a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

11/11/2015

Clara

Quando quero lá ir à loja, guardo mais tempo do que o necessário às compras, pode ser preciso. Desta vez foi.

Aproximo-me da porta e através do vidro da montra vejo a empregada em cima do escadote a alimentar as prateleiras mais altas com camisolas dobradas. Nunca a tinha visto em cima do escadote, pareceu-me um bom sinal, entrámos, o meu sorriso e eu, olá. Ela olha para mim com uma expressão estéril, pousa as camisolas na prateleira e começa a descer os degraus, agora vejo que está a chorar.

- Então?... - normalmente, quando chora, começa já eu estou lá dentro, já lhe perguntei como vai a vida, não posso fingir que me esqueço, se entrei tenho de perguntar.

Então?... repito. Cumprimentamo-nos com dois beijinhos, ela molha-me a cara com as lágrimas, limpa-as às costas da mão, desculpe querida, já há tanto tempo que não chorava, e agarra-me no braço, esqueço-me sempre do seu nome. Susana. Isso, Susana, desculpe, é que eu não chorava há muito tempo, sabe? por causa dos comprimidos, e agora olhe, é isto. As lágrimas continuam a escorrer embora ela esteja a tentar sorrir para mim. Esfrega a cara com uma mão, depois com a outra, é o meu filho.

Eu sobressalto-me - que de todas as desgraças nos livre deus os nossos filhos - mas ela já está a explicar, partiu o tablet ontem, com a raiva, irritou-se e partiu-o. E eu ainda só paguei a primeira prestação, comprei-lhe o tablet para ele ficar feliz, sabe? a gente faz tudo pelos filhos, e nem estava caro, oitenta euros não achei caro, mas tem de ser a prestações que eu daqui não levo quase nada e do outro trabalho também não, e há a luz para pagar e a renda, sabe como é querida, as contas, e eu disse-lhe, ó filho, a mãe ainda nem pagou o tablet e tu já o partiste. E depois, querida, Clara continua a falar sem parar de chorar, e depois, agarrou-se ao meu telemóvel e também se irritou, atirou-o ao chão, partiu-me o vidro do telemóvel.

- Que idade tem ele agora, Clara? - eu nunca me esqueço do nome dela, que não é este, mas Clara ficar-lhe-ia bem, talvez lhe desse uma vida melhor, Clara é um nome tão lindo.

- Tem oito. Mas está violento, como o pai, ele assistia ao que o pai me fazia, querida, já lhe contei, não já?

Já, já me contou. E continua a contar-me agora, o rol de fracassos, de tristezas, de desesperanças, chego a casa às dez da noite, tão cansada, vou buscá-lo à ama, não faz os trabalhos da escola, o pai não quer saber dele, mas também, se for para lhe bater é melhor assim, as lágrimas a cair, há tanto tempo que eu não chorava querida, por causa dos comprimidos (querida sou eu mas também as outras clientes da loja, quando as há) e agora partiu o tablet, nem entrada dei, oitenta euros, e eu queria ver o meu filho feliz, mas ele irrita-se com tudo, é dos comprimidos, ele também os toma, querida, não sei o que fazer, eu também tive uma infância muito má e acho que a gente carrega a infância toda a vida, não acha?... eu nem devo ser uma boa mãe, de certeza que não sou.

Clara, oiça, mesmo depois das dez da noite, leia uma história ao seu filho, na cama, antes de ele dormir. Cinco minutos, dez, mesmo que esteja a cair de cansada, faça isso, experimente. Tem livros de histórias lá em casa? tem, isso tem. Então experimente. E no seu dia de folga faça um programa com ele, só os dois. Arrisquei: as crianças precisam de ter coisas boas no horizonte próximo, motiva-as para o resto, um momento diário bom, a história ao fim do dia, se possível um programa semanal com a mãe, ele vai sentir-se mais calmo, vai ver.

- E daqui a alguns dias passo por cá a saber como correu. Promete que experimenta?

Ela prometeu e eu saí da loja mais de uma hora depois de ter entrado, com as minhas compras no saco e a esperança ténue de que pelo menos um livro de histórias seja aberto e faça aquilo para que foi criado: dar aconchego a uma criança e fazê-la sentir o arrepio de prazer que na infância nos percorre a espinha quando estamos no calor da nossa mãe.

6 comentários:

  1. Ainda estou na dúvida se é uma história fabricada, para funcionar como uma metáfora dos tempos modernos e da «ingratidão/exigências» dos filhos de hoje, que ignoram os «sacrifícios» dos pais, o cansaço de dois trabalhos e destroem com leviandade objectos dados com carinho e muito sacrifício económico, só para os fazer feliz.

    E, claro, apresentar o livro como uma espécie de «comprimido» não químico para atuar como uma ligação geracional e familiar.

    Seja como for, tomara que resulte! :D

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    1. Portuguesinha, nesta história só é fabricado o nome da Clara. Infelizmente o resto é real.
      Eu sou mãe e acredito que vale infinitamente mais o tempo que se partilha com os filhos a ler uma história, a conversar ou a contar como foi o dia, a rir ou a chorar (quando é necessário chorar), do que a oferecer bens materiais acima das nossas possibilidades, mas infelizmente por vezes o quadro é tão duro e caótico, que se tenta dar passos maiores que a perna.
      Ler um livro em conjunto faz isso mesmo que diz, cria uma ligação geracional e familiar.
      Se resultar (eu hei de lá ir saber) venho contar. :-)
      Obrigada pelo seu comentário.

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  2. Fiquei de coração apertado. Há mães com vidas tão difíceis! Oxalá ela e o filho se consigam reaproximar e estreitar os laços. Quem sabe se a tablet não será um oportunidade para os dois...

    Um beijinho, querida Susaninha

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    1. Eu também torço por eles. Oxalá aconteça ali um milagre.

      Outro beijinho, querida Miss Smile.

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    2. * eu queria dizer "a quebra do tablet", mas como escrevi o comentário antes do jantar, não resisti, e dei uma trinca em algumas palavrinhas :)

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    3. Que lhe façam bom proveito as palavrinhas, Miss Smile :-)))))
      E a eles também. Quem sabe.

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