a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

16/06/2022

Alarmes há muitos

Acordo com um apito ao longe. No quarto, a luz azulada sugere que são seis da manhã. Um apito do género (para não dizer tipo) ti ti ti. Dentro do sono em curso de ser arrancado tento identificá-lo. Parece-se com vários alarmes de teor eletrónico. O da máquina da roupa quando termina o ciclo, o da mesa de cozedura, também conhecida por placa de cozinha, quando sente um cheirinho de água em cima dos pseudobotões continuados no vidro, o do frigorífico com a porta aberta há mais tempo que o limiar, o do meu relógio de pulso quando chega uma hora que eu estabeleci sem querer, o do micro-ondas, o do carro quando não apertamos logo a correr o cinto, o da câmara de vigilância quando os seus sistemas internos verificam as possibilidades. Ti ti ti. Também eu tenho sistemas cá meus, na sua maioria orgânicos, que andam ofendidos há tempos com o manancial de alarmes em que se encontram de uma forma bastante permanente. Esteja onde estiver. Ora numa casinha como esta, em plena serra, não deitando mais de cinquenta metros quadrados de implantação em dois pequenos pisos, dou-me conta do surpreendente potencial de pequenas mas obtusas, indesejáveis alarmidades. Quem diria. 
Com o sono já fora de mim, arranco-me à cama munida da fresca intenção de detetar o aparelho em apuros, e retorná-lo ao seu estado silencioso quanto antes. Assomo primeiro à janela aberta, da qual provêm os inúmeros cantares da passarada; meto-lhe os ouvidos. O concerto é realmente bestial, quase capaz de abafar aquele ti ti ti metidinho. Quase, ou eu ainda estaria a dormir. Apurando os ensinados sensores, deteto-lhe a origem longínqua, talvez da encosta a poente, talvez junto ao curso de água que corre para a cascata, talvez de uma das ruínas da rua, cobertas de trepadeiras. O ti ti ti que me despertou não é, afinal, de fonte eletrónica, informa-me a experiência agora mais capaz. É sim tão orgânico como o meu ouvir, como o suspiro que me sai, como o deslumbre que me enche a alma. Ti ti ti é o piar de um passarinho. Só não sei é qual.

6 comentários:

  1. Muito bom. Gostei de ler!!
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    Coisas de uma Vida

    Beijos. Votos de um bom feriado.

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  2. Tal qual a Ana, a primeira reacção foi mesmo: "Que texto tão bonito!"
    A segunda foi ligar para o meu pai, que já havia servido de consultor em termos de passarada, nomeadamente para ver se conseguiria identificar, em termos de espécie, certas belezas que vejo por aqui, e perguntar-lhe (também ouço dessa gritaria tipo alarme...) se, por acaso, saberia que pássaro se punha nessas gritarias :-). Então, sugestão dele, assim sem certeza nenhuma, primeiro disse logo tentilhão, mas logo a seguir disse também tico-tico, que quando está em modo chamar faz uma gritaria tipo apito... (mas sem certeza nenhuma ...)
    Hoje apetece-me deixar-te um abraço, portanto, aqui fica o dito.

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    Respostas
    1. AInda com o piar da avezinha na memória, fui visitar peças do youtube a ouvir o tentilhão e o tico-tico. O tentilhão não acho que fosse. O tico-tico, passarinho tão bonito que eu desconhecia, talvez! Muito parecido, realmente! Vou ficar atenta a ver se o vejo por aí.
      Obrigada também, Cláudia! E outro abraço.

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