a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/11/2015

Tikka masala

Saio de casa tentando refazer mentalmente o caminho para a garagem onde levo o carro uma vez por ano à manutenção, normalmente engano-me (hoje também). Já dentro do grande hangar onde penso sempre que não me importava de trabalhar, espero uns minutos enquanto outros clientes que entregam carros da marca do meu - detalhe que sempre me faz sentir ligeiramente irmã daquelas pessoas - contam coisas. Ao chegar a minha vez - quem está a seguir, estou eu - sou informada de que precisamos de dois pneus novos e mais algumas coisas específicas para automóveis. Os de trás estão bons, perguntei, os de trás estão bons, ouvi. Respirei um pouco de alívio e foi quando me ofereceram um carro novo, um motor isto, uma tecnologia aquilo (as voltas que uma pessoa dá para não dizer que carro é este), muito interessante, para eu experimentar, a única coisa que lhe pedimos, minha senhora, é que preencha este pequeno questionário e nos diga a sua opinião sobre o carro no final do dia, quer, quero. Fui, no caminho para o trabalho (nesse nunca me perco), a ser conquistada sem hesitação e, posso mesmo dizer, à maluca - a tal ponto que quase me resvala a vontade para pensamentos completamente fora da caixa - pelo carrinho de pequenas dimensões, mas que giro é o carro. Ou seja, chego ao trabalho muito bem disposta sem querer, acho impossível não ser conquistada por um carro novo, afinal deve ser tão somente isso, seja lá ele que carro for, os estofos desportivos, os pespontos brancos e grossos, o volante todo ergonómico, o azulinho daqui e dali, o rádio na TSF, que rico carrinho, a câmara de estacionamento que me mostra linhas no pavimento e me confunde a manobra, mas isso o problema é meu, evidentemente.

O dia de trabalho fechou em queda (deixei cair uma caixa pesada ao chão ao tentar abrir uma porta estúpida que nem ela, a maçaneta polida sem querer rodar, a caixa a escorregar-me dos braços com equipamentos caros dentro, um deles... ai) portanto saltamos esta parte.

No final do dia, antes de me atirar para o fogão, em casa, a fazer o jantar, e depois de ter entregado o carro que de manhã me conquistou tanto e por mim esperou estacionado o dia inteiro, toda aquela tecnologia ali e eu nada, depois de preenchido o questionário sobre a minha opinião e trazido o meu com dois pneus novos e mais umas peças próprias para carros, já tinha dito, e agora está o período a ficar grande, passei no supermercado. Na caixa, arrumei as compras nos sacos à velocidade mais alta que consegui, quero ir para casa. Duas maçãs reinetas saltaram para fora do saco em que as meti, rolaram para o chão e eu fui atrás delas. Apanhei uma de cada vez enquanto a empregada me anunciava os sessenta euros que eu devia pagar, e meti-as num outro saco. Ouvi então alguém dizer olá e percebi que já era um segundo olá. A mãe de um amigo da minha filha ali na caixa também, a sorrir de me ver de rabo para o ar atrás das maçãs, eu sei bem ler sorrisos, como está, estou bem, trocámos os beijos, ela trazia o cabelo bonito e eu perguntei-lhe pelo filho, se está a gostar do curso, o miúdo entrou na universidade e estuda precisamente o mesmo que eu estudei, que belos tempos foram aqueles, pago as maçãs reinetas e o resto, suspiro, volto para os pneus novinhos em folha com pedacinhos de borracha espetados para fora e vamos para casa.

Inventei tudo, claro. Um prato indiano que levou uma tikka masala pré-preparada e pedaços de uma das maçãs reinetas, metade de um pimento vermelho, frango aos bocadinhos e alho francês, cebola e sementes de mostarda, folhas de caril e quando invento sai bom. Depois de arrumar a cozinha, sentei-me a escrever. Tinha de contar do carrinho novo que hoje foi meu por vinte quilómetros. E a escrever eu não invento. Nota-se.

7 comentários:

  1. Cozinhar é isso mesmo. Pôr os ingredientes e o dia que se viveu na panela, misturar o preparado - alimentos e emoções – e tornar tudo comestível. Essa é a arte de cozinhar confortos. Adoro frango Tikka Masala, um prato perfumado e cheio de musicalidade que, se exagerarmos, também faz crescer pneus :)

    Um beijinho, querida Susaninha

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    1. Estou a ver que cozinha como eu, com os cinco sentidos e a alma, querida Miss Smile, para dar o conforto, precisamente.
      Já o crescer dos pneus.... :-)))))) (obrigada pela gargalhada!)
      Outro beijinho. :-)

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  2. E até aposto que arrumaste as compras num saco giro... Pelo menos um era mesmo, mesmo, giro, não era? ;) Ou não? ;(
    Eu não gosto nada de levar o carro à oficina. Ah, mas da última vez adorei. Uns senhores muito simpáticos e atenciosos, serviço impecável e descobriram uma estação de rádio que alegra as minhas manhãs - a Smooth FM. Nunca mais deixei ninguém tocar no botão do rádio.
    Nunca fiz, nem nunca comi, comida indiana. Tem condimentos que não se dão bem comigo.
    Beijos, Susana.

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    1. Um saco muito muito giro, Isabel, o mais giro de todos, acertaste! :-)
      Eu gosto das oficinas, do movimento, do vaivém de mecânicos e clientes, os carros a serem entregues com cuidado e a serem recebidos com cuidado. :-)
      A Smooth FM é uma das que oiço, mas às vezes aborrece-me quando passam dia após dia o "Cry me a river" e o "Over the rainbow" pela Melody Gardot, bah.... Não se pode gostar de tudo, evidentemente.
      Outro beijo, Isabel.

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  3. Acho que sei qual é o carrinho! ;)


    Desculpa, querida Susana, por andar há tanto tempo sem cá vir.
    Prometo que me redimo.
    Uma beijoca :)

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    1. Minha querida Carla, não tens absolutamente nada de que te desculpar, muito menos de que te redimir. Eu gosto muito dos teus comentários e das tuas visitas e sei como é a vida, por vezes estamos mais in, outras estamos mais out.

      (E os doces, como vão?)
      Outra beijoca. :-)

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    2. Os últimos cinco meses foram um pouco complicados e acho que os anos que aí vêm também. Culpa dos doces, que vão lançados rumo à autonomia enquanto marca. :)

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