a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/02/2017

Entre beijos e abraços (o botão)

Por um lado, procurei na internet um restaurante numa zona de Lisboa que vibra de um modo ressonante comigo. Encontrei, telefonei e marquei mesa para jantar no dia seguinte. Informei depois as restantes comensais sobre as possibilidades de estacionamento na área que, não sendo perfeitas, não requerem mais de dez minutos a pé e neste escorvar de primavera o que é isso senão um momento de vibração citadina e prazerosa.
Por outro lado, o botão de cima do meu casaco cinzento está a ameaçar cair vai para semanas, e eu aguardo que ele caia à sua vontade; quero saber onde e quando vai ele escolher o momento e só nessa altura darei seguimento ao processo que urge, pregar o botão de volta ao sítio dele se conseguir, se não fica um nadinha ao lado, como de costume.
Depois de ter enviado o email às minhas amigas com os detalhes para o jantar, visto o casaco e saio de casa para ir comprar fruta e legumes frescos. No caminho cruzo-me com a vizinha do segundo, que vem do cabeleireiro e está bonita. Quem sabe já terá recuperado, pelo menos talvez em parte, da morte do marido.
- Que bonita está a minha vizinha!
Ela devolve-me um elogio por cortesia, que não me serve, e ao mesmo tempo lança a mão ao meu botão pendurado. Pega na farripa de linha que sobra, caída, e enrola-a com vigor em torno do chamado pé, no local entalado entre o botão e a fazenda, prevenindo-me para a queda iminente e consequente perda daquele, que depois não consegue arranjar igual e é o cabo dos trabalhos, tem de mudar os botões todos ao casaco.
- Bem sei, bem sei... muito obrigada – e continuamos ambas os nossos caminhos, a queda do botão assim adiada, a vizinha é prudente e estará certa, mas eu escolho observar o aumento de entropia dos fenómenos inofensivos sem os interromper, é tão mais divertido assim.

No dia seguinte, depois de estacionar num dos locais recomendados às minhas companheiras de jantar, subo a avenida inspirando a primavera anoitecida, ali nascida em florinhas brancas numa árvore pregada à calçada lisboeta e sou a primeira a chegar ao restaurante. Sento-me na zona do bar onde aguardo apenas alguns minutos. Quando as minhas amigas surgem, entrando juntas de encontro casual lá fora, eu levanto-me, distribuo beijos e abraços e o botão cai no chão.

15 comentários:

  1. E quantos abraços cabem na casa do coração, querida Susana?

    Eu acho que o botão só caiu depois de ter costurado momentos redondos e bonitos com aquela linha invisível que cose alentos.

    Um abraço, daqueles que se pregam ao coração :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Todos (resposta à pergunta).

      Um abraço desses de pregar apertado, querida Miss Smile. E bom carnaval.
      :-)

      Eliminar
  2. Foi por uma boa causa, o despencar do botão. Abraços valem isso é muito mais!

    Abraço, então, Susana :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Corrector malvado que põe acento no e! :)

      Eliminar
    2. Pois foi. Afinal talvez seja mesmo boa ideia esperar que a fruta amadureça. (neste caso o botão, claro)

      Outro abraço, Maria :-)

      Eliminar
  3. Alguns botões são assim, caem redondos perante o efusivo, desmaiam da demasia.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu até desconfio que os objetos vivem connosco o fio condutor que gere as leis do universo.
      (mas talvez seja devido ao processo de costura das máquinas nas fábricas dos casacos ser um bocado duvidoso, é o terceiro botão que me cai deste)

      Eliminar
    2. ah, ah, ah...lá se vai a minha teoria da moleza botoeira a desfalecer ternuras perante amplexos e afectividades. Afinal é de ordem maquinal; mas o momento foi oportuno, isso, é claro e evidente.

      Eliminar
    3. Não, bea, a sua teoria, vendo bem, é válida para todos os botões bem ou mal pregados, sendo que os "mal" caem mais depressa e revelam também mais depressa que foram vítimas do "efusivo, desmaiam da demasia". :-)

      Eliminar
  4. Tão certeira, a tua vizinha, no gesto e no aviso, tanto a linha prende por umas horas e retarda a queda, como é mesmo um cabo dos trabalhos encontrar igual. Ando há semanas com um botão do meu casaco - que também é cinzento - dentro do bolso, como é um daqueles do meio, o cachecol tapa a falta. ;)
    E isso é que foram abraços, hã?

    Bom fim de semana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Certeira, sim...
      Se bem que eu nunca tive isso de ter de mudar os botões todos a nenhum casaco. Ah, não! Mudei uma vez porque não gostava deles. :-)
      (então são dois botões dentro de bolsos cinzentos, um aí e outro aqui)
      Um abraço também para ti, Gina.

      Eliminar
  5. todas as pequenas preocupações caem quando estamos em boa companhia.

    ResponderEliminar
  6. este texto anda-me aqui a deixar tal como um botão pendurado por fio periclitante: tanto estou quase a prender-me ao que hei-de dizer, como me fogem as palavras...calhando para dentro de algum bolso.
    beijinhos e boa semana, Susana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ó Mia, as palavras deixam-se mas é apanhar muito bem por ti. Ai deixam deixam.
      :-)
      Boa semana e um beijinho para ti também.

      Eliminar