a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/04/2021

Uma pessoa nem dá pela chuva

Estou de volta a Lisboa. A viagem decorreu sem singularidades até ao quilómetro 37 da autoestrada A1. Bem ali no começo da zona em que só queremos é embrenhar-nos totalmente na querida capital muito depressa e esquecer todas aquelas construções e painéis horrendos que – vale a pena referir – não fazem totalmente jus ao resto da cidade. Tem muito de feio, Lisboa, mas também não tanto assim como poderia pensar quem entra desprevenido pela A1. Continuo sem compreender a razão de existir daqueles painéis verticais, enormes e desesperados implorando anúncios que, como toda a gente já devia saber, mesmo pessoas pouco modernas como eu, não querem ir para ali, estáticos. Não desde que podem instalar-se dinamicamente em ecrãs pululantes sobre os quais dedos deslizam. Painéis tão feios quanto inúteis, mas adiante, quem sou eu para dizer estas coisas. Ao quilómetro 37 apareceu a singularidade muito frequente no passado e quase ausente do presente: uma grande fila de trânsito, neste caso devido a obras. Tive de reaprender a segurar o pé no travão por muito tempo seguido. Já levava os músculos da perna direita totalmente destreinados da operação, mas vá lá que me safei. Como recompensa, tenho o sossego de estar em Lisboa. Milhares de pessoas vivendo no mesmo bairro, postas por patamares, elevadas por elevadores e abaixadas por eles. Eles que podiam, em alternativa, denominar-se abaixadores. Mas quem quer abaixar-se quando pode elevar-se? Milhares de pessoas tão próximas e tão longe de ideias como virem bater-me à porta a perguntar se quero ovos, pararem-me na rua indagando se sei de alguma casa à venda e, já agora, se a cascata fica longe, pessoas ficando contentes com o meu regresso e prontamente sugerindo mais logo um café no terraço, um café que se estende por toda a tarde, o vale ao fundo, o tempo fluido em torno, os milhafres, a gataria no cio, os piscos de peito ruivo certeiros nos intervalos da vedação, todo esse exagero de vida. 

Um sossego, Lisboa.

13 comentários:

  1. Amo Lisboa. Resido numa cidade coladinho a ela. 10 minutos de carro. 25 minutos de autocarro. Bem vinda a Lisboa. A foto é deslumbrante. Os painéis já fazem parte da evolução da vida, lol
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    Abraço poético.
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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    1. Obrigada, Ricardo.
      Os painéis fazem parte de um mundo ávido por volumes de vendas nem que seja em detrimento do bem - estar coletivo, da ordem e da beleza. Abomino aqueles painéis, são 100 por cento poluição.
      Abraço retribuído.

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  2. Ah, ah...ou seja uma aldeia é mais desassossegada que a capital:)
    Mas olhe que isso depende muito dos prédios...no tempo em que a minha vizinha fazia festas, a coisa aqui era dura!
    ~CC~

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    1. Ui, então aí nessa cidade piscatória também não havia sossego!
      Uma aldeia é um desassossego, pois é! :-)

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  3. Pois, pois, Susana, mas afinal quem é este garboso Gato?
    Não me diga que é um pretendente à patinha branca da minha sobrinha Marble...
    Ou será que é uma Gata?
    Elegância não lhe falta ;-)

    Boa estadia em Lisboa!
    🌾🐝

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    1. Este belo exemplar felino, macho, um ano de idade, vem da mesma fábrica de Miss Marble. Este é um meio-irmão, produto da ninhada seguinte de sua gata mãe.
      Há uns tempos vi-o todo molhado, a coxear, cheio de frio e a miar. Até escrevi um post sobre ele. Mas recuperou, como se pode ver! :-)
      Obrigada, Maria. Bom resto de semana! 🌼🌷

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  4. Amigo da Miss Marble? Lindo! Como todos os gatos!
    Vivo nos chamados arredores de Lisboa,( a 10/15 min da cidade), os moradores do 4º andar oferecem-me limões, peras, etc. que trazem da terra, os do 3º bolos, bolachas, ovos, etc.; os do 2º andar dão guarida aos meus gatos quando os palermas resolvem esconder-se nas escadas.
    Todos dão muita roupa que cai no terraço que eu diligentemente apanho e devolvo.:)Eu , do 1º andar, tento retribuir toda a gentileza dos vizinhos.
    Depende dos prédios.

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    1. Ui, esse prédio é um desassossego, cheio de pessoas simpáticas! :-)
      Bem, eu também recebo limões de uma vizinha em Lisboa, e há dias recebi ovos moles de Aveiro, portanto estou a "queixar-me" de barriga cheia. :-)
      🍋🥚🥚

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  5. Posso trazer para aqui coisas menos bonitas desses lugares de tanta beleza na paisagem, Susana? Não te zangas, pois não? Sei que não :-)
    Olha, até vou chamar para aqui "O filho de mil homens", livro que não teria ainda lido não fosses tu, e achei uma maravilha, até pensei sobre ele, que daria uma excelente "Bíblia" :-) gostei tanto mais pelas histórias que conheço de vizinhanças abelhudas a perpetuarem ditaduras cruéis de como ser e estar (e isto acontece "em aldeias" do Mundo inteiro, não é só em Portugal) apanhando depois boleia das próprias famílias que não querem "ser faladas", ou seja, essa dificuldade maior, muito maior, em certos paraísos na paisagem, para, por exemplo, ser-se "Antonino", a condenação à morte, em vida, que foram provocando a tantas "Isauras", muita "caridade" do género daquela praticada com a "Anã", desde que se enquadre no conceito de desgraçadinha sem direito a quaisquer alegrias, a dificuldade muito maior para exercer a diferença, e, muitas vezes, sem todo aquele final feliz. Terá sido também disso que tanta gente fugiu, e não "só" da dificuldade em arranjar trabalho, e não "só" da vida dura do trabalho no campo, de sol a sol, quando não é feito mesmo por gosto e opção, e muito diferente de quem correu outros mundos e lhe apetece regressar "às origens", ou igual a nós quando "brincamos às hortas", não, coisa dura e sem alternativa.
    Sim, Lisboa tem muita coisa feia, mas estou aqui mortinha por fazer-lhe uma declaração de amor :-), para isso, vou usar as palavras de uma amiga que, há muito tempo, largou uma aldeia e, como tanto queria, mora em Lisboa, uma vez, com as suas maravilhosas vestes de artista, disse: "Adoro Lisboa, Lisboa permite-me ser"

    Boa noite! (aproveito e agradeço os votos de boa Páscoa, teus e ali da Maria, que, na altura, não disse nada)

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    1. Oh, mas eu também gosto muito de Lisboa! Não só é a minha cidade natal como nela vivo desde sempre (tirando as investidas para outros lugares onde também semi-vivo às vezes). E é por gostar muito de Lisboa que não gosto nada que haja quem a torne feia, seja por um absurdo mau-gosto seja por avarência ou por outros motivos injustificáveis. Por exemplo, dói-me ver prédios encavalitados uns nos outros, com marquises horrendas, aquilo não devia ser permitido. Mas há muito boa gente que não valoriza a beleza e a ordem. Não sei se costumas passar ali na Avenida dos EUA. Quando se sobe em direção a Entrecampos, há do lado esquerdo uns prédios perpendiculares à avenida nos quais há varandas que dão para a parede de outro prédio de uma maneira que, sinceramente, quase me faz gritar de indignação. E não estamos a falar de uma zona propriamente barata para se comprar um apartamento.

      Quanto ao "Filho de Mil Homens", que bom teres gostado! É um livro que retrata, de facto, uma realidade provinciana muito nossa. E de uma maneira belíssima. Adoro o VHM. E muito obrigada por teres cá vindo contar o que achaste do livro :-)

      Escrevi "muito nossa" e é verdade, mas não é uma realidade só nossa. Acabei de ler um livro onde também está presente a coscuvilhice e a influência negativa da vizinhança, neste caso num ambiente pautado por uma comunidade assente em valores racistas muito perigosos - não sei se já leste: "Mataram a Cotovia" de Harper Lee.
      E que tenhas um dia luminoso, Cláudia!

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    2. Junto-me a ti no protesto contra a construção desenfreada, sem critério nenhum, essa repugnante ganância destruidora, quer de beleza, quer de qualidade de vida.
      Outra coisa que me repugna de uma maneira que, ai, é o preço exorbitante, proibitivo, das casas, nada a condizer com o nível de vida da maioria das pessoas do próprio país, atirando sistematicamente as pessoas para "arredores", impossibilitando tanta gente de habitar onde realmente queria, apesar de, onde realmente queria, existir tanta construção disponível.

      Sabes que enquanto te escrevia e pensava em "aldeias castradoras" pelo Mundo, lembrei-me, precisamente, com mais força, dos EUA. É incrível como um lugar de tanta evolução, de tanto poder, de tanta liderança mundial e expansão espacial, seja simultaneamente tão atávico, com tantos exemplos que fazem lembrar a Idade Média, até mesmo relativamente à legislação de certos estados. Tanto se passa na, e então para lá da Grande Maçã...
      E tudo do bom e do melhor para ti, Susana! :-)

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