a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

14/01/2016

A segunda dama (ou as três sereias, ainda não sei)

Tenho a certeza absoluta de que havia de escrever uma página todos os dias. Uma página é como quem diz uma data de linhas, o que quero dizer é muito: até me saciar. Isto no caso de ter a vida como eu queria e aliás quero. Havia também de andar de bicicleta muitas vezes por semana e ficar sentada ao sol a olhar para o rio com a bicicleta ao meu lado, se fosse de manhã cintilava a água do rio, se fosse de tarde pulavam os peixes que ainda ontem os vi pular que lindos, mas a bicicleta ficava ali a fazer-me sentir completa enquanto eu descansava, uma bicicleta é um objeto belo como qualquer pessoa vê (um objeto feio é por exemplo uma mesa de cabeceira). Havia de ler livros em triplo relativamente ao que leio agora, perder-me-ia muito mais em sonhos impossíveis e portanto havia de passar muito menos roupa a ferro. Por enquanto ainda sofro o adormecer antes de cair na cama e o acordar muito depois de já estar a pé. Tenho anos de dívida quanto ao sono, nesse ponto a maternidade foi-me dura, só nesse.

Bem, mas sentei-me hoje para escrever sobre uma coisa que foi o meu regresso ao ginásio depois de muitas ausências, evento que me valeu aquela cara de lado da professora como se ralhasse comigo e ralha mesmo, até diz menina Susana e eu digo estou viva (para ter graça). Gosto que ralhem comigo, e gosto da palavra ralhar, soa a borbulhar e borbulhar lembra água e água é a palavra mais linda (mas faz sede), só que depois entrou a minha filha de pijama de flanela e cabelo apanhado num rabo de cavalo todo torto, nunca anda direito aquele rabo de cavalo, mãe preciso de um livro e mãe preciso de um livro é música muito boa para os meus ouvidos (de entre duas filhas e treze sobrinhos, só consegui ainda converter esta filha à leitura e a segunda está quase mas ainda não está, sobrinhos zero, sou uma tia falhada, também falhei a converter irmãs mais novas, mas isso foi há séculos que falhei). Dei um salto da cadeira onde me sentava e sento (regressei), um livro, filha? sim, mãe, preciso de ler qualquer coisa, há séculos que não leio, e eu aproximo-me já cheia de ideias a rolar na mente, olha lê o meu irmão..., mas ela espera aí que eu sei o que quero. Senta-se no tapete junto à estante e mergulha os braços dentro da terceira cavidade a contar da esquerda na linha de baixo onde está uma parte da coleção livros do brasil que eu comprei com pouco mais que a idade dela. Quero Irving Wallace, deixa ver. Tirou a segunda dama e tirou as três sereias, o todo-poderoso não encontrou e o salão dourado eu disse esse não, porquê esse não?, ainda não, filha (devia ter posto vários pares de aspas aqui atrás mas fica tão feio que não vou pôr, se alguém quiser reclamar pode).

- O amigo do pai disse que não sabia que ainda se lia Irving Wallace quando há pouco lhe falei que queria ler Irving Wallace - a minha filha esteve a jantar com o pai e com um amigo do pai.

- E não lê, filha, esses livros são velhos.

Abriu um dos que tirou e disse iiiiiii fevereiro de mil novecentos e noventa e dois!!! Ela leu isto, porque eu tinha lá escrito a data em que o comprei na primeira ou na segunda folha do livro, precisamente em fevereiro de mil novecentos e noventa e dois (o bom das datas é que sabemos sempre quando foram escritas).

E pronto, já estou praticamente saciada embora tenha ficado com sede por causa da palavra água, mas antes de ir beber um copo, remato o post que me parece desengonçado e que vou endireitar com os títulos dos dois livros que nos braços da minha jovem filha de rabo de cavalo sempre torto foram levados para o seu quarto: as três sereias e a segunda dama.

E eu, antes de cair de sono na cama, hei de pelo quarto dela passar e pelo buraco da fechadura espreitar.

(às vezes esforço-me muito e consigo fazer rimas que me lembram a história da carochinha e do joão ratão)

12 comentários:

  1. desisti em definitivo de tentar que uma amiga ganhe amor aos livros e queira pelo menos ler um... quem perde é ela! Irving Wallace nunca li, o tempo é escasso para tudo, mas gostei de te ler :)

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    1. Por muito que tente, não sou capaz de entender quem vive sem livros. Acho até de uma grande coragem atravessar toda uma vida sem poder citar alguém, sem poder recordar uma cena de um livro que se passou naquela cidade que se visita, sem poder falar com ninguém sobre os maravilhosos autores que temos à nossa disposição. Eu não tenho essa coragem. :-)

      PS-Do Irving Wallace talvez gostes d"O Todo-Poderoso".

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  2. Comigo foi ao contrário, converti facilmente os meus sobrinhos no que a leituras diz respeito, já os meus filhos foi outra história, tem as estantes dos quartos repletas de livros que lhes comprei e nunca lerem.... uma pena :)

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    1. Olá GM! Então o melhor seria nós trocarmos as nossas técnicas de persuasão, a ver se as tuas servem nos meus sobrinhos e as minhas nos teus filhos. :-)
      Eu com as minhas filhas sentava-me à noite a ler-lhes livros antes de dormirem, resultava para elas e para mim, que bocejava tremendamente com as histórias infantis mil vezes repetidas. Mas aposto que fizeste o mesmo com os teus (acho os rapazes mais difíceis nesse ponto, os meus sobrinhos são quase todos rapazes).

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  3. Só porque me apetece contar-te estas coisas.:-)
    Os primeiros livros que me lembro de ter lido e ter sido mesmo um prazer, ficava totalmente absorta sem querer saber de mais nada, foram "Os desastres de Sofia" e "As meninas exemplares" da Condessa de Ségur, esses livros já tinham passado de geração em geração então eram (são :-))daqueles com capa de cartão e as gravuras da capa parecem pinturas e as páginas já estavam meio amareladas. Depois li mais não sei quantos livros da Condessa de Ségur, sempre a mesma magia. Mais tarde apaixonei-me pela coleção mistério da Enid Blyton, ela é muito mais famosa pelos cinco, mas eu gostava mesmo muito era do gordo e dos seus amigos, o que adorei aquela coleção. Agora os miúdos têm muitas novidades, estão sempre a aparecer coisas novas para lhes cativar a atenção, dispersam-se mais, é mais difícil aperceberem-se do prazer que é ler, dão-se menos esse tempo, essa disponibilidade para descobrir esse prazer. E quando se desconhece um prazer não se sente a falta dele.
    Beijinhos, Susana. :-)

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    1. Também eu li a coleção toda do Mistério e a dos Cinco e do Colégio das Quatro Torres e a das Gémeas, só a dos Sete não me cativou. :-) Da Condessa de Ségur não li muitas histórias, acho que não tinha os livros, devi lê-los em casa de alguém.
      Os miúdos consomem o que é superficial, o que é fácil e rápido, os miúdos e muitos graúdos, entretanto. A leitura requer mergulhar na concentração entrar no silêncio de cada um e, para isso, nem toda a gente tem "pachorra".
      E eu o que gosto que tu me contes essas coisas, Cláudia! :-)
      Beijinhos de volta, bom fim de semana.

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  4. Livros que me habituei a ver nas estantes de casa dos meus pais, e que eles leram. Não me lembro de ter lido nenhum deles, mas muito Somerset Maugham, Pearl Buck, Steinbeck, Stephan Zweig, Camus...entre outros que por lá figuravam. A minha mãe é uma compradora compulsiva de livros, e embora agora diga que já não consegue ler, continua a comprar, o que acho bom. :)

    Beijos, Susana.

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    1. E na Feira do Livro come gelados com a filha Teresa :-) (lembro-me desse teu post). Compreendo a tua mãe. Talvez os livros lhe sussurrem as palavras que contêm. Eu desconfio, isto cá entre nós, que os livros são seres vivos. Ou quase, pronto. São seres. :-)
      Beijos de volta e um bom fim de semana.

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    2. (O Pina dizia que sim ;)
      É então isto um livro,
      este, como dizer?, murmúrio,
      este rosto virado para dentro de
      alguma coisa escura que ainda não existe
      que, se uma mão subitamente
      inocente a toca,
      se abre desamparadamente
      como uma boca
      que fala com a nossa voz?
      É então a isto que chamam "livro",
      a este coração (o nosso coração)
      dizendo "eu" entre nós e nós?

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    3. Ah, Flor, que maravilha. Tu e essa tua sabedoria sempre à mão! Obrigada, adorei o poema, que verdadeiro é!
      (sabes que me apareceu misteriosamente um guarda-chuva desconhecido dentro do carro e eu queria dizer-te isso, para tu dizeres ao Afonso Cruz para onde às vezes eles vão e... ah! já comprei um livro do Afonso Cruz, tu foste responsável por isso, claro)
      Um beijo, cheirosa.

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    4. :) sabedoria tinha/tem o grande António Manuel Pina.

      ora aí está uma coisa boa, pela qual fico muito feliz de ser responsável!

      um abraço forte, Susana.

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    5. Retribuo o abraço, querida flor. :-)

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