a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

22/01/2015

Design alongado

De manhã deixei-a à porta da escola mas antes de nos separarmos, combinámos almoçar juntas.

À hora marcada, ou melhor, uns minutos depois, aproximei-me apressada. À minha espera aquele sorriso que tem luz.

- Desculpa, filha, atrasei-me um bocado.

Entrámos no restaurante chinês que tem mesas com toalhas brancas de algodão misturado com fibras que impedem o enrugar do tecido e guardanapos amarelo torrado com dragões contrastados em brilho do mesmo tom, metidos em forma de túlipa descaída dentro dos copos de pé.

A empregada aproxima-se e plegunta se quelemos clepe. Ao mesmo tempo estende a cada uma de nós uma toalha quente e húmida que apanha com uma pinça de plástico do prato dourado rectangular que traz na outra mão, tanto vapor a libertar-se das toalhas.

- Está quente, é pala limpal as mãos.

Limpamos as mãos e voltamos a sujá-las ao pegar nos cardápios almofadados, penso que esponjosos e dourados tenho a certeza, os cardápios dos restaurantes são objectos muito sujos, e eu nem me quero agora lembrar deles.

Encomendámos e pouco depois chegam as bebidas. A empregada que não deita vapor, até anda bastante devagar para empregada de restaurante, deita sim um golinho de coca-cola no meu copo de pé e já desprovido do guardanapo; pousa a lata. Eu percebo a deixa e tomo o golo que ela deitou, sua marota, mas quando vou a dizer que sim, que pode servir o néctar industrial feito das mais borbulhantes moles de moléculas de gás envolto na conhecida pomada castanha, já a empregada, mesmo sendo lenta, se vai a afastar, portanto afinal não percebi. Servi-me eu da lata, olha a lata dela.

Toca de repente o meu telefone e eu devo ter-me esquecido de ser eu porque atendi, mesmo estando ali com a minha cachopa em momento dourado e não me refiro aos enfeites do restaurante. Era a professora da outra filha e vinha com queixas. Faltou um trabalho de casa de matemática.

- Como, faltou?

- Faltou, mãe. E as perguntas na aula de geografia foram impertinentes.

- Impertinentes?! Que perguntas?

Neste momento em que o meu almoço ameaça resvalar para o imperfeito, vislumbro um objecto também castanho, mas sólido, design alongado, com movimento próprio, antenas e muitas pernas velozes que por serem velozes não as pude contar. Desloca-se esta coisa animada despreocupadamente sobre a toalha de algodão com mistura, nunca confiei em algodões com mistura. Continuo ao telefone, impertinentes, matemática, atrasada, atrasada?!, nem parece irmã da mais velha, mas o quê, pode repetir professora?

Faço sinais à minha filha que continua a comer, do ângulo dela não vê o número de circo. Com a mão livre aponto para aquilo, aponto aponto, e por fim, espantada, descobre ela também que à mesa afinal estamos três, isto se não contarmos com a professora ao telefone. Mas matemática? Ela fez o trabalho, professora, eu vi. Como? Que perguntas?

O meu copo de pé ainda tem um golo de coca-cola dentro, e eu então meto-o goela abaixo, viro o copo ao contrário, que é o mesmo que de pé para o ar, e pouso-o aprisionando a barata no centro do círculo de vidro, acabou-se a brincadeira, sim, professora, eu vou ter uma conversa com ela, obrigada pelo cuidado.

Desliguei.

E agora em vez de ver a minha filha aos gritos dizer, uma barata, uma barata, como eu pensava que lhe tinha ensinado, sai isto, mãe espera aí não mexas, deixa-me enviar uma snapchat (acho que é assim, snapchat), os meus amigos não vão acreditar!


Ajeitei o cabelo, não vá dar-se o caso desta snapchat incluir-me em fundo. A ver se não se nota que logo há mais uma conversa para ter em casa.


(epílogo: as queixas revelaram-se infundadas, o trabalho foi feito e as perguntas versaram sobre matéria de páginas ainda não dadas na aula; felizmente ajeitei o cabelo)

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