a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/09/2015

Big Bang pode ficar com maiúsculas

Quando hoje cheguei ao ginásio a arrastar mentalmente a perna esquerda devido aos vinte e seis quilómetros de bicicleta feitos no sábado passado, acho eu que foi disso, reparo que estão todos a olhar para cima e a trocar exclamações apontando para o canto superior esquerdo de quem está virado para a janela e apercebo-me agora de que isto com um desenho ia lá melhor (se desenhos soubesse eu fazer). Portanto também a minha cabeça se vira para ali.

E agora estou cheia de vontade de escrever. De dizer que na segunda feira saí da minha toca laboral e meti-me no carro, percorri umas poucas ruas de Lisboa debaixo de um sol que dizia o termómetro valer trinta e um graus celsius (celsius devia ser com letra maiúscula mas fica feio, já bastou Lisboa), um calorão dos bons e cruzo-me com hordas de meninos envergando as vestes pretas universitárias, pintalgadas de alfinetes redondos e coloridos na capa que trazem pelas costas, não vá de repente cair um nevão e os meninos ficarem cheiinhos de frio coitadinhos e eu não sei o que querem dizer aqueles alfinetes.

Mas não foi só isto. Hoje tive uma epifania muito antiga horas antes de entrar no ginásio e ver toda a gente a olhar para cima. Tomei o café depois de almoçar na cantina do costume, havia caldeirada e disse a dona Esmeralda que gosta de caldeiradas, somos duas respondi-lhe eu, enquanto ela pisca o olho ao convidado que hoje veio almoçar connosco, por conseguinte seria a minha vez de abanar a cabeça e olhar por cima dos óculos reprovadoramente caso os tivesse, mas dizia eu que a epifania veio e foi a seguir à caldeirada que o fez. Ao beber o café, apercebo-me de que os átomos líquidos castanhos e quentes, amargos, entram em mim num feliz reencontro. Sim, precisamente um reencontro. Admitamos sem medo que todos estes átomos, os do café, que já sabemos como são, e os meus, que são imensos, estiveram juntos num mesmo ponto, muito apertadinhos, imediatamente antes do Big Bang (daí ser tão bom beber café).

De regresso ao ginásio onde ficámos com as cabeças suspensas do canto superior esquerdo de quem está virado para a janela, sinto um suspiro de pena no meu coração ao ver um par de olhos pequeninos, vivos e pretos, assustados, numa cabeça de andorinha; está este passarinho encolhido na reentrância que alguém se lembrou de fazer na parede a toda a volta da sala como se a emoldurasse lá bem junto ao tecto (falta o desenho). De forma que, mais algumas exclamações e inclinações de cabeça depois, alguém abriu a janela bem aberta e são horas de começar. Manda-nos a professora ir buscar um colchão e eu ai jesus o colchão (já sei que vai doer). Com a andorinha ensaiando voadas por cima das nossas cabeças a cada cinco ou dez inspirações, procurando a saída que não encontrou até ao fim, a aula foi uma espécie de tortura também para mim. Continuo sem conseguir pôr um calcanhar ao tecto e equilibrar o resto (imensos átomos) em forma de cadeira virada ao contrário num dedo mindinho espetado no chão e ao mesmo tempo inspirar e expirar aos comandos da voz da professora, que têm paragens demasiado longas entre as inspirações e as expirações, se não fiquei roxa senti-me perdida, nem mesmo a caldeirada me valeu. No fim daquilo e de a professora me perguntar se está tudo bem comigo, consegui finalmente pôr-me de pé outra vez. E então ouvi alguém dizer pilates, isto foi pilates.

Portanto em primeiro lugar, não torno a fazer brincadeiras com o Big Bang, bebo o café sem me dar a ideias e acabou-se. Em segundo lugar, era uma coisa assim que eu queria no ginásio. Qual pilates qual quê.

10 comentários:

  1. Tens aqui muitos assuntos bons para escalpelizar, mas vou referir apenas duas ou três coisas.
    Actualmente, e ainda por cima fora do meio em que surgiu, não vejo qualquer sentido nesses trajes académicos. Acho que não servem para nada e ainda por cima ficam muito a dever ao bom gosto. Fora do meio, como é o caso, não têm nada que ver com a tradição.
    Vinte e seis quilómetros de bicicleta? Temos mulher!
    Então, e tu não tinhas uma alergia a ginásios? Curaste-te! Que bom. Tenho a dizer-te que, apesar de andar no ginásio há dezasseis anos, faço pilates há poucos, talvez três, e cada aula representa uma obrigação. Tenho-me esforçado muito para aprender a gostar porque sei que preciso daquele tipo de exercícios. Não te preocupes muito com aqueles nomes... Olha, para mim, transverso continua a ser chinês.;) Sê persistente, que vale a pena.
    Mas o que eu queria mesmo fazer era agradecer-te essa bonita coreografia que aqui penduraste.
    Beijos, Susana.

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    1. Isabel, eu não só não vejo utilidade nos trajes académicos como sou contra as praxes, nas quais vejo ainda menos utilidade para além de ser uma enorme perda de tempo na qual por vezes alguém se magoa.
      Bem, eu não tenho alergia a ginásios, mas detesto ginástica ou outro desporto qualquer que não seja dança ou bicicleta. Prefiro ficar sossegada a ler. :-) Mas faço para não emperrar, a dança nem sempre é possível.
      A coreografia é linda e a música também. Obrigada.
      Beijos, querida Isabel.

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  2. Querida Susaninha, mais um texto delicioso, que se lê com a doce cadência de uma valsa. Aos poucos, vou regressando aos sítios que me fazem feliz.

    Um grande beijinho

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    1. Minha querida Miss Smile, que bom estar a regressar, é um enorme prazer vê-la por aqui. A si e ao seu luminoso sorriso.
      Um beijinho e outro abraço apertado.

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  3. Um sorriso rasgado e um grande beijinho ao som de Prokifiev, Susaninha. Deliciosa leitura, com sabor a café forte, cremoso e sem açúcar. Beijinho

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    1. Querida M D que bom é vê-la por aqui de vez em quando! Muito obrigada. :-)
      Um sorriso rasgado de volta e outro beijinho.

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  4. 'devido aos vinte e seis quilómetros de bicicleta feitos no sábado passado' - isto pega-se !!!
    Boa susy!!

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    1. E sabes que me lembrei de ti enquanto me esfolava em cima da bicicleta? Verdade. :-)
      Eu também gosto muito de pedalar, mas não o faço frequentemente.

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  5. Agora estou aqui eu a pensar que devia mesmo mexer-me, mas com essas descrições já estou cansada...
    Beijinhos Susana

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    1. Aquilo é para cansar, mesmo. Nem gosto de lembrar...
      Beijinhos, Mafy, tão bom ter-te aqui.

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