a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

08/04/2016

Clara Ferreira Alves (e a espessura dos personagens)

No dia em que li uma crítica da Clara Ferreira Alves à escrita do José Rodrigues dos Santos, guardei uma pergunta dentro de mim. A crítica não visava propriamente a escrita de José Rodrigues dos Santos, visava particularmente um seu livro recentemente publicado (creio que era o Homem de Constantinopla). Não podendo já ser precisa nos dados, limito-me ao essencial: dizia Clara Ferreira Alves, entre muitas coisas, que ele não dá espessura aos personagens. Disse também - recordo-me - que quem sabe dar espessura aos personagens, por exemplo, é John Le Carré. Nessa altura levantei-me e fui buscar um Le Carré à estante, eu queria saber o que é a espessura dos personagens. Levei O Peregrino Secreto para o quarto e pousei-o na pilha onde já estavam um ou dois Herberto Helder, talvez um Eugénio de Andrade, e mais, provavelmente Jorge Luís Borges naquela capa azul que me capta o olhar por tempos. A poesia é paciente, posso atestar, para além de esperar eternidades para entrar em cabeças pouco macias, ainda aceitou o Le Carré que Clara Ferreira Alves lá pôs pela minha mão, a pesar-lhe peregrinamente. Porém não o li.

Há dois dias, por ser muito bem mandada, fui comprar a revista LER a uma loja da Bertrand que me fica perto da hora do almoço. Ao abrir a página onde inicia a entrevista que Bruno Vieira Amaral fez à Clara Ferreira Alves, vejo, na estante de livros que serve de fundo à fotografia da entrevistada, uma boa quantidade de exemplares assinados por Le Carré. Que eu, a verdade digo, ainda não li (houve qualquer coisa na Casa da Rússia, quando foi publicado, que me catapultou para longe deste autor, mas não me lembro o que foi).

Portanto comecei, assim que a hora do jantar me deu tréguas na cozinha, a ler a LER: a entrevista. E terminei-a dois intervalos depois - na cozinha do jantar seguinte. Nela fiz uma belíssima colheita. Ao início uma gargalhada (CFA aprecia a portabilidade dos livros, anda com dois na mala não vá um ficar sem bateria), depois, tomei uma espécie de vergonha por ainda não ter lido Le Carré, mas a meio já estava plena de uma empatia por que não esperava e por fim enchi-me da vontade irreprimível de ler o Pai Nosso. Clara Ferreira Alves conta-nos a história do livro. Que um livro é como um ser vivo, tem história. Quando a conhecemos, queremos completá-la, fazer parte dela, queremos explorar-lhe as veias, beber-lhe o suco. Vou lê-lo. Antes de Le Carré e antes de toda a poesia que me ronda as noites me tornar a mente mais fluida. Mas vou a medo. O livro é capaz de me lancetar. Ou quem sabe dar-me um pouco mais de espessura. A mim, que ainda guardo aquela pergunta.

37 comentários:

  1. Ah, o Aleph ali a chamar por ti. É o melhor de todos.
    Quanto à Clara, também fiquei com vontade de a ler depois de ter lido essa mesma entrevista.

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    1. Encontrar-nos-emos então no Pai Nosso, querida Cuca.
      (é o Aleph, pois é... tu dominas isto, caramba :-))

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    2. Esperem por mim! Também tenho o Pai Nosso em fila de espera!

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    3. A continuar assim, isto vai parecer uma manifestação...
      A Clara Ferreira Alves, explica muitíssimo bem toda aquela confusão no Médio Oriente, tem um conhecimento profundo de toda aquela situação, as crónicas que foi escrevendo ao longo dos anos no Expresso, foram, muitas vezes, sobre este tema, pareciam-me aulas de história, foram-me ajudando a organizar toda a confusão de informação que foi sendo veiculada sobre o assunto, também por isso, o Pai Nosso, já aqui estava anotado para ser a próxima leitura. Agora na forma de romance e provavelmente em modo murro no estômago e quase de certeza, mais uma vez, elucidativo.
      Encontrar-nos-emos pois então no Pai Nosso.

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    4. Palmy, junta-te a nós, será uma tertúlia virtual de leitura simultânea!
      :-)

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    5. Cláudia, isto já é uma manifestação!
      (não li as crónicas do Expresso, mas estou feliz por poder agora colmatar essa falha... e sim, também espero um murro no estômago. On verra. :-))

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    6. Também posso participar?

      (a ver se acumulo o pelouro da cultura. Como agora está vago...)

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    7. Ora essa, Senhor Ministro. Com certeza que pode.
      Talvez fosse interessante convidar uma mulher para esse pelouro, de repente lembrei-me (as mulheres são mais pacíficas...). E que tal a própria CFA?

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    8. Cuca, a Suprema Pirata dos Mares, a mais destemida e audaz, a mais bela e sublime, a mais formosa e elegante... por favor?



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    9. ... Pronto, assim sendo, está bem!

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  2. Homónima, LeCarré não só aprofunda personagens como "intrinca" enredos. Não acho que seja leitura fácil, mas é bom entretenimento para quem gosta de policiais e espionagem ao alto nível, sempre com muitas nuances de cavalheirismo britânico e muito de diplomacia e guerra fria (assim com minúsculas).
    :)

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    1. Querida Homónima, que bom teres mencionado o Le Carré. Não passará deste ano, para mim. Acabo de me comprometer aqui e agora, lerei Le Carré.
      :-)

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  3. Confesso-me muito parcial pelo Le Carré. Pela densidade dos personagens sim (inesquecíveis, como os do meu favorito, The Constant Gardener), pela pesquisa exaustiva que faz, pelas análises brilhantes, por nunca usar paninhos quentes. Para o JRS ou o Daniel Silva (outro do mesmo lote) tudo está bem quando acaba em bem. Para o Le Carré, o mundo é um lugar longe da perfeição. Não sei se lerei o da Clara Ferreira Alves (há muito que sou catapultado, para usar a expressão feliz acima, para longe dela). Mas esta thread já me fez pelo menos ficar com vontade de rever o meu fundamentalismo anti-CFA. :-)

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    1. Caríssimo xilre, eu costumava sentir-me intimidada pela CFA, não me tinha ainda produzido empatia, o chamamento, isto. Enfim, atrevo-me a sugerir-lhe que leia a entrevista na LER.
      E devo dizer que na verdade foi por ter lido a crítica da CFA ao JRS dessa vez que referi, que consegui finalmente explicar cá aos meus botões o que é a escrita do JRS, foi com a ajuda dela. Porque primeiro me irritou e depois me pôs a pensar.
      :-)
      (o mundo é um lugar longe da perfeição, por isso é que a perfeição é tão límpida quando aparece)

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  4. pobrezinho, o livro da Clarinha, mas isso sou eu, vale o que vale.

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    1. Já o leste, flor?!
      Epá, agora estou mesmo em pulgas... :-)

      (eu ando a ler uns 3 ao mesmo tempo e depois nunca mais acabo nenhum, acho que agora passo a 4 ao mesmo tempo, glup)

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    2. tive curiosidade e o livro nas mãos. não li mais de 10 páginas. não é a minha onda (e, engraçado, lembrou-me JRS...)

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    3. Tu já deves adivinhar isto, mas fica registado que vou ter em mente a tua opinião ao ler o Pai Nosso e tenciono depois vir contar-te como foi. :-)

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  5. Logo em semana de Alfaiate do Panamá!
    Jone le Carré e um autor muito independente e isso é notório na complexidade e densidade dos seus personagens. Muito coerente também nas derivações para o plano político e social - igualmente densas.
    Não é fácil, mas é enorme.

    Grande post, Susana.

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    1. Caro Impontual, aguça-me mais ainda o apetite por Le Carré. As densidades na literatura são boas, não nos deixam diluir. Mantemo-nos a caminhar sobre as águas, de onde se vê o panorama melhor. (disse Panamá? :-))
      Obrigada, Impontual.

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  6. O Pai Nosso tende para o fracote. Muita informação, boa informação, com um resultado atabalhoado e desconexo. Boa sorte...

    (já o Le Carré, para quem gosta daquele climazinho da Guerra Fria, é sempre um valor seguro)

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    1. Oh, que pena. Gostava mais que tivesse gostado do livro. Eu fiquei toda empática com ele (e com CFA) por causa da entrevista. E por isso quero gostar deste livro.
      Mas ainda bem que não podemos escolher aquilo de que gostamos, assim a vida é muito mais interessante.
      Bom fim de semana, caro Pipoco.

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  7. (ora, Susana, na verdade não li, isto foi o que contaram...)

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    1. Ah! Mas o que nos contam nem sempre encaixa em nós! Olhe, eu pus-me a ler Elena Ferrante cheia de curiosidade, ia lançada, toda sorridente, certa de que me deslumbraria, coração aberto e mente também e depois.... hum..... enfim. Passou-me ao lado. É bom, mas não é um superlativo. Para mim, claro.
      (seu maroto a induzir as pessoas em erro, ai ai, ainda vai ler o Pai Nosso e vai gostar imenso, querem lá ver?)

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    2. (é isso, depois lhe contarei como foi...)

      (ah, Pipoco, é tão fácil tranquilizar as pessoas e deixar que leiam livros sem pré-conceitos...)

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    3. E pessoas tranquilas e livres de pré-conceitos são pessoas leves, belas e felizes, portanto estou-lhe agradecida.

      (conte, conte, por favor)

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  8. Tenho vários livros dele que nunca li. Não sei bem porquê,ou se foi porque ainda não calhou... ;)

    Beijocas

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    1. Mas se bem me lembro da tua boa taxa de leitura, 37 em 2015? O Le Carré têm boas hipóteses este ano, não tem? :-)
      Beijinhos, Teté.

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  9. Nunca li JRS, nem lerei. Lembro-me bem desse texto da Clara Ferreira Alves, e inclusive de um pormenor cómico do livro, em que os amigos de Gulbenkian eram tratados por "compinchas", e que ela dava a certeza, que eu partilho, de que nunca usaria(a mulher dele, se não estou em erro) essa palavra, referindo-se aos amigos do marido. Quanto à espessura dos personagens, e que este blogue também tem, suponho que se JRS as espessasse muito teria que escrever vários tomos, como a Guerra e Paz ou Em Busca do Tempo Perdido, e isso ninguém deseja a JRS. Quanto a Le Carré, só li O Canto da Missão, de que gostei bastante, penso que O Fiel Jardineiro deve ser belíssimo (pelo que me pareceu pelo filme) já A Toupeira, é coisa mais para ler às escuras e não perceber nada, isto sou eu a dizer. Mas há igualmente um escritor de que a Clara gosta muito, Martin Amis, que consegue dar a tal espessura às personagens sem as tornar ilegíveis, o que me parece uma boa ideia. O Pai Nosso também não está na minha lista de espera; aguardo aqui desenvolvimentos. Antes de terminar, pois a hora vai avançada, gostava de dizer à Susana que este post está belíssimo.

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    1. Que comentário tão bom, Teresa. Obrigada.
      Eu li 3 livros de JRS (não sei se lerei mais, talvez dependendo do tema). São bons compêndios escolares sobre temas que podem ser interessantes e que não se aprendem na escola. O formato da história é sempre o mesmo (pelo menos dos 3 que li é). Gostei muito do "Sétimo Selo" porque aprendi imenso.
      Ou seja, provavelmente JRS não precisa mesmo de dar espessura a personagem nenhum.
      Vou tentar evitar a Toupeira, então. :-)
      E depois conto o que achei do Pai Nosso.
      Um beijinho, Teresa, e uma boa semana.

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  10. Teresa
    Se nunca leu JRS nem nunca lerá, se calhar é melhor não dizer nada sobre o assunto. Já li alguns livros dele e, sem ser um escritor brilhante, tem uma escrita quase jornalística, fluída e sobretudo, informa-nos bastante. Só por isso, vale a pena quando nos interessamos por algum dos temas investigados por ele.
    Mafalda

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  11. Sinceramente do que li do Le Carré achei os personagens pouco densos, senti-me perdida em demasiados pormenores 'técnicos', dialetos e localizações geográficas. Não gostei. Da Clara Ferreira Alves acho que é muito de modas, de dizer aqui o que se disse fora de fronteiras por pessoas de 'vanguarda' o que antes da internet quando assinar uma revista estrangeira era privilégio de poucos parecia muito interessante mas,agora...

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    1. Olá!! :-))))

      E o que foi que leste do Le Carré? (assim eu posso tentar fugir desses...) Como ainda não me inicie na leitura desse autor, não posso dizer nada.
      Sobre CFA, só há pouco tempo comecei a estar mais atenta a ela (como não vejo televisão, estes processos levam-me mais tempo e tenho que ir em busca do que me interessa conhecer), mas gostei imenso de ler esta entrevista na LER. Encontrei-lhe por exemplo humildade, virtude que não lhe atribuía.
      Um beijo, ó menina.

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    2. Olá!! :-))))

      E o que foi que leste do Le Carré? (assim eu posso tentar fugir desses...) Como ainda não me inicie na leitura desse autor, não posso dizer nada.
      Sobre CFA, só há pouco tempo comecei a estar mais atenta a ela (como não vejo televisão, estes processos levam-me mais tempo e tenho que ir em busca do que me interessa conhecer), mas gostei imenso de ler esta entrevista na LER. Encontrei-lhe por exemplo humildade, virtude que não lhe atribuía.
      Um beijo, ó menina.

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    3. Li um que se chama "O canto da missão" em que a páginas tantas me vi perdida em África, sabia que o autor me tinha mandado para lá mas,já não sabia com quem nem para quê. Foi o pior ... e, pensar que comprei o livro porque tinha uma Zebra na capa. Nunca mais compro livros com zebras! Mas, não digo que coloques de lado. Cada um deve construir a sua própria experiência e opinião.
      Bj

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