a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

11/04/2015

Dissertação minúscula mas bestial

Encostada às lombadas dos livros que em pilha e muito quietinhos comigo dormem, está uma fotografia da avó Irene. É uma fotografia pequenina, a preto e branco, e mostra um rosto que não sorri. Vela-me o sono, apazigua-me as ansiedades que, em várias cores pontiagudas, me ferem a respiração enquanto estão as insónias a cavalgar-me por cima das horas, mais e mais, uma pena serem insónias.

No verso da capa do único cêdê que tenho da Edith Piaf está, em letras pequeninas, o resumo da sua história de vida. Uma história demasiado triste para ter pertencido a uma pessoa só. A Edith Piaf nunca veio a saber, mas a minha avó Amália gostava muito dela. Mandava-nos calar, meninas estejam sossegadas, porque detestava o barulho que as nossas correrias da casa de férias faziam, precisamente quando ela queria ouvir a Edith Piaf, meninas, é a Edith Piaf! La vie en Rose para nós naquele tempo, nós é que não sabíamos, corríamos dali para fora, que seca, avó, isso é francês?!

A avó Irene estava sempre em casa e usava casacos de lã com bolsos onde guardava um lencinho, ela é que dizia lencinho; era a sua companhia, punha a mão no bolso e apertava o lencinho sem ninguém ver, se calhava alguma coisa lhe ensombrar o dia. Quando estiveres na cadeira do dentista, dizia-me, e se tiveres um lencinho, aperta-o com força para não te doer (como me esquecia do lencinho, experimentei apertar uma mão com a outra mas doeu sempre). Tricotei-lhe dois casacos no fim do tempo dela, primeiro um cinzento e depois um verde escuro, ambos a abotoar à frente e sem me esquecer dos bolsos para os apertos secretos ao lencinho. Usava-os sempre, excepto no verão, que foi só um.

A avó Amália sabia tudo sobre como se deve estar à mesa, nunca se põe a faca na boca e sorver a sopa é completamente proibido, nem que tenham de queimar a língua. Com o guardanapo faz-se assim assim, só nos cantos da boca e ao redor dos lábios, sem esfregar, para não esborratar o batom, mas nós não usávamos batom e queríamos sair da mesa para ir fazer corridas de bicicleta. Era isto a todas as refeições das férias e nós, ó avó que seca. Tocava piano com os seus dedos longos e as unhas sempre pintadas de vermelho, tinha mãos bonitas. Na mala trazia um espelho pequenino, um batom a condizer com as unhas e um pacotinho de Chiclets amarelo, que durava uns seis meses quando escapava aos nossos ataques. Mandava-nos ler os livros da Pearl Buck e caminhar com as costas direitas como se tivéssemos engolido uma vassoura, mas eu lia os da Agatha Christie e ela dizia está bem, filha. Usava echarpes para tapar o pescoço porque uma mulher mostra a idade é no pescoço e ela não queria ser velha.

Depois desta dissertação minúscula mas bestial sobre as avós que tive, e que me deixou ligeiramente lacrimosa devido às saudades que não se matam, eu na verdade sou elas e precisava de lhes dizer isto, estava na hora de ir dançar como nunca. Parece que hoje era dia. Se não era e eu percebi mal, paciência, mas que dancei, dancei.


Quando a seguir trouxe para casa o corpo suado e dorido, fui directa ao duche sem tirar o sorriso da alma que ao dançar apanhei. Depois programei a máquina da roupa para lavar na tarifa de vazio enquanto durmo e a da loiça a mesma coisa e quase me esquecia de comer.

(tal como me esqueci de ler os livros da Pearl Buck, mas já me vou lembrando de olhar para o meu pescoço)

12 comentários:

  1. Hoje, dei por mim a tapar o pescoço com uma écharpe. Bolas!

    Beijos, Susana. :)

    ResponderEliminar
  2. Mas tu é pelo estilo e não por necessidade, tenho a certeza (a avaliar pelo que mostra a tua foto, essa aí)...

    Beijos, Maria. :-)

    ResponderEliminar
  3. Querida Susana,
    Bonito texto. "Uma história demasiado triste para ter pertencido a uma pessoa só", bestial.
    Beijo,
    Outro Ente.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigada, caro Ente. :-)
      Bestial é podermos viver com um grau de tristeza não mais que moderado.
      Outro beijo.

      Eliminar
  4. Susana, já sabes, não é novidade nenhuma que gosto dos teus rendilhados de letras, mas, às vezes, tocas-me a alma.
    Beijinhos, Susana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Rendilhados de letras! :-)
      Tu tens uma alma muito bonita, por aquilo que já vi de ti. Ter conseguido tocá-la dá-me muita alegria.
      Obrigada, querida Cláudia.

      Eliminar
  5. Olá, Susana,
    Uma avó que ouvia Edith Piaf; usava batom e com seus dedos de unhas pintadas de vermelho tocava piano, e que ainda inspirou uma prosa destas, não era uma avó: era uma deusa que nunca devia ter deixado de ser. Emocionei-me, como me emociono e emocionarei sempre com estas vivências que o tempo transforma em lembranças entranhadas em nós.
    Ao menos, valha-nos isso! que resultem em textos sublimes como este. Lindo.

    bj amg

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querida Carmem, para receber comentários como este seu, já vale a pena ter um blogue.
      Muito obrigada. Do coração.
      Um beijo.

      Eliminar
  6. São textos assim que me deixam sempre um travo amargo por não ter tido avós assim.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Desculpa ter-te provocado esse travo amargo. Eu tive avós bons demais, por isso lhes sinto tanto a falta.
      um beijo, Carla.

      Eliminar