a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/12/2015

A batata doce


De entre todas as batatas doces que estão à venda na secção de legumes do supermercado, escolho aquela que, na parte mais larga, tem um diâmetro conveniente ao encaixe da minha mão. As batatas doces só o são se entrarem no pequeno mundo em que me movimento sem lhe perturbarem a ordem. Uma batata doce muito fina perder-se-ia mais tarde no seio da caixa de legumes do meu grande frigorífico, sufocada entre cenouras e alfaces, alhos franceses e limões, couves coração e tomates, a batata doce muito fina, que tem uma área de pele demasiado extensa quando comparada com o seu volume, seria rapidamente agredida por estes elementos externos na sua magrinha harmonia, degradando-a. Embora não seja imprescindível fazê-lo, prefiro notar ainda que são todas feias as batatas doces. Foi só alguns dias depois, sem estar planeado – a ordem do pequeno mundo meu só parcialmente é planeada – que me dediquei a ela, a peguei e a lavei debaixo da torneira, com os dedos a esfreguei, e com uma faca a cortei depois, devagar, às rodelas. Para manter a harmonia - vou atrever-me - celeste, as rodelas têm a espessura de um dedo meu medido a olho (também meu). Abri o armário de cima e escolhi o prato fundo que já pertenceu à minha avó e que lhe mereceu muitas vezes o nome de pyrex, põe isso num pyrex, filha, ter-me-ia ela dito agora, e eu obedeci dispondo as rodelas sem as atropelar umas com as outras, encostando tangencialmente a pele de uma e de outra rodela, acomodando-as assim. Com a voz da minha avó ainda a soar dentro da minha memória, põe isso num pyrex, filha, coloquei o prato dentro do forno micro-ondas e liguei-o. Nos minutos seguintes a esta cena, se tivéssemos um microscópio capaz, veríamos como as ondas micro mergulham para dentro das moléculas de água que calhou pertencerem a estas rodelas de batata doce e não a outras, e nelas chapinham de forma também ordenada, veríamos que minimalmente quantificada, micro-magia que excita muito as moléculas de água, seria então uma alegria que nos faria exclamar ahhh e ohhh observar os hidrogénios e os oxigénios vendo as suas quenturas subir docemente a um nível maximal. 
Mas não temos um microscópio capaz. Ao fim de vinte minutos ou vinte e cinco, abro a porta do forno micro-ondas e dos meus olhos nus vislumbro os calores translúcidos emanando das rodelas agora macias de um cansaço feliz, um pouco coradas, bastante transpiradas de todo o micro-bombardeamento que lhes excitou as aguinhas e retiro uma do prato fundo. A rodela esquentada morde-me os dedos que, com um jeito certeiro, lhe despem a cinta de casca e, assim pelada, a levam perto da boca. Sopro-lhe então doçuras minhas, faço-lhe um pedido de arrefecimento simples e só depois, suavemente, lhe enterro os dentes.

6 comentários:

  1. pensei que ia ao forno a acompanhar um pernil... babo!

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    1. Uma boa ideia, essa de ir a acompanhar um pernil... hei de experimentar. :-) Obrigada.

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  2. Também comi há pouco uma batata-doce. As mais pequenas são as mais saborosas. A minha foi assada no forno da salamandra do meu pai. Quentura de madeira, um pouco mais à antiga do que o teu micro-ondas micro-mágico. :)

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  3. Só tu, Susana, só tu para escrever uma carta de amor a uma batata doce...olha, isto está delicioso, mesmo, e nem provei a batata, fará se tivesse provado.
    (a minha avó, também dizia pyrex, e os pyrex, tinham vindo da Braz & Braz :-))

    Beijinhos e uma excelente semana, Susana :-)

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  4. O Braz & Braz!!! (só tu para me relembrares agora disso)
    Este agora meu pyrex também terá vindo daí, caramba, loja tão falada na minha infância e na qual não me lembro de ter entrado...
    Sabes, Cláudia (claro que sabes), o amor, quando se o tem, parece que palpita por tudo o que nos rodeia e nos entra pelos sentidos adentro.

    Beijinhos de volta e uma excelente semana para ti, querida Cláudia.

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