a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

15/12/2015

Vertigem

Sempre me lembro de carregar o medo de me deixar cair no puré morno interior e escuro, sem fim, que sabes, este que mantenho especialmente fechado dentro da caixa forte em aço escovado para nem sequer brilhar. Nela sei aprisionar a voz dos séculos que desdobrada lê mensagens de outros milénios nossos e mais nada agora para não doer. Confere-me, porém, a certeza de ser imortal. Por causa da vertigem que vem toda de mel, que me queres escorrer lânguida para o milenar eu, é que tenho o medo. Pode cá haver dentro essa poesia, isso pode. Essa tão quente e cheia, que se me perco engolida nela é por inteiro que vamos e depois é capaz de, quando eu regressar, o pobre mundo já estar rodando em dois mil e duzentos pedaços a sul, e ao erguer-me? serei atingida por um vazio estranho de um tempo sem nós, desmoronado. Portanto finco-me à superfície do eu, não caio não. Sei parecer a olhos muitos algo quase nada, um todo murcho, um ramo seco ante ideais gravados em promoção nas capas brilhantes de folhetos grátis, personagem sem nome, sei parecer, e sem unicidade, um programa fictício de domingo à tarde, um arrancar de bocejos às pedras.

Levo-me pois à cozinha. Ponho a cafeteira a funcionar – o anteceder do café é sempre feliz - e deixo-me já tomar pelo aroma que mergulha-me bem, entras-me logo sem medo neste toda-eu sem fim.

Sento-me com a chávena a fumegar delícias frutadas de alívios indefinidos para me pôr a escrever devagar sobre a luz. Não essa tua do olhar, mas a do farol do meu carro que finalmente se fundiu, eu sabia - é a oficina, o pagamento, o número de contribuinte e um suspiro furtivo: porque à tona fico, embora mortal, a salvo de mim.

10 comentários:

  1. Gostei tanto deste post que não tem explicação, Susana. Às vezes reconheço-me em textos alheios que jamais conseguiria escrever. Obrigada por este momento tão bom.

    Beijinhos :-)

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    1. Obrigada eu por este comentário, Cláudia. Reconhecemo-nos mutuamente. É uma das belezas da vida.
      Beijinhos de volta. :-)

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  2. Uma vertigem que me deixou ... equilibrado.
    Gostei bastante, Susana.

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    1. Ainda bem, caro Observador. Para desequilibrado, já basta esse texto aí. :-)
      Muito obrigada. Um abraço.

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  3. Compreendo-te tão bem, Susana, às vezes temos que guardar a alma numa caixa em local seguro, para protegermos o corpo de quedas vertiginosas.
    Um beijo.

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    1. Acho que isso de me compreenderes bem acontece muitas vezes no sentido inverso, querida Teresa. :-)
      Assim, não estando sós no lado vertiginoso da vida, as quedas parece que se amortecem um bocado.
      Outro beijo.

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    2. ...e esse é o lado melhor, o da compreensão. Agradeço-te? Não, partilho-te.

      Boa noite, querida Susana.

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    3. Partilhamo-nos, Teresa. A vida é isso.

      Boa noite, querida Teresa. E boa semana.

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