a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

04/04/2017

P'trúgal Cuqui

Finalmente encontrei o tipo de letra que eu queria. Já tinha procurado umas vezes, não muitas. E é assim grandão porquê, porque eu entretanto, nestes quatro anos de blogue, já engordei quatro quilos não sei como porque não como (olha que giro) assim tanto, e os meus olhos empobreceram bastante, para não falar no esquerdo que tem chorado muito ao vento. Mas nada a temer, estou envelhecendo com alegria, e não tenciono plastificar-me nadinha.

Portanto vou usar desta nova letra tão boa para contar uma história que foi antes do blogue, dos quatro quilos e disto dos olhos, etc., e para se perceber aquele título ali.

Eu estava anfitriã de dois cidadãos chineses no meu contexto de trabalho. Um cidadão chinês de cabelo todo espetado que parecia ter dez anos de idade mas tinha uns vinte e dois e outro cidadão chinês, esse engenheiro, que já ia nos trinta mas sombra de barba nenhuma. Sabendo eu que os cidadãos chineses andavam a comer porcarias ao jantar nas lojas de comida rápida que apanhavam por aí e sendo eu um bocado maternal, pensei, coitadinhos vou convidá-los para jantar cá em casa num sábado e convidei. Usei do meu inglês o mais bem articulado possível, como tinha que ser, e eles muitas exclamações fizeram quando entenderam o convite. O cidadão chinês de cabelo espetado saca do seu dispositivo achatado do bolso das calças, que era também um dicionário, e põe a palavra chinesa que foi traduzida para "bother" querendo dizer que me iriam incomodar. Passando este na na na da cerimónia, consegui que eles aceitassem e para enriquecer a situação e não ser apenas eu e duas menininhas de cabelos encaracolados, pedi à minha irmã mais velha para vir juntar-se a nós, com seu marido e filhos, dois rapazes dentro da faixa etária das minhas. Não me lembro o que cozinhei, só me lembro que a minha irmã não aprovou a minha escolha, mas sendo ela uma dona de casa exímia e eu uma dona de casa esforçada, é de esperar. Servi o vinho que era tinto e, antes de começarmos a refeição erguemos os copos, os cidadãos chineses imitaram-nos, dissemos tipo Cheers! e nós um golo e pousamos os copos e eles um golo e todos os golos de seguida até ao fim, esvaziam os copos de uma vez. Ninguém se riu, nem os meninos, que olhavam muito sérios. Comemos então a tal refeição que a minha irmã não aprovou (ela queria uma mão de vaca, uma dobrada, um cozido à portuguesa, mas eu sei lá fazer essas coisas) e no final, eles já com segundo copo de vinho servido e agora tomado aos golinhos (aprenderam), veio a sobremesa. Eu tinha feito uma tarte de maçã com massa folhada que recebeu muitos aaaaa's por parte dos meus convidados chineses, ao que lhes disse, satisfeita com a aceitação, que não era difícil de fazer. Não acreditaram que tinha sido eu a fazer a tarte. Fui. Arralhááá! Fui, fui. Alhálhááá! A sério que fui eu. Aaaalhá háá!
Mau. Levantei-me e fui buscar o livro de receitas de onde tirei esta, folheei-o à frente dos cidadãos chineses até encontrar a fotografia da mesma tarte que estamos a comer, mas eis que pelo caminho, a páginas tantas literalmente, eles os dois ao mesmo tempo lançam um grande ralháááá!!!! e apontam com muita veemência para o livro. Voltei folha a folha para trás, mais devagar, até ficar à vista a página que exibia o nosso, o único, o suculento e delicioso pastel de nata. Os dois chineses gritam mais ou menos em uníssono "P'trúgal Cuqui!!!" (eles queriam dizer uma coisa do tipo "Cookie from Portugal" ou isso). Jesus. O que se seguiu foi o meu cunhado a dizer-lhes imediatamente que sim, que é um bolo muito português, que aliás estando nós a uns quilómetros da fábrica, da genuína, autêntica, centenária, ninguém sabe a receita do original, o verdadeiro, ninguém-sabe-a-receita, ele frisou, podíamos ir lá, ainda deve estar aberto, diz o Mário olhando para o relógio e olhando para mim a obter consentimento, claro que sim, vamos já lá (eu mentalmente a preparar-me para a fila que não desmancha nunca naquela porta). Voltaram-se um para o outro e iniciaram a discussão para decidirem se aceitavam ou não mais este convite, nós suspensos a aguardar o desenlace, o fumo branco, a conclusão.
Foram uns minutos de
- Alhááa!!!!
- Arralhááá!!
- Lhálhalhááá!!!
E vocábulos do género, mas muitos, que aquilo se durou.

Quando finalmente se calam, vira-se o mais velho para mim e diz:

- No need, no need, many P'trúgal Cuqui in China, many many.

(claro que desde esse dia, na minha família, passou o pastelinho de nata a chamar-se P'trúgal Cuqui)

32 comentários:

  1. Não me espanta essa do many mano. Ouvi dizer, não sei onde ou dito por quem, que no estrangeiro lá fora se encontra o que de melhor se faz cá. Mas do melhor, melhor. Mesmo!
    Talvez tenhamos de emigrar para ter direito ao melhor que se produz cá....
    Enfim. Desabafos...

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    1. Querida Mafy, que bom "ver-te" :-)

      Talvez seja natural que as coisas boas tenham força suficiente para saltar fronteiras. Tal como muitas pessoas nossas, das melhores, saltam. Desabafos, esses, ao menos podemos tê-los.

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  2. (risos)

    Gostei tanto da estória que contas. Então, e eu, que comprei um dispositivo achatado novo (quase roçando os 400 euros), pensando que me livraria de um dispositivo achatado idealizado na China (que já foi duas vezes para garantia, em menos de 10 meses de uso), e não é que a tal marca que acabo de comprar também é desses pontos geográficos. É. É como nos alerta o nome da banda de post-rock russa: Everything is Made in China.

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    1. Mas é mesmo, Diogo, quase tudo é feito na China. Mal ou bem, porque os chineses também sabem fazer bem. Portanto desejo que esse teu dispositivo achatado a roçar os 400 euros seja dos que se fizeram bem.
      Esta é uma das histórias antigas que eu tinha para contar no blogue. :-)

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  3. Susana, é talvez a segunda vez que me acontece, nisto dos blogues: não consegui ler até ao fim porque me foi urgente vir dizer-te (porquê?, céus, porquê?!) que este texto é maravilhoso, começa logo com aquilo da "letra", que notei à primeira e pensei "olha, assim é que isto se lê ainda melhor"(mas pensando, ainda, que era alguma maluquice do meu pc, que às vezes dá-lhe para inovar), e depois descubro que foi obra tua (autora do blogue), e depois falas em um tipo de generosidade que, enfim, nem eu acredito que exista, embora saiba que sim, e depois são chineses... e... e... vou ler o resto, mal me passe esta euforia :)

    é cliché agradecer, e eu não gosto de clichés, por isso não te agradeço, pelo contrário, mando-te masé "bardamerda"!

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    1. Acho que é a primeira vez que alguém me manda "bardamerda" (à merda já tinham mandado) e não posso dizer que não foi divertido. :-)

      Obrigada pelo teu comentário, pela espontaneidade, pela confiança. Sabe tão bem, isso.

      (eu não sei se gosto de clichés... desse gostei, já disse) :-)

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    2. Eu devia ter escrito "desse não-cliché gostei", e agora aproveitei para repetir, pronto.
      :-)

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  4. Gosto muito da nova letra com serifa, mas mais ainda da história com as suas muitas serifas. Many serifas, como se diz em cantonês.

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    1. Mas muito caro xilre, está-se mesmo a ver quem eu fui imitar, não está-se?

      Pois foi a si, foi. Este se não é o seu tipo de letra, é um primo chegado.
      :-)

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  5. Eu vinha dizer o quanto adorei, passo os olhos nos comentários e fico aqui a pensar se agradeço a ti e à Lady Kina por me deixarem com um sorriso totó ou se vos mando para qualquer lado. Tens um coração grande e isso vale muito mais que escolher a ementa perfeita ou ser uma dona de casa exímia.

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    1. Mas Be, os sorrisos nunca são totós. :-)
      Não sei se o meu coração é assim tão grande, porque na verdade aqueles chineses e outros que recebi divertiam-me muito. E ensinaram-me também umas coisas.
      Obrigada, Be, e um beijinho.

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  6. Obrigada, Susana. Do fundo do coração. Nunca me tinha acontecido ler um post devagarinho com medo que se me acabasse. :)

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    1. Ah, querida NM, obrigada eu, bolas. Esse foi um comentário bom, mas bom.
      :-)

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  7. Mas afinal, eles gostaram da tarte de maçã? Muito importante. E do jantar, também gostaram pois claro. Mão de vaca nunca experimentei e acho que nem tento, não deve prestar:).
    Pois, mas ou os meus olhos encolheram, ou a letra está mais pequenina. Mas posso ser mesmo eu. A história está jeitosa, sim.

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    1. Eles gostaram imenso da tarte de maçã. Gostaram tanto, que lá acharam que não podia ter sido eu a fazê-la (não sei então quem poderia tê-la feito, não perguntei, a comunicação também não se prestava a tanto).
      Eu lembro-me que fiz uma coisa com massa ou arroz e o resto aos bocadinhos, para que eles conseguissem comer com os pauzinhos. Eu já os tinha visto a tentar comer na cantina lá do trabalho com talheres dos nossos... Eles não sabem mesmo usar faca e garfo. :-) (e isto talvez ainda dê outro post)

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  8. Com que então esses chineses dispensam o P'trúgal Cuqui de Blém?! Dando-se por satisfeitos com os many many que têm na China?! Imperdoável...

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    1. Completamente. Ficámos para lá de indignados. O nosso pastelzinho de Belém, todo bom que não se pode (por acaso o amigo Evandro já provou um desses, mesmo que não dos de Belém?) ser assim comparado às imitações chinesas, aposto que secas e ressequidas?!... não.

      Um tempo depois desta história fui a Macau e lá vi, de facto, muitos muitos pastéis de nata, mas com uma particularidade: todos em tamanho miniatura.

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    2. Já tive a alegria de provar os de Belém na fábrica. Qualquer coisa de inesquecível. Estive aí na terrinha em 1988 e em 1995. Quero muito voltar. E assistir a uma partida do Blenenses...

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    3. Então está na hora de voltar, Evandro. A terrinha está muito diferente agora, está mais bonita.
      O Belenenses é que não tem dado grande coisa, deve ser da vista que dali se tem para o rio, distrai. Mas é o meu clube. :-)

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  9. Saí sem comentar no post anterior e agora já aqui vim duas vezes e, é que, por exemplo, um abraço em silêncio está carregado de afecto e simultaneamente é esteticamente bonito, a lamechice também está carregada de afecto, mas ai que horrível e assim, agora, como passar o abraço para palavras, estrear a letra nova, dando um chega para lá na lamechice que há em mim e que, às vezes, fica cheia de vontade de mostrar que existe? Talvez se disser que tenho tido o privilégio de ir conhecendo ao longo da vida outras "Susanas Rodrigues" e depois encontrei-te aqui e como penso que há demasiada gente desconfiada, constantemente em busca de segundas intenções, seguidores fiéis do ditado "Quando a esmola é grande, o pobre desconfia", penso que precisam de saber que há gente que trata outra gente como gente só por isso mesmo, sem nada na manga e dando pontos sem nós e quando contas estas histórias reais fico mesmo com vontade de agradecer-te ter-te apetecido ter um blog.

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    1. Cláudia, um dia ainda escrevo sobre isto no blogue, mas por agora resumo assim: nunca, em um único momento da minha vida fiz alguma coisa por alguém que não fosse eu. Se tenho um blogue é porque EU gosto de escrever, se conto histórias, é porque EU me rio enquanto as conto, e por aí fora. Nem acredito em ninguém que diga "faço isto por ti". Agora corro o risco de começares a não gostar mais de mim, querida Cláudia, mas a verdade é esta. Mesmo as coisas que faço contrariada, faço-as porque preciso POR MIM de as fazer. Se ofereço um presente a alguém, é porque EU gosto de ver esse alguém contente com o presente. E chega, acho que já percebeste. :-)
      Por norma desconfio das pessoas desconfiadas. Mas antes de decidir desconfiar, mostro-lhes de maneiras que eu cá sei que podem confiar em mim. Algumas, quando percebem que podem, deixam de estar desconfiadas. Mas isto é conversa para muito café ou muito chá.
      Quanto à lamechice, acho que tem má fama porque normalmente se associa a falsidade. O que não é de todo o teu caso. Portanto sê lamechas à vontade; este blogue, Cláudia, também é teu.
      :-)

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    2. Oh! Afinal és execrável! (não resisti à parvoíce)
      Boa noite, Susana :-)

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    3. E não é pouco!

      Boa noite, Cláudia. :-)

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  10. que bem contado, Susana! e que ideia gira para o nome de um bolo...hmmm...ainda vou fazer sucesso com o teu post :)

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    1. minha querida ana, tu faz lá esse bolo maluco e conta-nos tudo, já que não o vamos poder provar! :-)
      (assumo eu toda gulosa que vais fazer um bolo maravilhoso.... vais?)

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    2. eu só mostro alguma coisa quando está maravilhosa, o resto escondo. por isso... :)

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  11. Alhááá! Aralháaaa! Que já me ri com esta história... Bom demais, Susana. :)

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    1. Estas diferenças culturais com os chineses dão azo a muito riso e acho que de ambas as partes. Alháá!
      :-)

      (Estimo muito as tuas melhoras, luisa.)

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  12. só cheguei agora, pois tenho andado arredada, e como sempre apanho tudo bom aqui neste lugar, mas isto hoje, já vai um bocadinho pró ressequido -o meu comentário, já se vê- ressequido como os "many, many cuquis, lá do império do meio. e muito boa noite, que entre a tarte de maçã e o pastel de belém fiquei com vontade dos dois, após uma sopa de legumes e uns moranguitos com mel, que mais não havia hoje à disposição, pelas nove e qualquer coisa da noite.
    beijinhos , Susana.

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    1. Querida Mia, o teu comentário nunca é ressequido. É sempre um prazer saboreá-lo. Hoje ainda por cima com sopa de legumes e morangos com mel.
      Beijinhos, Mia, e obrigada. :-)

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  13. Cheguei ao blog atraves dum outro que agora ja nem sei qual...
    Gostei imenso do que li, escreve muito bem Susana, com imensa graca.
    Ainda hoje estive num jantar com imensa malta Portuguesa e tambem comi um P'trúgal Cuqui! Uma delicia, mas este era Australiano e um pouco aquem daqueles da fabrica original...

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    1. Olá Sami, bem vinda! :-)
      Muito obrigada pelas suas palavras. E por partilhar esse P'trúgal Cuqui Australiano aqui connosco.
      E uma Boa Páscoa aí desse outro lado do mundo.

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