a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/08/2015

Café Ernestina

Preciso de voltar ao café Ernestina. Das poucas vezes em que lá estive trouxe, no coração, mais do que seja o que for que lá deixei, não sei como isso foi mas quero saber. 

Subo, a pé, a rua ensolarada. Apesar de a tarde já ir a mais de meio, está calor e os meus sapatos enchem-se do pó da berma da estrada, perdem a cor enquanto o cão acorrentado que me ladra de um dos quintais, vai ficando para trás. Encostadas à parede branca da fachada da casa onde se instala o café Ernestina, estão quatro cadeiras de plástico que já não são vermelhas há muito tempo nem estão completamente inteiras.

Mas eu preciso de voltar aqui e, para que se não note a minha precisão, levo um bolo e uma embalagem de chá que promete conciliar o sono, como se fosse alguém daqui a precisar de mim e não o contrário; bato os pés nos restos do capacho da entrada, boa tarde, e depois levo um ou dois segundos a adaptar a vista à penumbra interior. 

Uma ventoinha faz girar o ar a partir do topo do frigorífico das bebidas, que está praticamente vazio. Duas ou três moscas voam em círculos em frente à porta e dentro estão apenas duas pessoas sentadas lado a lado em cadeiras de madeira encostadas à parede. Não falam, cada uma vive dentro de um vazio próprio, adivinho, pertencem a mundos que não se intersectam. O silêncio é roucamente cortado pela ventoinha, acompanhada do ladrar do cão acorrentado, que ainda se faz ouvir. O café Ernestina tem apenas duas mesas ao fundo, estão ambas desertas e são diferentes uma da outra.

- Olá minha querida! - é assim que dona Ernestina me acolhe no seu café - ao dizer isto tenta levantar-se, mas a perna doente não permite, eu também não, deixe-se estar, e sento-me na cadeira vazia ao seu lado. Mesmo assim, os seus braços abertos fecham-se em redor de mim e eu dou-lhe dois beijinhos. Acho o sorriso dela tão bonito!, abre-se num mar de rugas que enche de luz.

- Então essa perna, como vai?

- Vai mal, filha. Tem noites que não durmo de tantas que são as dores. Mas a médica do centro tem cá vindo, ela é muito querida! Como sabe que eu não posso deslocar-me lá abaixo à vila, vem ela...- e ergue a perna entrapada que lhe valida a declaração.

Sentado do outro lado de dona Ernestina está um homem de cabelo castanho, é ainda jovem. Usa um boné que está mesmo torto e não foi rodado para acompanhar tendências da moda. Tem a cabeça inclinada para a frente e parece não dar por nós. Segura numa das mãos uma garrafa de plástico de litro e meio de Coca-Cola, cheia, e não se mexe.

Dona Ernestina fala-me de novo no filho, que está morto. Chora. As lágrimas escorrem-lhe e eu acho-a mesmo bonita com os cabelos fortes e brancos, ondulados, um mapa de rugas que contam histórias tão duras que não sei interpretar, mas os olhos têm luz quando fala daquele filho, era ele e eu, éramos tudo um para o outro. O meu Armando e o mais velho não, mas aquele, ai aquele, o meu menino. 

Era o filho mais novo, morreu aos quarenta anos ao mergulhar numa piscina, congestão, diz ela. 

- Foi há quatro anos mas eu não me conformo, ai o meu menino, era ele e eu.

Oiço-a, já lhe conheço a história, mas oiço. É a única coisa que lá posso deixar no café: os meus ouvidos, durante o tempo que dura a minha visita.

De repente o homem acorda do seu torpor e põe-se em pé devagar. Afasta as pernas e ajeita o boné, consegue equilibrar-se. Depois inicia o caminho de regresso a que lugar? e sai do café, sem dizer palavra nem olhar para nós. Leva na mão a garrafa de Coca-Cola, cheia, e vai pela estrada fora aos ziguezagues, com paragens a cada passo para retomar o equilíbrio.

- Já chegou aqui assim, filha. Não foi cá que bebeu - explicou-se dona Ernestina sem eu perguntar nada. 

- Mas agora leva Coca-Cola... ainda bem que ...

- Aquilo é vinho, filha, enchi-lhe eu a garrafa... mas que hei-de fazer? Ele cá não bebeu, isso não...

Ficámos ambas a vê-lo desaparecer aos esses na curva da estrada onde, neste tempo todo, não passou nenhum carro, ninguém. 

- Trouxe-lhe isto, dona Ernestina - satisfeita por mudar de assunto, abro o saco e retiro o bolo e o chá. Este chá parece que ajuda o sono, diz aqui - aponto a embalagem - está a ver?

Os braços dela voltam a rodear-me, para que se esteve a incomodar, não era preciso isso, gosto tanto desses bolos, com o café vai muito bem uma fatiinha, ou duas, muito obrigada, minha filha, que Deus a abençoe.


Deus já me abençoou, dona Ernestina, abençoa-me todos os dias. Mas será que Ele nos abençoa a todos?

10 comentários:

  1. Não, Susana. Há razões demais para duvidar.

    Boa tarde. :)

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  2. Há tantas formas de Deus abençoar, Susana; por vezes, envia-nos anjos...

    Um beijinho

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    1. É verdade, Teresa, por vezes cruzamo-nos com anjos. Lembras bem. Ou até - quem sabe - poderemos nós tentar sê-lo, uma ou duas vezes na vida. :-)

      Um beijinho, querida Teresa.

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  3. Não sei...
    (foi bom emprestares assim os ouvidos e o ombro)

    Beijos, Susaninha. :)

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    1. Foi bom, pois foi. :-)
      Obrigada, Maria, beijos para ti também.

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  4. Gosto que leves bolos à dona Ernestina. E ouvi-la é um dever.
    Quanto a deus, anjos, abordagens místicas... Há razões demais para duvidar, como diz o JM.
    Beijos, Susana.

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    1. Como dizia o (outro) Sócrates: só sei que nada sei.

      Beijos de volta, Isabel. :-)

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  5. Eu opto por acreditar, que nos abençoa a todos, mas de maneiras diferentes. Talvez seja aquilo de "escrever direito por linhas tortas", ou, "dar o frio conforme a roupa". Por muito difícil que possa parecer, por tantos horrores que existem pelo mundo fora, ainda assim, mantenho a opção de acreditar. Talvez porque em determinados momentos da vida, já me tenha sentido com uma força que achei que não era só minha e a essa força suplementar, podia ter chamado outra coisa, ou não ter ligado a isso e não lhe dar nome nenhum, mas gostei de lhe chamar Deus.

    Beijinhos, Susana.

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    1. Acho que a tua opção está certa. Deve ser também por isso que és assim como és. Tens essa "luzinha" dentro de ti, que se vê daqui mesmo não te vendo. E nos ilumina a nós, que te lemos. Enfim, é o que sinto.

      Beijinhos de volta, querida Cláudia. :-)

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