a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/11/2013

Do tamanho dos meus sapatos

É sábado à tarde e o meu programa não é dos que me fazem pular de alegria, que eu, em tendo motivo, pulo de alegria.

Entro no sector do apoio ao cliente da grande superfície que vende electrodomésticos, aparelhagens de som e máquinas de barbear, entre muitíssimas outras coisas a cuja menção, não tenhais medo queridos leitores, vos vou poupar.

Dirijo-me ao dispensador de senhas de vez, tiro uma, verifico que estão seis números à minha frente e sento-me com o meu electrodoméstico avariado ao colo.

Os meus olhos estão perdidos no vazio deste espaço sem alma e desfocam-se até me adormecerem o cérebro e me acordarem os confins da memória, enquanto embalo o meu electrodoméstico a precisar de apoio ao cliente.

Vejo-me sentada à mesa do refeitório do colégio, desta vez já tenho seis anos, disso sei porque o refeitório não é o mesmo que andei a sujar há três posts atrás e, em vez de trazer a comidinha de casa, tenho de comer a que me é oferecida a bordo das mesas de seis lugares, esta em que estou tem-me a mim e mais cinco cadeiras já vazias.

Hoje o almoço é empadão de carne esmagada. De cada vez que engulo a garfada vem-me aquela impulsão na garganta que tenho conseguido reprimir até agora, com muita concentração e muita noção de que é pecado não gostar da comida, há tantos meninos com fome no mundo.

Mas, apesar do meu sincero empenho, sinto-me culpada por levar tanto tempo a deglutir uma dádiva à qual eu devia estar agradecida, e por isso rezo, à minha moda, para que a senhora que anda com o tabuleiro gigante do empadão na mão a circular ainda pelas mesas, não repare na minha ingratidão, lentidão e sobretudo não adivinhe o meu pensamento pecaminoso de rejeição atómica deste empapado que me puseram à frente.

Mas ela vem aí, mesmo na minha direcção. Inclino a cabeça na esperança de ocultar o que ainda me descansa no prato, e eis que estaca o passo junto de mim, eu quase a tapar com as mãos o empadão malvado. A senhora pergunta, sorridente, que esta é boa senhora, quer mais menina? Quero quero, digo muito depressa, e penso: vou, vou comer tudo, tenho de conseguir, é só mais este bocado, vá lá, vá lá.

Falha de comunicação. Duas colheradas do tamanho dos meus sapatos, uma atrás da outra, despejam mais daquilo em cima do que já cá estava, este novo monte de empapado a fumegar e a cheirar muito intensamente, para eu comer.

Desmaiei, chorei, fugi, chamei pelo gregório, uma destas foi, escolham vocês. Eu escolhi nunca mais comer empadão.

E chega a minha vez de beneficiar do apoio ao cliente.

Levanto-me e dirijo-me ao rapaz que se prontifica a ouvir-me a queixa.

- Esta trituradora que ofereceram na compra do frigorífico e que ainda está em garantia, veja aqui o papel, se faz favor, avariou.

- Hum, hum, uh uh. Estranho, deixe ver... É uma boa trituradora, eu tenho uma igual e a minha mulher ontem fez um empadão de carne que a senhora havia de ver, uma maravilha. Levantou a cabeça e sorriu para mim.

Mas eu já lá não estava.

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