a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/06/2016

Nem junho nem o telefone esperto

Ainda não são seis horas, pelas frinchas da janela passa uma claridade fraca. Levanto-me e acerco-me dela, mostra lá o dia, ó janela, toma nevoeiro, queres nevoeiro? Não, hoje quero mais sol, podia ser junho para hoje? Mas é nevoeiro que temos, talvez um farrapo de dezembro ou de fevereiro, e do espesso: bom, perfeito para poemas místicos de feiticeiros, elfos e cavalos alados, mas isso não é aqui. Aqui arde-me o peito. Lá fora, a espessura branca barra-me os olhos, não os deixa cair no vale, ó janela dá-me junho. Varro, então, as folhas da palmeira que nasceu aqui de conjugações naturais ou forçadas, desconfio que forçadas. Varro-lhe as folhas com os olhos, uma árvore é uma árvore, mesmo que seja destas, fora da caixa, ó janela, as folhas enormes brilham da saturação que o ar não pode mais conter, estão molhadas, molhadas. Levo a mão ao peito e sinto-lhe o ardor que não está dizente com este fevereiro, um dia assim e o meu peito a arder. Isto não é poesia, desenganemo-nos já, que aqui não temos poesia, aliás aqui temos muito pouco. Arde-me o peito por ter adormecido ao sol de ontem, que o houve, se houve!, e que me queimou a pele. Abandono a janela ao nevoeiro espesso, adeus janela, e imagino, quase invejando, que do outro lado talvez seja esse verão, atrás do qual me vejo correr. Na casa-de-banho, dentro do armário, está o creme que espalho no ardor do peito e no espelho, à minha frente, encontro o mesmo tom vermelho no nariz e na testa, ena! olha uma índia. Passo o creme também aqui, e regresso ao quarto. Viro as costas de propósito à janela e pego no telefone esperto que, afinal, coisa rica, é uma janela maior, uma janela para o mundo, deixa ver, queridinho, diz lá as horas, dizes? Noto, então, num cantinho desta janela, um sinalzinho na zona destinada aos sinaizinhos do telefone esperto e vou lá ver o que é, mostra lá isso tic.

Duas horas até ao trabalho - queria o sinalzinho dizer num dia feriado no meu trabalho e, não contente com isto, ainda tem outra mensagem, ó que maravilha: um lembrete, não fosse eu ter enlouquecido ou assim, de que hoje é o aniversário da minha própria filha.

Nem é isto um junho nem o meu telefone é esperto.


(para castigo de ambos, fica um pedaço do junho que ontem esteve aqui)

15 comentários:

  1. E será possível deixar os parabéns à aniversariante e à mãe, ou à mãe e à aniversariante -- que a ordem dos factores é comutativa, em caso de tal efeméride?

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    1. Oh sim, claro que é possível!
      Quanto à aniversariante, ser-lhe-ão entregues os votos, que esta mãe aqui agradece já em direto: Muito obrigada, caro xilre. :-)

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  2. parabéns Susana! também eu ponho lembretes para os aniversários dos meus filhos...eles nem sonham... :)
    (tão bom ler-te. faz-me sentir tão gente :))

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    1. ana... glup... eu sei o aniversário da minha filha e ... o telefone lembrou-me porque é doido, eu não lhe pedi nada...
      e agora?... já não gostas de mim?... (snif)
      (mas eu sei o dia do aniversário de toda a gente, até sei o teu, sabias? :-))
      beijinho, querida ana.

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    2. eu já me esqueci do aniversário de um dos rapazes. disfarcei bem, claro...
      claro que gosto de ti :)
      mas o meu...eu sei que é um número muito bonito, mas mesmo assim...

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  3. Então muitos parabéns às duas. ;)

    E muitos beijinhos às três. Ou quatro. ;)

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    1. Obrigada, Gina :-)
      (quatro)
      Toda a gente agradece.
      Beijos de volta, muitos.

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  4. "Ardes-me no peito onde a custo
    o meu amor perpassa, e vai até
    às loucuras do corpo
    e às agruras da alma.
    Ardes-me no minuto, no segundo,
    na hora amaciada por olhos entrevistos,
    ardes-me no sangue obstruído
    e na certeza muda que me diz
    que o coração existe."

    Pedro Tamen

    Quando li pela primeira vez este poema do Pedro Tamen, pensei no meu filho. Só poderia estar hoje também aqui. O teu post é lindo e fez-me lembrar esses dias em que o peito, simplesmente, arde.

    Parabéns, querida Susana.

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    1. Eu logo vi que isto de um peito a arder dá logo para a poesia. :-)

      Obrigada pelo poema, querida Teresa. Um poema sabe-me sempre a um fruto. Este é um fruto agridoce, irrequieto e quente.

      Um abraço, e que tenhas um dia bonito, como tu.

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  5. Está mesmo, mesmo lindo este post, é assim coisa para me calar o comentário não fosse a vontade de dizer-te:

    Parabéns, querida Susana.

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    1. Que os meus posts nunca te calem os comentários, Cláudia. :-) A este eu perdoo, pronto, mas não voltarei a perdoar a um post tal façanha. Tu és das pessoas que não se devem calar!

      Obrigada, querida Cláudia, e um abraço, apertado.

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  6. Com um dia de atraso, uma grande beijinho para ti, minha linda, e para a tua menina. Muitos dias felizes, com toda a alegria do mundo.

    Beijinhos :)

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    1. Esse teu sorriso nunca está atrasado, Miss Smile. :-)

      Muito obrigada e beijinhos de volta.

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  7. Pode o dia de junho( que já passou - pois chego quase sempre atrasada a estas festas...) estar a imitar fevereiro, pode ficar com cara feia, pode o que ele quiser porque, tratando-se do dia de aniversário de um filho, neste caso filha, em nada deixará de ser o dia mais lindo de todos. :)
    Parabéns!

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    1. O dia do aniversário de um filho, ou filha, é um dia para se celebrar do melhor que a vida nos dá.
      E tu, minha querida luisa, nunca chegas tarde.
      Obrigada :-)

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