando eramos todas mais ou menos do mesmo tamanho. :-) Mas quanto aos livros, é como a Maria diz, emprestá-los pode muito bem ser um acto de amor (mas não os emprestar não será desamor).

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  4. O pior são aquelas pessoas que levam os livros emprestados e nunca mais os devolvem. Tenho muitos livros perdidos por aí...

    www.pensamentoseepalavras.blogspot.pt

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    1. Já somos dois, Hélder. Mas olha, antes isso do que à nossa volta não haver ninguém interessado em livros. Isso é que é triste.

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  5. Eu aposto no da Isabel Allende. Mas não me perguntem porquê. Aguardarei também, Susana, para saber, portanto quer-me parecer que haverá assunto para mais um post sobre a D. Esmeralda, a literata.

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    1. Eu também aposto nesse, Ava. Mas a dona Esmeralda é mesmo surpreendente. Veremos. E sim, claro que haverá post em havendo matéria. :-)

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  6. Também fiquei curiosa com o que a D. Esmeralda vai contar sobre as suas leituras. :)

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    1. Partilharei, Luísa. Se for de partilhar. :-)
      Boa semana para ti.

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  7. Esse Saramago faz-me chorar sempre.
    Emprestar livros, em particular se escolhidos para aquela pessoa, é um acto de amor.

    Beijos, Susaninha.:)

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    1. Creio que esse Saramago das Pequenas Memórias desconstrói muita opinião negativa pré-concebida criada sabe-se lá como que muita gente tem de Saramago sem nunca ter aberto um livro dele.
      "Emprestar livros, em particular se escolhidos para aquela pessoa, é um acto de amor." Que verdade tão bonita, Maria. Beijos de volta, querida Maria.

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  8. Bom,eu nunca lhe levaria um livro do Saramago. Se eu não o consigo ler...imagino que não sou a única! :)

    Beijocas

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    1. Aquele Saramago tem um formato de escrita um pouco diferente dos outros, Teté. E conta muito dele. É um livro lindo. Atrevo-me a recomendar-to. Para quem leu 37 livros em 2015, quem sabe ainda mete mais um... :-)
      (também adorei o Stoner)

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  9. Susana, estou aqui cheia de curiosidade para saber o que achou a dona Esmeralda do que já leu, se é que, entre um afazer e outro, arranjou tempo. Estou mesmo curiosa :-).
    Se não for de partilhar, diz pelo menos se gostou.

    Beijinhos, Susana. :-)

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    1. Sabes, Cláudia, eu não tenho muita esperança que ela goste muito de algum... acho que ela queria mais um livro de romance dos que eu não leio nem tenho. Mas por outro lado, tenho esperança. Já sei por qual começou... :-) e sim, depois conto.
      Beijinhos, querida Cláudia.

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