a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

20/04/2017

Postas de pescada (um post melhorzinho)

Lá fui dar àquele balcão do supermercado onde se passam temporadas com frio. O sargo anunciado selvagem numa tabuletazinha espetada no gelo limítrofe, mas foi para a pescada que me virei, uma inteira, se faz favor, depois partida em postas assim - aos meus dedos impus configuração de largura de postas, umas senhoras postas.
- Para cozer?
Para cozer. Engraço muito com os laivos nacarados, acho que é nacarados, que o teor de ferro confere à superfície do naco branquinho, depois, já no prato. É só inclinar a cabeça e vê-se perfeitamente, são azuis, são verdes, são lilases. Mas aguardo ao balcão desta temporada ao frio bastante bem vestida. São duas camisolas de gola alta, ó se faz favor, uma sobre a outra e depois o sobretudo cinzento ao qual recentemente preguei um botão caduco. Normalmente é ai que frio, ai que frio, mas hoje pude observar os peixinhos com vagar. A minha filha vinha distrair-me a espaços perguntando que mais vai ser, mãe, ela não tão bem vestida quanto eu, nem por sombras, ia abastecendo o carrinho de compras que me secundava, os ovos, uma garrafa de vinho branco, o pedaço de abóbora que a esta hora já virou sopa, o louro, os iogurtes. É algures entre os ovos e a abóbora que torno a olhar a minha pescada inteira ainda não partida, porém já sem cabeça, e a vejo toda abandonada por baixo da torneira móvel extensível que lava balcões de tripas e o chão e as raparigas que trabalham o peixe se for preciso mas não foi, portanto pergunto, então a minha pescada? Estou meio a querer zangar-me daquele abandono, mas só meio por causa do agasalho que me mantém quente a paciência, admirada de ver a moça a descascar as escamas doutro bicho que até deita corpo de pescada mas eu daqui não tenho a certeza. Então a minha pescada?, repito, ao que ela diz já vai, já vai e a cigana que está aqui ao meu lado no balcão chega-se mais perto e explica-me que eu estava distraída a conversar, e estava, sobre os ovos, e não vira que a primeira pescada não estava boa, que estava moída. Interessei-me. Moída?! Moída, querida. A cigana chamou-me querida. A rapariga do outro lado do balcão, que largou por momentos a pescada segunda, sempre era pescada o bicho supracitado, vem então ilustrar a conversa com a pescada primeira nos braços, mas já sabemos que sem cabeça, vê, está moída. Pressiona com os dedos o lombo descoberto e diz, não podemos dar o peixe assim aos clientes.

Quando a pescada segunda, em postas, foi colocada suavemente no tapete rolante da caixa de pagamento, perguntam-me se tenho cartão de cliente.
- Ter tenho, mas está em casa. Vim direta do aeroporto, aterrei mesmo há bocadinho.

E foi muito o que disse; explicar que esta minha filha já me vai buscar de carro onde eu precisar, que o sobretudo e as camisolas de gola alta deram um jeitão à beira do pescado para que não me zangasse sem razão e que estas postas, minha senhora, podem muito bem ir dar em post é que já não fiz.

6 comentários:

  1. Oh...o frio que também costumo ter nessas secções dos supermercados! Deviam providenciar um agasalho aos clientes...
    ~CC~

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    1. Isso havia de ser uma excelente ideia... tipo as mantas que agora se oferecem nas esplanadas invernosas.
      A única coisa que consola é saber que o pescado está assim muito mais livre de bactérias e coisinhas afins, tão indesejáveis.
      :-)

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  2. A area dos congelados esta sempre mais que gelada em todos os supermercados!
    Foram simpaticos em lhe dar um peixe bom em vez do moido.

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    1. Foram, sim. Eu não iria notar que a pescada vinha moída. Mas na verdade se me distraí é porque confio. E está provado que posso. :-)

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  3. Pois eu não sabia que é o ferro o responsável por essas tintas de cores nacaradas na pescada e que me lembram sempre o avesso de uma concha sendo que são peixe.
    Não simpatizo com esse inverno de compra. E ainda simpatizo menos com o cheiro que por lá ciranda. E é um problema que o peixe não vem ter comigo a casa. Ora esta.

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    1. Eu não tenho nenhuma certeza científica de que seja o ferro o fazedor das cores, mas foi o que me disse alguém quando, na infância, perguntei que cores eram aquelas tão lindas no peixe. :-)
      O cheiro do peixe não faz jus ao sei paladar, isso de facto não.

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