a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

01/01/2014

As botas

Sento-me à lareira e pela janela vejo a velha palmeira agitar-se, acena-me votos de bom ano, pelo menos parece. Na aparelhagem de som toca qualquer coisa de que gosto e que foi escrita por Richard Strauss, mas não é a sinfonia dos Alpes, nem a música do dois mil e um Odisseia no Espaço, não sei o que é. E eis que me vem à cabeça o acontecimento recente que me fez rir até me doer a barriga e que agora vou contar, não te importas, pois não? É sobre as botas de sola de borracha que te ofereci pelos anos, não pelo natal, pelos anos, e que dizes serem perigosas porque escorregam muito.


Era a véspera de natal e chovia que se desunhava. Na estação de caminhos de ferro de Coimbra B podia ler-se nos ecrãs informativos que vários comboios circulavam com atraso devido à intempérie. Pus-me na fila do guichet da bilheteira, com o chapéu de chuva a pingar loucuras, se o levasse, mas por acaso o que pingava loucuras era o meu cabelo, para saber, no guichet, ai que está agreste, que as composições que vinham da Guarda estavam à espera que fosse removida uma árvore que o vento deitou na linha. E a nossa composição vinha da Guarda. Portanto havia que esperar e muito.

Para fazer tempo ou por necessidade, não sabemos nem temos de saber, Erik decide visitar as instalações sanitárias que a estação tem à disposição dos passageiros, dos que têm de esperar muito e dos que não. E que, apesar de situadas por baixo da cobertura da plataforma, têm o chão de mosaicos lisos encharcado, aquilo foi água trazida pelo mesmo vento, ou por um vento-primo afastado, quando muito, que atira árvores para a linha férrea.

Com os seus passos rápidos e firmes, que nunca abrandam o embalo faça chuva ou faça sol, sol fazia na histórias das havaianas, mas isso foi há anos, Erik subiu o degrau de entrada na zona comum dos sanitários masculinos e as botas, entusiasmadas com a fina camada de água que lá estava depositada, iniciaram um número de surf bem orientado, controlado, obrigando-o a deslizar, um pé à frente, outro atrás, os braços semi-abertos para equilibrar, a cruzar o espaço e os utilizadores que lá estavam por necessidade ou para fazer tempo, já sabemos que isso não vamos saber, para por fim o entregarem, as botas, no urinol que não estava ocupado e deixarem-no em posição optimizada com vista à concretização do objectivo que ali o levou.

Ora isto foi no mínimo admirável. Perigosas? As botas não o encaminharam, no seu surf natalício, para um urinol ocupado, havia de ser aborrecido, mas que é isto, companheiro, diria o passageiro ao sentir o impacto nas costas, de repente, chegue-se para lá, na melhor das hipóteses e se de um cavalheiro se tratasse, senão nem vou alvitrar que para calão não fui talhada, e o Erik, que ainda só arranha o português, havia de dizer desculpa e apontar para as botas, ou assim, mas não, foi num urinol disponível que ele foi depositado, com jeitinho e após um deslizar harmonioso oferecido de presente.


Entretanto passaram as primeiras doze horas do ano novo e não pára de chover, já viste?

Não te preocupes, já escondi as botas, pelo sim pelo não.

Sem comentários:

Enviar um comentário