a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

19/01/2015

O tónus muscular dos meus braços

A rotina é coisa estruturante na vida de uma pessoa e tudo. Mesmo quando uma pessoa almoça vai para um século no mesmo refeitório a cheirar, já o temos dito, a gordura vintage de banha de porcos mortos há um tempão misturada com lixívia, e com as mesmas gentes que, tal como uma pessoa, mudam pouco. Na verdade, sabemos todos praticamente tudo sobre os gostos culinários, alergias, forma de dobrar a roupa, horas a que se passa a ferro, supermercado onde se compra o pão, doenças familiares e clubes desportivos de toda a gente, não, esperar aí um pedaço, que não se tornam as conversas nada monótonas como já vamos ver.

Há quem saiba largo sobre o que se faz às vacas em tendo vacas. Eu nasci nesta Lisboa que cheira a fado (de onde tirei eu isto?) e nada de possuir vacas ou cabras, tampouco uma galinhita ou assim. Nem eu nem os meus progenitores nem os progenitores deles, etc, absolutamente (ando a copiar o etc do Herberto Hélder, gosto muito do etc dele, etc).

Portanto inquiri sobre as vacas. Então vamos lá saber quantos litros de leite dá um bicho desse porte por dia? Vinte? Toma, vai buscar. Embrulhei, e a seguinte pergunta foi o peso, p’raí uma tonelada, não? Aquilo cheio de leite… caramba.

- Eh! - diz-me o Zé - nada disso, depois de ordenhar é uns trezentos quilos. O depois de ordenhar é para me gozar, mas eu gosto de continuar isto.

Trezentos quilos acho pouquíssimo, uma vaca não se torna nada pequena depois de crescer, mas fingi que sim.

- É uma vida dura – continua o Zé, certamente viu-me os olhos brilhar imaginando-me a adquirir casa no campo e vida santa em vez deste stress de nos consumir as vísceras que nem as vemos.

- Dura, como, Zé? Há por acaso reuniões de cinco horas em salas com ar condicionado sem janelas com os animais? Não há!  - o meu entusiasmo não se abala assim do pé para a mão, mas o Zé é formado em ser uma grande melga e continua.

- Olha, é levantares-te às cinco da manhã se tiveres só uma vaca e morares relativamente perto da (ai que me foge o nome) leiteira (contentor comunitário que recolhe o leite das bovinas moradoras na zona), para dar tempo de entregar o leite fresco que aquilo fecha cedo, às sete se não me engano.

- E se tiver duas? – penso nas economias de escala, naturalmente.

- Duas leva mais tempo a ordenhar, aí levantas-te às quatro e meia. Mas podes arranjar uma máquina para tirar o leite – continua o sabido – sempre cansa menos.

- Uma máquina parece excelente ideia. E quantas vacas cabem numa máquina?

- Uma. Uma máquina tira leite a uma vaca.

- Então não estou a ver a vantagem, para isso faço eu o serviço.

Há-de ser exercício todo aproveitadinho para o tónus muscular dos meus braços que não vão para novos, em vez de ficar a olhar que ainda adormeço.

E a olhar pus-me eu sem querer para o relógio. Catorze e vinte e cinco, horas de ir andando para a reunião.

(se não tenho olhado ao relógio, tinha-me distraído com a conversa por causa da miúda que mora aqui por cima e anda sempre aos saltos com o cão, havia de ser boa para me ajudar com as vacas, estou agora a pensar, ela e o cão)

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