a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

25/03/2022

Café geométrico em espécie de diário

Eram sete e meia e estava eu em frente à máquina do café a deitar os olhos à rua enquanto iniciava a nossa interação mulher-máquina matinal em paz. Pelo canto do olho vejo algo diferente mexer-se sobre o relvado da casa ao lado, algo em tons de castanho e sem dono a passear na rua nem trela. Invocando mentalmente os frequentadores habituais destes relvados, recordo que as gralhas são negras, as pegas rabudas negras e brancas se não mencionarmos o azul-noite-metalizado que lhes desponta subtilmente na cauda, os pombos cinzentos. Virei então a cabeça na direção do vislumbre castanho. Uma lebre! Vem a saltitar pelo relvado fora e depois atravessa a estrada. Parece-me magra e alta, até creio ver-lhe o desenho do esqueleto. Meteu-se primeiro no jardim dos novos vizinhos, mas depois continuou para o dos vizinhos da frente. Vinha de novo a surgir no meu encantado campo de visão como se pretendesse tornar a atravessar a estrada para este lado, só que viu-me e parou. Mesmo assim, estando eu ocultada pelas persianas abertas a meio gás, por trás da janela da cozinha, ela viu-me. Então recuou metendo-se atrás de uma sebe talvez demasiado geometricamente obtida para um animal sem dono. Esperei uns segundos, mas a lebre deixou-me plantada. Fiquei pois reduzida à chance de observar como o vizinho da frente, dono do jardim que acolhe o animal, aproveitou o espaço livre que guardei à direita do nosso caixote de tampa verde quando ontem à noite o fui encavalitar na berma do passeio, para alinhar muito bem os seus dois exemplares. Já reparei: quanto mais geometricamente feito está um jardim, mais lixo verde produz e isso revela-se proporcional ao número de caixotes que se possui. Acordaram então ali todos três prontos a ser esvaziados pelo braço mecânico que passará daqui a pouco para lhes dar completamente a volta.


22/03/2022

Magnólia em espécie de diário

Finalmente fui fazer a caminhada normal. Não sem primeiro me dedicar a fotografar a pequena magnólia comprada o ano passado em fim de época e em saldo, a qual está a prometer na forma de botões oblongos umas onze flores se não falhei a contagem. Mas voltei para trás junto à casa do cão grande e preto e velho, porém com voz grossa. Decidiu vir para mim lançado a ladrar e como a casa não tem gradeamento algum nem o cão trela, era o cão ali e eu aqui com um bocado, pouco, de arzinho fresco da manhã pelo meio, dei meia volta com o coração mais acelerado e só fiz quatro quilómetros.

No caminho cruzei-me com o novo vizinho da rua. Eu a dizer-lhe bom dia efusivamente e ele a dever nada aos acenos, sorrisos ou afins. Esquisito.

Uma das coisas de que gosto nos blogues é não terem o lixo visual em torno do que se quer ler, tal como têm os instas e os twitters. O facebook também aposto. É tão limpinho ler num blogue. O ecrã não mexe sozinho e não tem publicidade nem coisas a piscar e a meterem-se-nos à frente dos olhos para a gente comprar. Por acaso adoro. Mas gostava de saber se continuam felizes as pessoas ex-blogueiras que foram morar essencialmente para o insta e têm de processar toda aquela parafernália de poluição, tipo imenso. 


Atualização posterior, a magnólia 3 dias depois (para a Sandra Martins):


13/03/2022

Espécie de diário

A senhora que passeia o seu caniche de bicicleta passou hoje de manhã na rua enquanto eu organizava a cozinha à janela. Lá ia o cãozinho a correr a correr. 

No meu novo quarto de trabalho, no piso de cima virado a poente, o sol da tarde incentivou nove joaninhas cor-de-laranja a fazerem-me companhia. A primeira pus lá fora com cuidado e um lencinho, mas precisei de reforços quando o resto da família apareceu. As joaninhas, quando se sentem ameaçadas, cheiram a relva cortada misturada com seiva de chorão. Não sabia e não abrem o apetite.

No caminho de regresso do supermercado, bem feitinho a pé para constatar os despontares primaveris nos jardins, cruzei-me com o enorme gato amarelo. Ele pôs - se a jeito no murete holandês e eu apresentei-lhe a minha mão portuguesa. Nela roçou a cabeça de vários ângulos e apanhando todo o seu encorpado pescoço com colar de guizo incluído. Claro que não me importei. 

As placas esponjosas e coloridas de material isolante sonoro que Erik comprou para forrar paredes e tetos são feitas de roupas recicladas. Apetece combiná-las por cores tão lindas se puseram.

Caída a noite, é hora de pôr na rua, geometricamente alinhado, o contentor de tampa azul. Amanhã é dia de passar o camião que leva o papel e o cartão. Ponto. 

E vírgula: adenda ilustrativa já a seguir para atalhar pesquisas no google.


11/03/2022

Verde, com quadradinhos, e um coração tão grande

- Quando a guerra acabar, ensinam-me a utilizar isso no computador?

Nikolin é ucraniano, está há anos em Portugal e é dono de um modesto estabelecimento comercial. Há duas semanas transformou o estabelecimento em posto de receção e envio de bens para o seu país e em central de gestão de famílias de acolhimento e refugiados. Suspendeu o trabalho porque o espaço não dá para tudo.

- Mãe, estas pessoas têm um coração tão grande!

Muzi, a minha filha mais velha, ajuda na gestão dos bens que não param de chegar, na separação por tipos nas caixas, ajuda no carregamento dos camiões disponibilizados por empresas diversas (até já gosto mais do Pingo Doce e da Margão), na organização da correspondência entre as famílias que acolhem e aqueles que vêm para cá fugindo desta inacreditável guerra.

- Isso o quê? – pergunta Muzi ao Nikolin.

- Isso aí que é verde, com quadradinhos…

- O Excel? Sim, claro que ensinamos!

- Eu mostro como faço as minhas contas…

Nikolin vai buscar uma pasta bem grossa.

- Faço as contas da loja nestas folhas, veem?

Veem, sim. Muzi e as outras voluntárias veem um monte de folhas com as contas muito bem dispostas, a organização a impressionar ali no papel quadriculado os seus olhos jovens mais habituados aos ecrãs. Ao telefone, altas horas da noite, a caminho de casa, a minha filha conta-me, em palavras rápidas e carregadas de emoção, como foi mais um dia de voluntariado.

- Claro que vamos ajudá-lo, mãe! Quando isto acalmar um bocadinho e conseguirmos ter tempo, vamos ensiná-lo a fazer as contas no Excel. Ele tem um computador velhote na loja, mas nem o sabe utilizar…

E, claro (como não?), repete:

- Mãe, estas pessoas têm um coração tão grande!

07/03/2022

Um post parvinho (para distrair)

As calças novas que comprei em necessidade no vermelho e que são do maior número que jamais vesti (snif), parecem edifícios de duras que são. Sendo verdade que rasgadas não compro, procurei calças na forma de inteiras e isso elas são todas três, mas assim tão duras, tão tipo estrutura onde me meti dentro e me esforço admiradíssima para obter cooperação em conformidade na hora de me sentar ou levantar a perna para alguma função mais acrobática a que me queira dedicar é que eu não estava à espera. Que chatice a Levi’s já não fabricar o modelo preferidíssimo que me levou tanto tempo a encontrar, o processo de vestir depois todo apurado e otimizado, um processo amigo e facílimo, já que compras não adoro mesmo nada fazer. Agora fabricam uma espécie desse modelo mas com a cintura até ao pescoço, se eu quiser. Não quero. Se é para não me conseguir mexer dentro das calças encontrei outras mais em conta, obrigadíssima. Detesto modas.

02/03/2022

Teremos sempre os melros, o sol, os livros e o camião do lixo

Março começou de fininho, continuando o legado de fevereiro e, se não me engano, de janeiro também: uma primavera indelével, completamente desalinhada. 
No rádio anunciam, sobre um fundo de primeiros acordes e numa pausa em meio de notícias da guerra, algo relativo a Lou Reed. Fujo com o dedo para carregar no botão grande de imediato e desligo a emissão. Como prefiro os melros que se ouvem através da janela aberta!
Começo o dia com o café das sete e o sol, como é seu hábito diário, a nascer. Não pegando no livro de Saramago – Viagem a Portugal – que está demorado. As visitas a igrejas matrizes e outras, inseridas em lugares portugueses doridos pelo musgo e pedras antigas, gastos e húmidos, tristes e plenos de passado, detêm-me. Apesar da beleza no arranjo das palavras, sim. Antes li dois contos de Clarice Lispector no livrinho de capa azul editado pela Cotovia. Sou incapaz de lhe devorar os textos - é para que não se acabem. Preciso de ter alguma Clarice de reserva em casa, destinada a necessidades que possam surgir de luz, frescura de manhãs e doçura. Talvez por isso não tivesse ainda percebido que tenho três livros editados pela Cotovia a morar comigo. Tão poucos. Com certeza isto dirá algo desinteressante e inútil sobre a minha carreira de leitora.

Mas são horas de trabalhar. O camião do lixo já entrou na rua para a sua lavoura metálica, basculante e barulhenta. Bem hajam.