a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

14/03/2015

Na próxima sopa

Em geral, não gosto da música de Vivaldi. Nem do Claire de Lune de Claude Débussy, o que na verdade me espanta. A primeira instiga-me a correr para apanhar o comboio até cair para o lado e a segunda lembra-me um carapau morto, cozido, com um olho a contemplar o infinito, no meu prato.

A primavera está a chegar em cada árvore, a umas mais cedo que a outras, a umas vestida de branco a outras enfeitada de rosa, está a chegar nos aromas que perfumam o ar, na luz cintilante que atravessa o céu enquanto o pinta de azul, de maneira que não estou a ver por que razão me deu hoje para isto do não gosto e assim.

Ontem ao almoço, estava o estagiário sentado à minha frente a comer a sopa na cantina. Observei-o. O punho encostado à mesa e as costas curvadas por forma a chegar a boca à colher, que não subia muito. Hesitei: corrijo, não corrijo. Ele tem idade para ser meu filho.

Não conheço a história da Alice no país das maravilhas, porque das duas vezes que a tentei conhecer, levada certamente pela minha mãe, ao cinema ou mesmo ao teatro, adormeci logo no início. Uma grande seca.

Corrigi o estagiário num dos primeiros dias, quando ele me apertou a mão a olhar para o ar à procura de borboletas coloridas que não têm o hábito de aparecer por ali, entre as paredes cinzentas do feio edifício onde trabalho. Ensinei-lhe que quando se cumprimenta alguém com um aperto de mão, deve olhar-se-lhe nos olhos. Aprendeu, mostra-me todos os dias que sim.

Não gosto de pintura surrealista, Salvador Dalí faz-me lembrar os pesadelos da infância, quando eu podia muito bem encontrar-me com um polvo numa rocha e o polvo arrancar-me uma perna, pendurando-a de seguida no ramo de uma árvore morta, onde também se pode ver um relógio a derreter sob um calor tórrido, imaginário, e a caveira de um veado ao fundo.

- Sabe por que razão, se deixadas ao ar, uma carcaça de pão fica dura enquanto que uma bolacha Maria fica mole? – faço a pergunta ao estagiário, enquanto ele come a sopa e eu pego no pão que tinha no tabuleiro, a ver se estabeleço conversa de jeito com o miúdo, é um miúdo, de facto.

- É do fermento – respondeu, a meio da pergunta, antes de eu mencionar a bolacha Maria.

- É do fermento – repetiu, no fim da pergunta, depois de eu a ter formulado segunda vez para que ele a ouvisse completa.

Mas logo a seguir encolheu os ombros, sei lá, disse.

- Pense.

O estagiário não pensou e não se mostrou interessado na resposta, quando eu lha dei.

Acho que lhe vou corrigir a posição na próxima sopa, mas não antes de lhe repetir a pergunta.

14 comentários:

  1. Também não gosto nada de Vivaldi. Mas gosto da Alice, de Dali e sobretudo gosto de rapazes que olham para o ar à procura de borboletas em sítios onde elas jamais poderiam existir. Não os contrataria para nada, claro! :))

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  2. Já eu, gosto de tudo, até de estagiários que não sabem como levar a colher de sopa à boca correctamente! Tive um a quem ensinei a comer sem pousar o cotovelo na mesa enquanto levava o garfo à boca e a pôr o guardanapo no colo. :) Talvez porque, como o teu, tinha idade para ser meu filho e há em mim uma instintiva vontade de proteger os que ainda não se integraram. (hoje, oferece-me presente no dia da Mãe e chama-me Mãe 2)

    Beijocas, Susaninha. :)

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    1. Não me espanta mesmo nada que sejas a segunda mãe de alguém, Maria.
      A sorte do miúdo. :-)

      Beijinhos, Maria.

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  3. A Susana está claramente em dia "contra", mas ensinar alguém nunca fez mal a ninguém. Essa de manter uma postura correcta à mesa é batalha diária, aqui em casa. :)

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    1. Claramente do contra, Pseudo, mas não muito. :-) (conheço essas batalhas, aqui em casa já as ganhei, que a malta já é crescida)

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  4. Obrigada Susana, não sabia isso do pão e das bolachas e agora fiquei curiosa e fui ver e se o senhor Google não me enganou, já sei, embora seja incapaz de reproduzir. Conheço a história da Alice, mas porque me obriguei a conhecer, ao contrário de muitas outras, que foram amor à primeira vista. Por outro lado o Clair de Lune, apazigua-me, faz-me levitar e gosto de Vivaldi, precisamente pelo contrário, pela genica. Nunca tinha pensado nisso e agora estou a achar maravilhoso porque Salvador Dalí reproduziu também os meus pesadelos de infância. E aquela lição, parece que estou a ouvir, "filha, leva a comida à boca e não a boca à comida". Corrige Susana, se com uma das coisas já deu resultado, pode ser que continue a dar resultado. Gosto desta tuas sopas, com esta variedade de legumes.

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    1. Fui ver ao google o que se diz sobre o tema do pão e da bolacha. É muito mais científico do que eu comuniquei ao estagiário - apenas referi a parte do um evapora a água que contém, a outra absorve a que não tem. :-)
      Vou corrigir, ele merece.
      Obrigada, Cláudia. E eu gosto dos teus comentários, também oferecem uma variedade nutritiva de ingredientes.

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  5. Bem, eu não tenho procuração do senhor padre Vivaldi para o defender neste fórum (onde ele daria decerto boa conta de si) mas sempre vou deixando aqui uma pequena música um pouquinho menos associável aos préstimos do prestigioso operador nacional de transporte ferroviário.

    Boa noite, Susana :)

    https://www.youtube.com/watch?v=y9v4ps_Q7MI

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    1. Eu já conhecia essa e sim, gosto muito (não foi por acaso no seu blogue, nem nada, não?), daí ter começado com "em geral".

      De cada vez que oiço Vivaldi, em geral, :-) remeto-me para o reclame do ar condicionado Fnac que se ouvia muito antes de haver a outra Fnac. Acho que aquilo me estragou a capacidade de ouvir Vivaldi.
      Já o carmina Burana no reclame do "Old Spice" não se estragou, continuo a ouvi-la com prazer. Curioso, não é?

      Boa noite, caro Xilre! :-)

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  6. Pensava que só eu tinha a procuração ( e a mania) das correções (que falta de modéstia a minha!).
    Obrigada por esta sopa que embora já tenha umas horas continua deliciosa.

    Boa semana, Susana.

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    1. Eu também padeço dessa mania, mas só para algumas pessoas, as que merecem. :-)

      Obrigada, Maria. Boa semana.

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  7. Os estagiários são para isso mesmo, para se ensinar. Até com colheres de sopa. :)
    Quando ao resto: Gosto, gosto e gosto. :)

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    1. Um dia destes encho-me de paciência e leio a história da Alice. Tanta gente ilustre a gostar e eu nisto. tss tss.

      E eu gosto imenso das flores que tens lá no teu blogue para quem passa. :-)
      Beijo, Luísa.

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