a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/12/2020

Para a Maria

Pequena reportagem sobre Miss Marble:
Observação de gaivotas através da janela (bastante desperta)

(após uma hora ou duas de) Visualização de filmes de pássaros no Youtube (adormecida)

O gato

O poema começa com Chove nas árvores nos gatos* que desta vez não me deu jeito nenhum ter trazido à memória seguinte a mais uma noite curta o gato magoado. Estava ontem alegre a dispor as cadeiras ao sol do terraço para daquele absorverem o poder quentinho. As cadeiras, varri delas os restos de estarem guardadas no escuro dos encaixes, e também do chão as folhas que haviam chegado no dia anterior. Então vi o gato sair do esconderijo onde se refugiava do mundo e de mim, avaliando mal as intenções da minha vassoura. Saiu a miar e saltou para o terreno em baixo afastando-se tão rápido quanto podia. Levava o pêlo encharcado desde as orelhas à ponta da cauda e coxeava. Não pude salvá-lo de nada, fiquei a vê-lo ir miando infeliz. Desde aí parece que choro escondida, por dentro. Dói-me a dor dos gatos. A dor dos animais todos. Também dos quinhentos e quarenta animais mortos por homens deprimentes, ínfimos de cabeça, zeros de coração. Zeros. 

* "Hotéis decadentes que atendem no Inverno" , in Movimento, João Luís Barreto Guimarães 

30/12/2020

Policultura (ao contrário dos eucaliptos)

De um lado, homens racham lenha, mulheres deitam galinhas mortas à panela e temperam. Do outro, homens ajustam o nó da gravata entretanto imaginária à sexta-feira, mulheres preparam refeições rápidas fotografadas para envio imediato. De um lado é assim, do outro também é semelhante ao contrário.
Separam-nos o oidio do pessegueiro, a colheita do leite para queijo ou tuitadas viajando indiferentes, novidades criadas urgentemente em achetague. Polarizados por dores nos joelhos e joanetes queixosos ou falta de laiques e abundante intolerância, estendem-se entre eles por exemplo cem quilómetros ou cem metros, de profundidade ou à superfície.

(A vizinha inglesa que está furiosa com o mundo não sai de casa. Nem ela nem os seus filhos.)

19/12/2020

Mondkapje

Tampinha da boca é, traduzindo para português em direto, o nome que os holandeses dão à máscara facial contra o vírus. Acho que é por isso que andam muitos com o nariz de fora dela. Tampinha da boca é tampinha da boca, daí o nome. No stand de automóveis, por exemplo, pode notar-se a milhas terrestres que nós portugueses levamos mais uns meses efetivos de experiência profissional no uso adequado do acessório indispensável, que é como quem diz, temos bem metidos os narizes onde eles são chamados. Assim reconheceu o funcionário que veio falar connosco, ostentando na sua tampinha a insígnia da marca automóvel aplicável em redor. "Em Portugal o vírus não se espalhou tanto, tomaram lá medidas mais eficazes", diz, olhando a partir do longe obrigatório para mim. Eu confirmei com um aceno de cabeça para o caso de não se perceber o sorriso escondido até ao nariz, claro está. É próprio deste povo reconhecer as coisas como elas são; sobranceria ou gabarolices tomadas às colheres não se encontram com facilidade. É pois de prever um futuro próximo mais feliz para todos estes narizes, logo logo arrumadinhos sem falta por trás da tampinha da boca.

07/12/2020

Uma miséria de passos: estava a chover

Tanta introspeção, tanta introspeção e - se não tropeçarmos nestes batimentos supracardíacos da pobre língua - corremos o risco de sucumbir. Tipo assim. Fui, agora apessoando a história, apanhada por duas coisas comuns das quais andava a fugir. A fugir em condições bastante sérias! Uma, Netflix. Agora sou pessoa (apessoando) de ver séries, séries! Tento as feias para não me agarrar mas não acerto. A minha autoestima cai na medida do autocontrolo. Nem pensar em me recomendar das boas! E eu que queria era escrever, escrever, isto faz impressão. Duas, um relógio esperto entrou a derrapar pela minha vida adentro e agora não me larga, já não bastava o querido telefone (outro esperto, mas menos, menos). Ou não o largo eu. É que agora sei tudo sobre mim. Por fora e por dentro. Batimentos cardíacos, tipos de sono interrompido, cochilos curtos em português do Brasil, já tínhamos referido esta nomenclatura, idade projetada, muito tempo sentada (my god), quantidade de passos [inserir título], incentivos em palavras lindas, alegres e saltitantes, as coisas que eu consigo, entre outros: um a-m-o-r mas ai, por favor, que venha a ansiada vacina.

(post escrito pelo robot que há em mim, apesar de tanto declarar o contrário)