a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

26/10/2018

Cascas da sopa às cabras

O ex-vizinho inglês, aliás, um dos ex-vizinhos ingleses da aldeia da serra, é de notar que sendo esta uma aldeia de Portugal, quando cá estou sou a muito única portuguesa se não contarmos com o padeiro mas só à hora do padeiro, óbvio, o ex-vizinho inglês, dizia eu, voltou. Tinha sido o último habitante permanente, logo depois da mulher checa sem dentes e com um cão louco que me metia cá um medo, portanto o último a abandonar a aldeia à intempérie, seja aos ventos seja ao sol, aos pássaros, às martas, sim, há martas, javalis, veados, pirilampos em junho e gafanhotos nesta altura do ano. Voltou e trouxe a família que, entretanto, aumentou. Mulher, filho que já começou a ir à escola e uma filha novinha. Tem um problema de bronquite a menina e os ares de Portugal são mais favoráveis a pulmões frágeis do que os daquela ilha que ou sai ou não sai da Europa, dá-me a mim ideia que no fundo no fundo não quer sair mas finge que quer, estes nativos de que falamos não saem, pronto, até voltaram para ela. Está mais gordo, o vizinho inglês. Nem o reconheci quando, há dias, o vejo passar na rua com uma cabra agarrada por dois pés, a cabra de cabeça para baixo chateada que eu sei lá, a avaliar pelos gritos que vinha dando rua abaixo. Parecia a aflição de um gato mas era a aflição de uma cabra (só que a dos gatos é mais conhecida). O vizinho é bastante forte de força, agora não digo forte de gordo, é de força que digo, porque erguia a cabra acima do seu ombro, que a bicha de pequena não tem nada, ou seja, para não vir a cabra a varrer a rua com o focinho, coitadinha. Mas fiquei na dúvida. Na altura recolhi a minha espreitadela para dentro e hoje é que soube que o vizinho é ele, o mesmo, o John, olá John, então de volta? E a cabra?
- Ah, as cabras estão finas, não são para comer nem nada, são de estimação.
- As cabras?!
- Sim, já temos quatro, ontem fui buscar mais duas.
O vizinho inglês faz portanto coleção de cabras e não vamos ficar por aqui.
- E cinco cães.
- Cinco?!
- Sim, mas são mínimos – John dispõe as suas mãozorras em prancha vertical, paralelas e próximas entre si – são Chihuahua.
- Ah.
Está, então, uma família bastante composta a repovoar esta aldeia quase sempre toda deserta.

Mais tarde, após a noite cair em cima das cabras e dos Chihuahua (fui ver como se escreve Chihuahua), fiz uma sopa e o jantar. Então veio de repente a mim uma ternura proveniente da coleção de cabras do vizinho e pus-me a guardar as cascas todas da sopa. Oh c’amoooor!, como diria a minha irmã Ana, que me faz sempre rir quando imita as suas alunas. Batata, cenoura, curgete, alho francês, o alho francês não tem cascas mas eu fiz por lhe arranjar uma espécie dalgumas, alface, idem relativamente a cascas, e ainda coentros, novamente idem. As cabras vão gostar. As da cebola reservei para o caixote do lixo, colam-se a tudo e esvoaçam, podem engasgar as cabras, de maneira que lixo. Depois fui e juntei as cascas da maçã que compôs a salada para o jantar, acho até que inclinei a cabeça com a ternura que me bateu. Oh c’amor!

16 comentários:

  1. Cabras alimentadas à moda antiga, nada de rações. E nem são para comer . C'amor, realmente :-)

    Bom dia

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    1. Olá noname, bem-vinda! :-)
      Estas cabras estão para ali felizes, que eu bem as oiço, e não me parece que sejam alimentadas a ração, há muita erva por aqui.
      Bom dia :-)

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  2. Parece-me que a descentralização ganhou um novo conceito, o que traz novas perspectivas, também para as cabras. Mas, as cabras, mesmo de estimação, não devem exagerar nas cascas de batata (tóxico para elas). Se quiseres mimá-las dá-lhes fruta e cereais em grão. Vão adorar :)
    Um abracinho horroroso

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    1. Ora gaita, estou mesmo a ver que nada sei de cabras. ehehehh

      Boa tarde

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    2. Olá Teresa, há muita gente que começa a deixar a vida das cidades para se vir enfiar nestes sítios recônditos. Recônditos mas que purificam a alma, e isso tu sabes, claro :-)
      Bom, vou ter cuidado com as cascas das batatas, obrigada pela dica :-)
      Ou outro horrorozinho de volta.

      Noname, a nossa Teresa sabe muito de cabras e de outros animais, cães, vacas, gatos, pássaros, cavalos... estás a ver, não estás? ;-)
      Boa tarde :-)

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    3. E, é tão bom saber que há quem goste e respeite os animais. Eu, sou das que acham que: Só tem um animal quem quer, e se quer, deve cuidar.

      Boa tarde, Um dia destes vou contar a minha história com uma cabritinha montez :-)

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    4. Precisamente. Partilho dessa opinião.

      E sim, conta essa da cabritinha montez! :-)

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  3. Oh, fez-me lembrar um dos livros da minha vida, intitula-se "Quem em dera ser onda" e é toda uma história de amor em torno de um animal improvável para se amar: um porco.
    ~CC~

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    1. Oh... mas os porcos são muito giros! :-)
      (eu só não adoro é gafanhotos...)

      Outro abraço, CC. Apertado.

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    2. troco os teus gafanhotos pelas minhas lesmas tamanho XXL... caramba como detesto as bichas...

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    3. Ah, eu conheço essas lesmas, são enormes! mas têm uma grande vantagem cá para mim: mexem-se pouco, sem que a probabilidade de nos saltarem para cima saia alguma vez do zero... :-) coisa que não se pode dizer dos gafanhotos.

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  4. Olá, Susana.
    Acabei de ler com sol a entrar-me pela janela da sala e lembrei-me de um dos primeiros textos teus que li e que me encantou... Gostei tanto!
    Beijinho.

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    1. Carla, que boa surpresa, há quanto tempo não conversávamos um bocadinho!
      Muito obrigada pelas palavras generosas, que também me encheram a sala de sol!

      (e que texto foi esse, será que posso perguntar? :-))

      Outro beijinho.

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  5. É verdade: há demasiado tempo já. Mas leio-te sempre e fico sempre feliz quando vejo que tenho novas tuas.

    O texto tem tempos também. Lembro-me que era uma das tuas belíssimas descrições em que se chegava a sentir o sol que te entrava pela janela e toda a paz envolvente. Foi de tal ordem que me transportou até à minha primeira casa.. vou procurar para te sintonizar. 😉

    Um beijinho e bom Domingo!

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    1. Encontrei-o: http://avozasolta.blogspot.com/2015/04/cafe-torradas-e-limonada-sem-acucar.html?m=0

      (afinal era na tua cozinha que entrava o sol.. e na minha sala! Foi a primeira vez que te comentei.)

      Beijinho.

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    2. Ah, lembro-me bem desse texto! Já lá vão 3,5 anos. E lembrava-me de teres referido a tua primeira casa, também.
      Obrigada por continuares aí, Carla, e pelas tuas palavras quentinhas, mais uma vez.
      (eu também te leio sempre :-))
      E vai outro beijinho.

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