a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

25/08/2017

Macondo e depois dar um pontinho

Foi cá um dia de praia, este! Só do que eu não gosto na praia, arrumamos já isso, é o protetor solar mesmo que seja dos de pulverizar. É tão aborrecido aquilo, o protetor adere a tudo e à areia, que na praia há muita, e depois arranha a espalhar, etc. Mas de resto adoro. Adoro por exemplo ler na praia e logo me resolvi a levar uma leitura tão principal como Cem Anos de Solidão: a verdade é que ainda não o tinha lido nunca. Esta leitura de boa que é, faz-me ficar a oscilar entre continuo aqui no ripanço tremendo a ler ou vou mas é dar um mergulho.
Mas quando fechei o livro para ir à água, fui. Estando um bocado fria, embora não muito muito fria que fizesse doer os ossos, entro devagar. Numa ondazinha que vem ter comigo parece que a dar-me as boas vindas, fazendo-se verde-água (daí o nome) na crista, um verde-água a pôr-se ainda mais transparente, vejo um peixe que até vou dizer um peixaço nesse dorso da onda, uma beleza ali a passar, mesmo lindo. Algumas ondas depois já estava completamente dentro do mar, toda molhada com o cabelo incluído, boiando a olhar o céu e a olhar as nuvens, poucas, a deixar vir as ondas em crista, uma e depois outra, subindo nelas, descendo na cauda, nas maiores elas por cima, nas menores eu.
De regresso à nossa instalação de chapéus, toalhas e a bola de vólei que faz tipo parte da família, as minhas filhas estão completamente pretas a vinte e cinco de agosto - é normal. É normal e é muita praia com elas mas não comigo. Deito-me ao sol a usufruir do contraste com o mar que parece que trago dentro, um frio que se quer quente, um filme de gelo derretido debaixo da pele, falta-me aqui uma poesia para dizer aquilo que já toda a gente sabe mas ainda assim falta-me. A verdade é que não há lá muitas coisas melhores que esta, embora haja algumas. Estou por isso toda feliz, apetece-me a vida, e vejo pelo canto do olho uma veraneante ali em biquíni e em pé a conversar num telemóvel, quando a noto tão branca em contraste, outro, com as minhas filhas pretas, que comunico assim: aquela senhora está esverdeada de tão branca.
- Qual senhora?...
- Aquela, em pé, a falar ao telefone.
- Ó mãe!! Tu estás muito mais branca do que aquela senhora!!!
Portanto fechei o canto do olho e dediquei-me a sentir somente o contraste térmico até me secarem as mãos e tornar a pegar no livro, reentrar em Macondo e deixar-me ir.
À saída do dia, para rematar com uma cereja no topo deste bolo tão macio e delicioso que foi a praia, nós equipadas com a instalação desmontada e às costas, chapéus, cesto, toalhas, a bola de vólei debaixo dum braço, subimos o areal. Antes daquele momento em que já é mesmo para calçar as chinelas se não queremos espetar os pés em catos secos, pedras ou pauzinhos, está um casal que já passou dos sessenta, ou sessenta e cinco, sentados à sombra dum chapéu de sol de várias cores, cada qual na sua cadeira de praia. Ele observava-nos a nós, creio, a subir com as tralhas, ela cosia qualquer coisa, dava um pontinho, como dizia a minha avó, que gostava de se sentar a dar um pontinho. Eu olhei-os e, terá sido recordarem-me a minha avó ou terá sido aquela paz de estar que eles me ofereceram, sorri e ele viu. Então, para fazer um nadinha parte deles, eu disse:
- Assim não perde tempo! – apontando com um inclinar de cabeça para ela, que estava concentrada a enfiar a agulha no pano às florzinhas, puxando a linha devagar.
Mas riram-se os dois e ele confirmou.
- Ai não perde, não!
Quando chegámos ao carro coberto de pó, já as minhas filhas tinham ouvido o quanto a bisavó delas gostava de se sentar assim, concentrada, a dar um pontinho.

6 comentários:

  1. E não disseram as suas filhas que já ouviram a mesma conversa um ror de vezes e não precisa repeti-la?! Se não, são umas ricas filhas. Os filhos são um bocadinho, como dizer, agrestes sem dar por isso. Ou mesmo dando, que há picadelas suas que não são pontinhos, são mesmo para magoar. Em alguns mantém-se o imperdoável de não sermos santos.
    Os velhos são um mundo. Calmo. Sossegado. E a sociedade gosta assim, de repará-los pouco e sem incómodo.
    Tem tanto de princípio de verão este post de final de Agosto:). Sabe bem numa manhã de sábado.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Por acaso acho que foi a primeira vez que ouviram esta história, mas é verdade que os filhos são agrestes, o que, a meu ver, é a única forma de serem; a sinceridade é fundamental nas relações que importam. :-)
      Os velhos (alguns, alguns) são de facto um mundo tranquilo, é muito bom tê-los.
      O seu comentário também me soube bem, bea, obrigada :-)

      Eliminar
  2. Gosto de trazer para o comentário a tua poesia mais descarada, aquela que, não sendo tão discreta, não se esconde pelo post todo, repara-se logo nela à primeira vista: "contraste com o mar que parece que trago dentro", "um filme de gelo derretido debaixo da pele", olha para ela, a descaradona! Quanto à poesia mais subtil, não quero perturbar a sua maneira de estar no post, mas estou toda convencida de que, lá no fundo, guarda o secreto desejo de que a adivinhem, posto isto, só quero que saiba que a li.

    (E que esse estar feliz continue, dentro ou fora da praia) :-)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É evidente que essa poesia mais descarada e menos descarada (que não sei onde anda, na verdade) que tu lês, é devido a teres tu uma vasta gama dela em ti; daí umas frasezinhas todas prosaicas te fazerem um eco bonito assim. Os leitores são uma parte fundamental da escrita, é o que te digo. :-)
      E também te digo obrigada, Cláudia.

      (e ainda outra vez: obrigada :-))

      Eliminar
  3. Macondo. Se alguém algum dia descobrir Macondo nesta Terra, quero ser o primeiro a desbravar esse lugar. Mesmo antes da avalanche de turistas, que estragam tudo.

    Bem-vinda a García Márquez, caso seja o caso.

    :)

    ResponderEliminar