a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

22/02/2018

As febras

A meio da tarde encontro-me sentada na grande sala de reuniões encostada à espalda da cadeira almofadada, quando recebo um sinal nervoso proveniente concerteza do subconsciente. O sinal aponta para a ausência, entre mim e a espalda da cadeira, do meu casaco dobrado e pendurado à minha moda precisamente como esteve durante toda a manhã, aconchegado. O sinal nervoso não inclui informação adicional sobre uma eventual investida da minha parte em fazer o que muitos na reunião fizeram: pendurar o casaco no cabide dos casacos. Então desligo-me do orador e rebobino os movimentos em torno da hora de almoço, a última vez que me enfiei dentro dele: mas onde andará o casaco? Deve andar pela casa dos seis, sete anos, é um casaco nada novo, porém tão jeitosinho nos bolsos e no corte cintado, que eu quero ele de volta. Só pode estar num de dois lugares – o carro da Maria - onde nos deslocámos eu, ela e a Constança para o local do almoço – ou o próprio. O próprio era a tasca menos limpa em que eu já entrei, que até me admirou lá ter entrado, mas as minhas companheiras garantiam ter comida da boa e eu cá gosto de comer. A minha mãe não teria entrado ali e eu sem estas companheiras afoitas puxando por mim, idem. Elas tagarelavam alegremente sobre um cozido à portuguesa que haviam comido ali (ou seria noutra tasca, afinal?) em tempos. Ao sentar-me tirei o casaco, pendurei-o nas costas da cadeira à tal minha moda e pedimos o que havia: febras (para mim) e grelhada mista que incluía febras e outras partes de um porco (para elas). Vieram três na minha travessa e eu disse alto que não iria comer mais do que uma febra. A mulher tinha uma tatuagem no braço daquelas que se faziam antigamente e que não se percebe nada o que são e tinha o cabelo esquecido de fazer as raízes há uns cinco centímetros atrás. A sua expressão, ao ouvir-me dizer que três febras era muito, traduzia-se bem para estas-madames-vêm-para-aqui-dar-se-ares. Os outros ocupantes da tasca, já me esquecia, eram todos homens e estavam todos (também) de cabeça levantada a olhar a televisão ligada enquanto mastigavam. (Também) todos parecia não terem tomado banho neste dia nem em dia nenhum da última semana ou duas e um deles tremia muito das mãos. Mas no meio disto tudo comi as três febras. No que respeita às batatas fritas e à salada também não ficaram sobras nas travessas que, como não traziam talheres próprios, nos incitaram às três a comer diretamente das mesmas. Portanto, mesmo tendo do meu lugar vista direta para a retrete da casa de banho que em termos de limpeza está de acordo com os outros fregueses, não posso dizer que não estava boa a comida. Mas posso dizer que quando em voz alta referi a situação de afinal ter comido tudo, a mulher tatuada, sorrindo com os dentes de que ainda dispõe, expressou algo no olhar como estas-madames-fazem-se-de-finas-mas-depois-comem-que-até-coiso, uma vez que eu não sei exatamente que palavras poria ela em “coiso”. Contudo voltemos à sala de reuniões, onde já nos estamos a levantar e a despedir.
- Maria, podemos passar no teu carro a ver se lá deixei o meu casaco?
Não tinha deixado. Então, pouco depois, mal assomei à porta da tasca – a esta hora apenas com um lugar ocupado por uma freguesa velhota - a mulher tatuada sorriu, apontou para o cabide dos casacos que se vê ao fundo e disse
- Eu ainda fui atrás de vocês para avisar do casaco, mas já não as apanhei.
Antes de sair com o meu casaco na mão, tornei a dizer que as febras estavam boas. É que nunca me tinha visto comer três de seguida.

6 comentários:

  1. Tu não me digas que foste ao Rui do barrote?!? :b

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  2. Um casaquinho com cheiro a febra:) Mas de volta a si, o que mostra que esses sítios são mais seguros que muitos outros.
    ~CC~

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    1. O casaquinho já foi dar umas voltinhas na lavagem semiautomática, claro :-)
      Ocorreu-me, de facto, que podia já não encontrar o dito, ao voltar à tasca... (estupida e injustamente).
      :-) Boa semana, CC.

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  3. gostei pra lá de tanto das febras e das personagens de boca cheia e olhos na televisão...

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    1. E eu gosto pra lá de tanto de te ver por aqui, Manel :-)
      (obrigada)

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