a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

19/03/2015

Fato-macaco azulão-oficina ou resmas de papel

Não acontece todos os dias, mas esta manhã estou junto à impressora central a olhar através da janela e o rre rre rre da máquina conduz-me a um estado de semi-transe, muito bom para me elevar a pensamentos magníficos, não fosse sentir atrás de mim alguém à espera de vez. Encostado ao armário onde se arrumam coisas que eu nunca vi, está o João, olá João, isto vai demorar.

- Não faz mal, eu espero – o meu colega encolhe os ombros e sorri ligeiramente.

Depois eu disse uma coisa muito engraçada da qual já me esqueci mas o João não respondeu, está noutra onda e eu torno a mergulhar na minha.

Não é costume acontecer algo absolutamente notável perto das impressoras centrais, nem mesmo junto a estas com acesso à contemplação de muito cimento feio e carros estacionados. Mas hoje veio-me à memória a única ocorrência quase de registo junto a uma máquina destas, não exactamente destas, uma sem códigos de utilizador e com tchklheqe tchklheqe tchklheqe em vez de rre rre rre, que isto foi andava eu nos vintes e agora ando muito à frente.

Não me lembro quem chegou primeiro, se eu se ela, e nem me lembro qual era o seu nome. Sei que envergava um fato-macaco de um azulão-oficina, a fazer doer os olhos, requisito obrigatório nas aulas práticas a que andava a assistir, mulher forte e única num curso de homens, morena, mexicana, e vou eu então estás a gostar disto, de Lisboa, do curso, te gusta, eu sou simpática se me apetecer, a moça há-de rondar a minha idade, ela a responder, sí me gusta, nada como o João, nem havia ali um armário, era um corredor vazio, a máquina, a mexicana e eu. E de repente:

- No me gustan los hombres.

- Ai não?! – eu, penso que a dar um pequeno, imperceptível, passo atrás. Não me consigo lembrar do nome dela, seria Consuelo, foi há tanto tempo.

- No. Solamente me gustan los maduros.

- Maduros?! O que é isso? – dado que me pareceu interessante a categoria “maduros”, fosse lá isso o que fosse, creio que repus o pequeno, imperceptível, passo em frente.

- Maduros, viejos. Hombres viejos. Mira. - e faz com as mãos como se indicasse um cabelo grisalho, não sei como conseguiu, mas fez.

- Ah bom! São giros, são. Por acaso também acho, seguro que sim! - apareceu-me um sorriso parvo, aliviado, saído especialmente para a ocasião.

Depois desfiz o meu código de utilizador, que tem encriptadas as datas de nascimento das minhas filhas, não vá algum gatuno apetecer-lhe gastar resmas de papel em meu nome, e voltei-me para trás.

- Pronto, João, já podes.

4 comentários:

  1. Confidências a coberto de uma impressora avariada. :) A tecnologia é nossa amiga mas, às vezes, dá-nos cabo dos nervos.

    Beijo, Susana. :)

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    1. É verdade, Maria, a tecnologia quando valha faz-nos lembrar que existe.
      (mas a impressora não estava avariada :-))

      Beijo! :-)

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  2. Colegas distraídos e calados, dão-nos tempo para recordar ...

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