a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

07/02/2023

Dia de folga

Era domingo e tinha chovido toda a tarde. Quando peguei no carro estacionado debaixo da buganvília sem flores nem folhas, já a noite havia caído. Fiz-me à estrada serra abaixo e Portugal abaixo com destino a Lisboa, onde iria trabalhar presencialmente no dia seguinte. Parei – como tantas vezes – na estação de serviço de Santarém, que é mais ou menos a meio caminho. Ao entrar nas instalações sanitárias, fui recebida por uma quantidade não habitual de sujidade, com falta de papel higiénico e cheiro duvidoso a pairar. Mas ia concentrada em entrar no cubículo que escolhi para o assunto que ali me levou sem tocar nos bordos da sanita com o meu belo e novo casaco compridinho. Em princípio consegui (ainda não estou assim tão gorda, embora quase) e só depois me caiu a ficha, ou seja, me dei conta da situação ali toda esquisita. Não é costume, realmente. O costume é estar o chão limpo, o ar cheirando a detergente de lima-limão ou frescura da montanha e haver papel higiénico. Mas então penso um pouco mais a fundo e batendo com a mão na testa recordo a mim mesma: é dia 1 de janeiro! As pessoas da limpeza (ia escrever senhoras da limpeza) também têm direito a ter este dia de folga!

Saí dali mais contente. As pessoas que limpam as sanitas, o chão e outras porcarias, pelo menos não o fazem no dia 1 de janeiro. E nós, as que não o fazem é nunca, temos oportunidade de sentir a falta do seu trabalho que é tão importante. Essencial. Devia ser um trabalho muito bem pago.

06/02/2023

O puma das neves

Hoje dei boleia à Clara depois do trabalho. A distância que percorremos é tão curta que, se ela caminhasse, chegaria mais depressa à estação. Àquela hora, o rosa crepuscular já no tom da noite, deslizamos devagar na fila compacta, de semáforo em semáforo. Mas como dá para alguns minutos de conversa, eu ofereço a boleia e ela aceita-a. Hoje ia especialmente contente para apanhar o comboio. Mal se sentasse, pegaria no livro que começara a ler de manhã. Perguntou-me se eu o conhecia. É sobre o puma das neves, um felino que vive em terras geladas, muito altas, num lugar que me pareceu inexistente, na China. Houve ainda tempo para ela me mostrar no ecrã do seu telefone como é o puma das neves. Eu estava a imaginá-lo todo preto, mas não. O puma das neves é malhado sobre um fundo de pelo esbranquiçado. Fiquei com vontade de ler o livro. 

(realmente estou no trabalho certo) 


Errata: onde se lê puma deve ler-se pantera.