a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/07/2018

Um aspirador nos degraus e frigoríficos são imensos

Não pegava no computador há muitos dias. A dor que hoje à tarde me chegou ao ombro direito não é daí, por conseguinte. Atribuí a sua chegada ao muito que aspirei ou que esfreguei. Sobre armários, dentro de armários, gavetas, frigorífico. Sou relativamente eficiente nas limpezas, mas custa-me começar (não é a tarefa que mais adoro). Adio: escrevo uma mensagem no grupo do Whatsapp que a minha mãe inventou e que partilho com as minhas irmãs também. Vou à casa-de-banho. A seguir olho pela janela, procuro um pássaro. Despeço-me do jardim da casa. E depois então começo a limpar. Uso luvas de borracha. As amarelas para a cozinha, as cor-de-rosa para as casas de banho. Erik, meu marido, foi para debaixo da casa reparar qualquer coisa no isolamento do chão. É um trabalho que tem de fazer a rastejar. A altura do espaço não permite mais. Quando de lá saiu vinha cansado e bastante sujo, disse que aquele não é o trabalho mais agradável que se pode fazer. Eu nem sequer conseguiria ali entrar, quanto mais fazer a reparação do chão, por baixo, e trazer as armadilhas para os ratos, por usar, felizmente (uma fechou-se com um estalo que me fez dar um salto). Mas ele quer vender a casa no melhor estado possível e faltava ir lá reparar o isolamento do chão. Aspirei os quatro pisos, dentro dos armários e os três lances de escadas. Não é fácil acomodar o aspirador nos degraus: ou aquele é demasiado largo ou são estes muito estreitos. Uma vez - a propósito - caí numa das escadas com o tabuleiro do café. Nenhuma chávena se partiu e eu fiquei inteira sei lá como. Creio que por a escada ser de madeira, acho mesmo que foi isso que nos salvou, a mim e às chávenas, que a desceram alegremente, inteirinhas até ao fim, logo seguidas pelo tabuleiro, este tendo perdido a corrida. Mas deitei fora, nesse mesmo dia, os sapatos que me fizeram escorregar num dos degraus. Resultou a medida: não voltei a cair. Nem sequer com o aspirador às costas, e o cano, e o tubo, tudo, como hoje.

Mas depois do jantar estendi-me no sofá a ler o meu livro. Comprei-o em Lisboa numa hora feliz na Feira deste ano. Hora feliz é a minha tradução para a happy hour que eles têm lá, uma hora com descontos valentes, porém não estou certa de que na Feira a designem assim. Que é uma hora feliz para mim, é.

Ora cá vai então, diretamente da página 81:
“Estamos, contudo, como povo, preocupados com a efemeridade; há imensos frigoríficos.”

Saul Bellow, “Na corda bamba”, Quetzal


Está a ir muito bem este meu primeiro livro de Saul Bellow. 

16/07/2018

Ensaio dum post da má-língua (férias precisam-se)

Mas afinal quantas são as Kardashians, quem são e o que fazem elas, se não fosse pedir muito? Sou amiúde abalroada por uma Kardashian ao fazer os caminhos no ecrã do computador, o qual trabalha quase tanto como eu e sem queixas, ou seja: oh c'amooor! como diria a minha irmã a imitar as suas alunas, mas dizia eu que vou e esbarro numa Kardashian, pum! Deve ser uma coleção extensa. Todas com visual extraordinário embora parecido. Extraordinário de tão artificial, claro. Mas parecido. Se calhar vamos a ver e é sempre a mesma Kardashian (nesse caso, pobrezinha dela).
No entanto, também temos a Carolina Patrocínio, é verdade. Uma pessoa vai a passar para ler as notícias, com licença, e esbarra também muito nela logo a seguir a ter fintado uma (ou a) Kardashian. Pelo menos a Carolina é nossa, ok. Tirando isso…. Desconheço, mas pode ser de não ver televisão, dou sempre essa hipótese. O que faz então a Carolina Patrocínio? Mistério. Tirando ter filhas, claro, que isso já percebi que ela faz. E é bom, aliás é excelente ter filhas, sei do que falo, mas será que é caso para andar todos os dias naquela canseira, ela e nós, constantemente em fotografias, no meio das notícias? Uma pessoa tem de estar sempre a desviar-se dela (e das chatas das Kardashians), pá! 

Bem, prefiro gatinhos. Ou - melhor dizendo - gatos. Prefiro gatos.

11/07/2018

A montanha a Maomé

No início do embarque (lá vou eu) em Lisboa anunciaram que quem quisesse expedir a bagagem de mão para o porão mas livre de encargos, podia. Eu optei por alinhar e tornar-me assim uma passageira mais leve, embora a minha mala azul com rodas nunca ande muito pesada, então se lhe remover o computador portátil de dentro, fica a mala quase mais leve que ele. O voo decorreu numa beleza de voo, livre de turbulência e com um lugar vazio ao lado - dois luxos bastante raros hoje em dia - uma soneca e umas valentes páginas lidas do livro e outras escritas do trabalho. Mas claro que após aterrar houve que aguardar pela entrega da bagagem junto ao tapete rolante, que também nos tempos presentes já costuma ser questão despachada em minutos, não muitos. Ora mal o tapete arranca a marcha para começar as entregas respetivas, eu aproximo-me do movimento que é circular com forma ovalada, o costume, e não passa muito tempo vejo do outro lado da oval a minha mala azul a vir ao meu encontro. Porém, antes do meu encontro tinha a mala ainda outro. Uma senhora que eu já em Lisboa tinha detetado ser portuguesa de gema, lançou-lhe a mão e apanhou a minha mala do tapete, ligeira. Mas não indo Maomé à montanha, vai a montanha ao Maomé, evidentemente, e Maomé está nas mãos desta senhora junto à qual já eu montanha estou, dizendo minha senhora essa mala é minha. Ela hesita em acreditar em mim e vira e revira a mala, deita a mão a um dos fechos, o da bolsa menor, e faz menção de o correr dizendo ao mesmo tempo vamos lá confirmar tirando uma coisa ou outra de dentro da mala.
- Mas nessa bolsa não tem nada - esclareço - mais vale abrir a outra, dê cá que eu ajudo.
Não ajudei, abri mesmo a bolsa maior minha tão bem conhecida e de lá tirei a minha própria agenda muito bonita, que exibi à senhora, vê como não é sua a mala?
- Ah... mas isso...
A senhora tem aqui o marido ao lado e ainda não falámos nele porque ele tem estado a sofrer com a situação, meio envergonhado, meio ansioso, eu noto estas coisas pelo canto do olho, e diz agora o marido, para cortar já o assunto e aliviar a tensãozinha.
- Essa mala não é tua, a tua vem ali, olha! As malas são iguais.

Esperei que a segunda mala azul chegasse a nós três e à primeira mala azul, a minha, e vendo-as ao lado uma da outra pude medir o tamanho do erro que a senhora cometeu.
- Iguais não são - digo - são parecidas. O tom de azul nem sequer é o mesmo.

O marido pediu mais desculpa do que a senhora, eu disse deixe lá não tem importância, e depois segui para as portas de vidro, deslizantes, que dão acesso ao exterior.

05/07/2018

Manuais, manuais

Quando lhe peço para incluir estores novos no orçamento que me vai dar para as obras, o senhor Simões pergunta-me se os quero elétricos ou os mantenho manuais. Digo imediatamente manuais, claro, até me admirei com a questão. Ele toma nota no seu caderno de apontamentos e, inclinando um pouco a cabeça, responde à pergunta que não fiz: os estores elétricos são mais caros. Claro que são mais caros! Com estores de carregar num botão, dar um comando de voz ou mesmo editar mentalmente uma ordem binária (eu gosto de pensar muito à-frente), vamos precisar bastante mais cedo de ir para o ginásio repor os musculozinhos dos braços no lugar. É os estores elétricos, é a máquina de espremer laranjas para sumo, é o aspirador automático que vai sozinho pela casa para não irmos mais longe. Isso é que era bom! (como se costuma dizer)

Mas quando contei à minha mãe, ela fez a cara de achar esquisito e de dizer Ó filha!
E aí eu esqueci-me de referir os vidros elétricos do meu carro, são quatro ao todo e são bons. Esses são muito bons todos elétricos. E mais, só fica a faltar o resto (do carro).

03/07/2018

nanopost ou não há fome que não dê em fartura

não é que eu tivesse muita, mas como eles estavam ali, insistindo num vermelho daqueles no meu campo de visão, comprei os morangos biológicos numa ação que se pode considerar um investimento ainda que a curto prazo e de baixo risco. ok. e agora posso dizer que são tão bons tão bons estes morangos no espetro do tal vermelho mesmo lindo, que me leva a desconfiar disto: não só gosto eu deles muito como também eles gostam de mim.

(a ausência de maiúsculas vem do caráter nano do post, é uma coerência)

Roubar tesouras em restaurantes é feio ou nojento?

Prefiro escrever sobre as belezas pequenas e grandes se for capaz. Prefiro não escrever sobre as porcarias que as pessoas fazem, ou seja, coisas feias ou nojentas. Mas hoje vai ser.

Sentámo-nos na esplanada porque apesar de estar um julho arraçado de novembro, vamos dar-lhe uma oportunidade. Afinal daqui estamos a ver os barcos a repousar na marina uma vez que o sol ainda não se pôs (por ser julho). Fazemos o pedido, escolhemos as mesmas refeições, temos dez dias de diferença de idade (mas isso não interessa muito para o caso, é só que eu tenho a mania dos números e dez dias não se nota nada), a Júlia e eu. Daí a pouco vem o empregado colocar-nos os pratos iguais à frente de cada uma, só que falta o azeite e o vinagre para temperar a salada, o empregado sabe disso e vai já buscar. Volta então com um copinho metálico pleno de pacotinhos na vertical metidos ali todos, pacotinhos contendo os acessórios alimentares que a gente já conhece, a maionese vem junto, o sal confinado aos mais pequeninos que são do tamanho de uma unha de polegar. Levei imenso tempo a descobrir que thumbnail também é unha de polegar, mas isto interessa ainda menos, ando a rodear devido ao assunto ser deste baixo calibre, ou feio ou nojento. Mas então o copinho metálico. Ele traz lá dentro, a fazer companhia aos pacotinhos, uma tesoura de orelhas de plástico. Uma tesoura?! Eu pergunto sempre tudo o que for preciso, não tem problema nenhum. Mas ao perguntar topei a resposta direto: é para cortar o gargalo dos pacotinhos de azeite, vinagre e companhia, porque já se sabe (de outros carnavais, por exemplo) que são dificílimos de abrir só com os dedos, escorregam imenso e até se pode espetar uma unha no dedo do lado, já me aconteceu isso.
- Mas essa tesoura não presta – o empregado é honesto e informa-nos logo.
A tesoura não presta.
- É do chinês… – alvitra a Júlia.
- É do chinês, sim. Antes tínhamos tesouras boas, mas desapareciam muitas, especialmente na altura do regresso às aulas... As pessoas levavam as tesouras, sabem como é… - ele está resignado, encolhe os ombros.
Não, não sabemos como é. Roubar tesouras em restaurantes não sabemos como é.

Quando nos levantámos, quatro horas depois de conversa tão boa quanto este post é feio ou nojento, já a lua tinha nascido e havia fogo de artifício na outra margem do rio em explosões de verde, vermelho e laranja.