a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/12/2018

Crème brûlée

Admirei-me de ver o cão entrar no TGV para Paris, tal qual a gente. E depois admirei-me, lá por alturas de Bordeaux, de ter obrigado a sua dona a apanhar com um plástico as coisinhas que depositou ele própio no chão alcatifado. Não sabia que se podia.
Mais tarde, já em Paris e ao jantar, também me admirei de ver outro cão entrar no restaurante cheio de confiança de cão, com seu dono, e a seguir enroscar-se aos pés deste assim todo todo. Porém neste caso não se registou aparentemente a situação de o dono apahar coisas do chão, o que foi muito bom para mim. Lá ficou pois de focinho entre as patas, deitado quieto, ouvindo, como nós, os Beatles, os Beach Boys e ainda alguns Jingle Bells especiais que enchiam o ar iluminado por luzinhas de Natal dispostas à vontade, umas piscando outras não. Penso que o cão não deu pelas baratas que apareceram, uma na parede, outra a correr pelo chão, à hora da sobremesa. Eu ajeitei-me no banco almofadado de modo a aumentar a distância entre mim e a que cirandava pela parede com as antenas a dar a dar, a meu lado. Estava no fim do melhor crème brûlée que alguma vez comi em toda a minha vida, ou seja, a barata que espere. Prossegui devagar porque foi imperativo fazer render aquela delícia toda ela irreal. E isto (rebobinemos a refeição) já na sequência de uma dourada grelhada proveniente do mercado do dia, diziam, apresentada sobre um arranjo de canas de aspeto natural, que eram para enfeitar, acho eu, uma vez que não tentei trincar nenhuma. A dourada secundada por um ratatouille que me fez duvidar se não estaria eu mas é cheia de fome, senão por que razão este ratatouille suplantaria largo todos os meus (ensaios de, mas empenhados) ratatouilles? e que só veio ficar um pouco mais esquecido na hora de meter a colher na lâmina superior do já referido insuportável crème brûlée, que estalou e se deixou misturar com o creme que lhe dava o sustento e que agora revela a minha ausência de possibilidades para descrever tal semelhante aquilo, de tão bom que era. Só me está a faltar mencionar o vinho. Um tinto de uma das castas que a gente ouve falar por aí e que eu desdramatizava cá para comigo (vinho é vinho, ora!) achando que por muito magrot não-sei-quê que seja, não se irá destacar de um qualquer Alentejano bem colhido, mas afinal tanto me enganei! Destacou-se bravo o tal vinho, uma suavidade, uma leveza, uma altitude.

De tanto esperar, a barata da parede escondeu-se atrás de uma fenda que acompanhava a tomada elétrica mais próxima, a do chão fugiu e eu esqueci-me logo imediatamente mas foi das duas.
 

28/12/2018

Qual pouca terra pouca terra (kadum kadum)

Então, pelo andar da carruagem, concluí que me estava seriamente a candidatar a finalmente cumprir aquilo que foi, pela sua ausência no meu currículo à data, objeto de gozação pelos meus colegas de faculdade: fazer uma direta. Ou seja, não dormir toda a noite e seguir em frente para o dia. Deitada perpendicular ao comprimento do comboio, o kadum kadum ininterrupto e todo ele tão sonoro, levou-me, a meio da noite, a colocar esperançosa as espuminhas nos ouvidos a ouvir que tal. Diz na caixa que reduzem em 36 decibéis o ruído exterior, o que não é nada de se deitar fora. E de facto, depois de se ajeitarem dentro dos ouvidos, expandindo-se, as espuminhas realmente fizeram um serviço: o ruído estrondoso passou a tipo cantar de rouxinol ao longe. Todavia, kadum kadum Espanha fora quer dizer que nem só o ruído esteve presente. Houve também o chocalhar constante do referido andar da carruagem que quase me virava na cama sem eu querer, em cada travagem. Nessa altura lembrei-me que talvez um bebé chorão se acalmasse naquelas condições agitantes. Aliás, posso dizer que há dias, numa paragem acidental em frente a uma montra de artigos para bebé num centro comercial de Lisboa, vi uma novidade muito estranha. A novidade consistia num dispositivo semelhante a um berço dependurado de um pé alto que subia, descia, dava um jeitinho à esquerda e outro à direita e tornava a subir e a descer e assim sucessivamente sempre igual, isto tudo com um bebé de plástico dentro para a gente perceber a ideia. Era uma embaladora de bebés, olha que engraçado. Bah!, disse eu cá para os meus botões. Os bebés vão perceber perfeitamente que este embalar mecânico nada tem de braços quentes de mãe, pai, avó, etc. Vão ainda berrar mais alto, estou em crer. Não comprei.
Dediquei-me então, voltando à noite passada perpendicularmente ao comboio, a escrever mentalmente este post e o anterior para agora, a estas horas, os dar pois à luz.

(mais tarde, o andar da carruagem amainou e eu consegui pregar olho já o sol raiava; ainda não foi desta a direta, é o que é)

Uma precisão

O vizinho inglês que se não-brexitou, tendo voltado até, com toda a família, a habitar a serra que houvera abandonado dois anos atrás, pintou, entretanto, a sua casa. Desta maneira, toda de branco para quem vê de fora, a casa quase se podia referir como casinha. Para acolher um melhor cenário, a designação casinha incluiria uma chaminé a fumegar e alguns vasos de sardinheiras de um vermelho vivo alindando o rodapé. Não é o caso, porém. A casa, isso sim, abandonou o ar de estou-aqui-estou-uma-ruína, tem dois pisos e nenhuma flor que se veja (ou cheire). As portadas das janelas parecem agora, verdade seja dita, muito mais à esquadria e, até, os vidros se apresentam lavados. Foi uma grande melhoria! Não avistei o vizinho para lhe dizer, vizinho que bonita ficou a casa (e não casinha). Nem sequer o vi passando, como da outra vez, com uma cabra pendurada por dois pés a berrar chateada que nem um perú, isto a propósito de Natal. Aliás, das cabras deste vizinho, que já sabemos serem quatro, nada se pôde ouvir, mesmo estando à coca. Contudo há esperança de se encontrarem estes caprinos de plena saúde, a avaliar pelos seus pequenos detritos sob a forma de bolinhas pretas muito bem feitinhas que pululam rua abaixo e das quais me dediquei a desviar respeitosamente os pés com uma precisão.

21/12/2018

Aos sete minutos

Passam sete minutos da meia-noite e eu gostaria de contar como, no caminho da mão para a boca, um dos dois minicomprimidos que tomo a esta altura para que a minha vida seja ainda mais fácil e maravilhosa do que seria sem eles, me salta para o soalho e primeiro tic tic. Depois drrdrrdrrdrr de forma continuada por um tempo interessante, o comprimidito redondo (lógico) rolou atravessando todo o campo chamado debaixo da cama e foi encontrar-se com algum obstáculo que o silenciou. Não o vi, eu. De joelhos e contorcida, varri todo o chão do tal campo chamado debaixo da cama e também arredores com o olhar, que já foi melhor, mais cheio de acuidade, e não o identifiquei. Devido a ter os comprimiditos (são mínimos, ok) contados, fui buscar um outro ao alvéolo plastificado próprio contrariada e tomei os dois quanto antes (glup). Também queria contar que logo a seguir, no momento em que ia para pendurar o cinto das minhas calças no seu cabide dentro do roupeiro, dei com certeza um pontapé no coisinho e de novo drrrdrrrdrrr o ouvi, ele retomando o rolanço. Agora é tarde (já passa da meia-noite). Pelo som, penso que se meteu debaixo do baú que veio dos meus avós e tem o interior todo forrado de uma flanela verde bastante macia.

18/12/2018

Toma que já almoçaste

Precisamente ao almoço, reparo que as gotas de chuva que escorrem no vidro da janela, pelo lado de fora (informação redundante, é verdade), escorrem a uma velocidade maior do que aquela a que gotas de chuva em geral escorrendo por vidros exteriores de janelas já me habituaram. Observei durante um momento suficiente para confirmar a minha suspeita: sim, a velocidade está nitidamente diferente, mais vivaça, as gotas colidem com o vidro, esborracham e não hesitam nada, zzzzzz por ali abaixo todas num instante.
- Devem ter posto nos vidros um produto que reduz o atrito da gota de água com a superfície vidrada, um abrilhantador ou isso– digo à minha filha Muzi, a mais velha das duas, sentada à minha frente.
As janelas pertencem ao estabelecimento onde estamos a almoçar ambas e são gigantes.
- Ó mãe, tu és mesmo nerd.
Nerd.
E não contente com isso, acrescenta.
- Se eu te tivesse conhecido nos tempos de faculdade, acho que não ia gostar de ti.
Não doeu muito. Aliás nem doeu nada. Primeiro, fiquei feliz por a minha Muzi ser livre de me dizer o que sente sem medo de me magoar, segundo, fiquei ainda mais feliz com o remate final.
- Eras nerd mas devias ser fofinha, mãe!
E, a rir, pôs a mão dela em cima da minha.

Nao pizar

Este post continua do anterior, para variar. 
Quando cheguei a casa, depois do dia de trabalho todo longo seguinte, e ainda antes de remover o casaco que descobri ser demasiado pesado para o promover a perfeito, ainda antes de o remover e aos sapatos, abro a porta da casa de banho (afinal casa de banho é sem tracinhos, felizmente) a ver a evolução dos trabalhos feitos por Vladimir. Logo junto à porta, do lado de dentro, no chão, colado com fita adesiva, está um bocado de cartão que antes houvera embrulhado os ladrilhos e que tem a inscrição “Nao pisar” com a inscrição “Nao pizar” sobreposta à primeira, sobreposição esta que resulta no facto de a letra Z estar desenhada com veemência e muito mais gorda que as outras, por sobre o S, não sei se me faço entender. Também se pode ver uma seta bem marcada a apontar para dentro da casa de banho (o trabalho que os tracinhos davam). Mas então, fico toda com os pés fora do local proibido por Vladimir, ou seja não me mexo dali do lado de fora da, se fosse no Brasil seria banheiro, mas aqui temos é casa de banho, e não me mexo para garantir a manutenção das condições que ele lá deixou, no seu chão. Nosso. Quer dizer, meu.

Na manhã seguinte, às oito e vinte e oito, é mesmo às oito e vinte e oito, não falha, está o fenómeno já sendo um caso de estudo cá em casa, Vladimir toca a campainha e eu abro, visto já me encontrar praticamente com a mão na maçaneta da porta àquela hora. Minuto. Àquele minuto.
- Bom dia, Sr. Vladimir! 
- Bom dia, bom dia. 
- Não pisámos o chão, vimos a sua mensagem.
Vladimir estaca, pensativo.
- Ah, sim. Obrigado... Mas eu penso depois que “pizar” não está bom, que pisar pode ser escreve com S. Minha cabeça, eu não sabia, mas penso com S, depois penso. Desculpa.
- Tem razão, pisar é com S. Mas nós percebemos, não se preocupe.

Mas não lhe disse que “Nao” leva til. Porém penso que devia, não devia?

13/12/2018

Ossos do elefante

Discutia com o gestor da obra a cor da massa a colocar entre os ladrilhos da casa-de-banho a refazer toda ela de novo após o desmantelamento global. Eu não houvera pensado de maneira nenhuma com antecedência na cor da massa para entre os ladrilhos, isto dito por forma a dar a ideia melhor.
- Quer branca, marfim ou mais acastanhada? – pergunta-me o gestor da obra.
Estou a processar as imagens que me correm na mente mostrando o efeito de cada uma das cores mencionadas, tentando apurar a vista da imaginação para detetar as diferenças, e o gestor da obra, com a sua experiência larga em detalhes semelhantes a este, vem em meu auxílio.
- Olhe que o marfim fica muito bem.
- Pode ser o marfim, então.
Vladimir, o trabalhador que vai colocar a referida massa, aguardava o resultado da conversa em silêncio, coberto de um pó muito branco que lhe descolora o já russo cabelo e pestanas também.
- Marfim – ele repete – essa é cor quê?
- Marfim, Vladimir, é uma espécie de branco. Branco sujo. – diz o gestor da obra apontando para a porta da casa-de-banho, presente, e em branco (sujo?...).
Vejo que para Vladimir o tal de marfim ainda não está claro (mas claro que deve ser do sujo).
Eu, que já simpatizo com este cidadão russo parcialmente aportuguesado devido ao tempo, por exemplo por chegar Vladimir dois minutos antes da hora combinada, impreterivelmente, e trabalhar dez horas seguidas se não contarmos com a interrupção para o caldo que come aquecido no micro-ondas e que ainda ninguém conseguiu ver portanto pensamos ser um caldo magro tal como é o seu comensal, ajudo.
- É a cor dos dentes dos elefantes. O material dos dentes dos elefantes é que é o marfim… - não posso garantir que não tenha aqui ilustrado com as mãos o desenho, no ar, dos dois dentes de elefante de que eu disporia se fosse um.
- Sim – o gestor da obra parece impressionado – é isso Vladimir, os dentes dos elefantes!
Vladimir está a observar o teto da casa-de-banho, pensativo. E de repente exclama.
- Ah! Então esse país o Marfim de Costa, já percebi!
- Costa do Marfim – diz o gestor da obra.
- Isso. Nós dizemos no russo Costa de Dentes do Elefante. Se você traduzir mesmo traduzir.
E, logo a seguir.
- Não. Não é dentes do elefante... Se traduzir mesmo traduzir é ossos do elefante. Em russo dizemos Costa do Ossos do Elefante. Já percebi!
Depois, parecendo animado, retomou o trabalho. O seu dispositivo eletrónico pendurado no parafuso sobrevivente do recente desmantelamento da já conhecida deste post casa-de-banho, segue emitindo, também ele debaixo de uma camada de pó, baixinho, uma música clássica.

Antes de sair, o gestor da obra, que é patrão de Vladimir, para um segundo à porta e diz-me em voz mais baixa, um nada solene, ele ouve música clássica.