a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

27/12/2016

Outra vez a agenda e o natal não sai

Desde que deixei o meu trabalho e comecei outro, já há vários meses, vivo muito mais feliz. A ideia, aliás, era essa, mas falta-me a dona Esmeralda. Ela servia - e serve - os almoços na cantina lá do trabalho que já não é meu. Antes do natal recorri ao meu telefone esperto para lhe ligar, vou ligar à dona Esmeralda, procurei na letra E de Esmeralda e na letra D de dona, mas ela não apareceu. Tentei umas três vezes em momentos diferentes e com percursos diferentes percorridos na lista de contactos, nada. Por estar tomada com outras tarefas natalícias, optei por escrever na minha agenda, no dia 26 de dezembro, uma nota para procurar o seu número também na agenda, quem sabe o tenha escrito aqui primeiro antes de o guardar no telefone que agora o engoliu, o dispositivo praticamente sem falhas está mas é maluco, etc. Hoje de manhã era o dia 26 e portanto, ainda antes de pegar ao trabalho, abro a agenda e sigo as instruções – “ver nº D. Esm”. Folheei-a página a página e enfiei a mão pelas bolsinhas que há a cada doze semanas, a ver de papelinhos, qualquer coisa. Quando cheguei a maio, já nos dias do fim desse belo mês das flores e eu nada de número da dona Esmeralda, vejo uns rabiscos para um post que nunca o chegou a ser e cuja musa inspiradora era precisamente ela. Tomei o tempo para os decifrar na totalidade, estão tortos, escritos à pressa, incompletos. O que eles contam, os rabiscos, é simples. Eu tinha-lhe emprestado um livro de contos, um livro chamado “Contos de Eva Luna” de Isabel Allende (a dona Esmeralda começou muito recentemente a ler livros).
- Olhe menina, já acabei o seu livro. – isto com a cantina vazia, recordo-me; eu tinha, provavelmente, ido buscar café.
- Ah sim? E então?
- Então o livro tem muitos palavrões.
Não me lembro bem do livro, já passou demasiado tempo.
- Palavrões?!... Ai tem?...
- Pois tem. E eu não sabia que os escritores diziam palavrões!
(é impossível não gostar dela)
- Eu não me lembrava dos palavrões, dona Esmeralda… - se me tivesse lembrado emprestar-lhe-ia o livro na mesma - mas isso incomodou-a?
- Aixa?! – o “aixa?!” acompanhado de um olhar cruzado por cima dos óculos, bem direito ao meu.

Não encontrei o número de telefone da dona Esmeralda em toda a agenda, incluindo nas bolsinhas. Retornei ao telefone esperto, nada na letra E, nada na letra D. Não podia estar noutra letra e eu não entendo isto. Suspiro, pego no trabalho, mas não dou a tarefa “ver nº D. Esm” por concluída.

Foi já muito depois de o sol se ter posto que o telefone tocou, o esperto. Estamos junto um do outro, pego-lhe, abro a capa da capa - como chamar à capa da capa do telefone? - abro a capa da capa e vejo que é ela, é a dona Esmeralda a ligar-me. Não acredito!, digo em voz alta (principalmente porque o telefone mostra “D. Esmeralda”, portanto tinha lá o número gravado e andava a gozar comigo desde antes do natal). Está lá?

Quis saber se estou bem, perguntou-me pela família, pelo meu novo trabalho. Disse-me que o seu natal tinha sido bom e que agora estava ali sentada, sozinha, na sua cozinha, e lembrou-se de mim. Eu contei-lhe da intenção de lhe ligar, das pesquisas nos registos, até contei que escrevi para procurar na agenda, escrevi no dia de hoje, precisamente no dia de hoje, dona Esmeralda!

Portanto temos que o espírito do natal, que primeiro não queria vir, agora não quer sair. (e, tão lindo, rimou)

(entretanto, a minha jovem filha desvendou o mistério – alguns contactos estavam gravados noutra memória do telefone, género escondidos, uma coisa muito engraçada)

13 comentários:

  1. E isso, também já me aconteceu haver contactos ocultos; mas basta colocar o nome que o aparelho procura e encontra:) - as máquinas têm destas coisas e, `s tantas, a gente nem sabe quem ali está escondido.

    Tem razão, o Natal é também isso mesmo, lembrarmo-nos de pessoas como D. Esmeralda, que passam na nossa vida e se deixam em nós, a quem somos gratas.
    Também gostei dos contos de Eva Luna que não me lembro de terem palavrões, mas pode que sim.
    Até ao novo ano nada se perde se for sendo Natal:)

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    1. O meu telefone anterior, nada esperto, tinha os contactos todos visíveis, os da memória do telefone e os da memória do cartão, ou seja, eu não esperava isto da tecnologia mais recente... :-)

      A bea entende-me. E isso sabe tão bem.

      Um abraço natalício (ainda pode ser, não pode?)

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  2. Ooohhhh (som que uma das minhas sobrinhas emite quando se enternece com qualquer coisa)!
    Saudades da D. Esmeralda...

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    1. Pois é, sal, eu sei. Também sinto saudades dela.

      :-) (imagino bem esse Oohhhhhh... também os tenho por cá)!

      (e a versão: "Oh c'amoooooor!"?)

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  3. E quem empresta agora livros à D. Esmeralda?

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  4. Bem me parecia que ainda farias mais posts com a Dona Esmeralda. :)

    E este nem é do passado, já viste?

    Beijinhos, Susana

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    1. E parecia-te muito bem, Gina. Aliás, provavelmente este também não será o último. :-)
      Beijinhos para ti também.

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  5. O que diria a dona Esmeralda se soubesse que há pessoas que nunca viu que já estavam a sentir-lhe a falta? Pois, também já tinha saudades da dona Esmeralda que foi-nos sendo apresentada por ti. E se soubesse que contribuiu para trazer-te, para ficar, o espírito natalício?
    Fico contente por o espírito estar agora a sentir-se tão bem instalado ao ponto de não querer ir embora.
    Boa noite, Susana :-)

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    1. * "a ponto" de não querer ir embora :-)

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    2. Infelizmente, Cláudia, tenho a impressão que mesmo que lhe dissessem isso - que há quem lhe sinta a falta sem ela saber - ela não acreditava. Sente-se demasiado, como dizer, "desmerecedora" de mais do que um mínimo. Há pessoas que se veem sempre muito menos do que são.

      Uma boa noite, Cláudia. :-)

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  6. Acontece-me muito, penso numa pessoa e ela liga ou envia uma mensagem, já cheguei a assustar-me com isso, porque chega a acontecer ao minuto. Para uma descrente como eu é difícil explicar...mas como tinha um pai místico e que acreditava em transmissão de pensamentos, energias comuns e coisas dessas...deve ter ficado algo nos meus genes.
    Um beijinho Susana e não deixe fugir as D.Esmeraldas que passarem pela sua vida.
    ~CC~

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    1. Que bom também lhe acontecer destas coisas, CC. :-) a mim acontece muito, principalmente com algumas pessoas, e de facto é inexplicável.
      E não, não tenciono deixar fugir a minha dona Esmeralda. :-)
      Um beijinho para si e um abraço apertado, com votos de um Ano Novo muito mas muito melhor do que o velho.

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