a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

08/03/2016

Asafoetida e o dia da mulher

Parti a cebola em fatias e depois outra vez na perpendicular para obter pedacinhos quase cúbicos. Seguiu-se a batata doce, descasquei-a, é muito irregular na forma: desenhar uma batata doce, perguntar a uma criança de dez anos o que é isto e depois vê-la inclinar a cabeça, virar a folha de papel quatro vezes e devolver... uma lagarta gigante?!... Parti-a então, em fatias finas, depois repeti a perpendicularidade duas vezes para completar as três dimensões a que vivemos todos quer queiramos quer não e obtive novos pedaços praticamente cúbicos, na cebola uma das dimensões já vem cortada, é a das camadas, a mãe natureza dá essa ajuda, que já teve  mais que tempo para se dedicar ao melhoramento da cebola. Reservei. Nas receitas, a palavra reserve fica muito bem e aguça o apetite, portanto reservei. No tacho deitei azeite, uma mão de sementes de mostarda e outra mão de folhas de caril que se agarraram logo ao azeite e continuei a arrumar os sacos de compras do supermercado de costas voltadas para o fogão. O coco feito leite, o coco ralado, os coentros, o tomate que vai de lata porque já passa das oito, o caril dos dois tipos em pó ainda tenho na despensa, os cominhos, o gengibre e a asafoetida, que cheira muito mal mas é indispensável, dizem, tem é de ser só uma pontinha da colher de café, o caril já disse que são dois, um é picante o outro não e por fim a água para o arroz que deve ser basmati. Chamei a minha filha mais nova e pedi-lhe para fazer três exercícios de energia cinética ao pé de mim, a mais velha já cá está a arrumar a loiça lavada enquanto me enuncia os planos para sábado à noite, mãe são os anos da Inês. Descasquei uma tangerina e parti-a para um prato que coloquei em frente do livro de física com os exercícios a pedido, toma, filha (esta filha adora tangerinas). Descasquei mais uma e tentei enfiar um gomo na boca da outra filha (que prefere laranjas) no intervalo dos planos para os anos da Inês, ela em movimento diz não, mãe, prefiro uma laranja, portanto a segunda tangerina veio oferecer-me a sua energia cinética a mim e comecei agora a ouvir o crepitar das sementes de mostarda, que são capazes de saltar no azeite como senhoras sementes de mostarda e as folhas de caril não. Juntei então os cubinhos de cebola que acalmaram estes calores e com a colher dei uma ajeitada ali, lentamente, já cheira bem. Depois o tomate em lata foi acalmar ainda mais os tais calores, fez-se mesmo um silêncio, shhhhh, uma tranquilidade. Aumentei então a potência do fogão e quando o crepitar regressou de onde tinha ido (agora precisávamos de um poeta para saber), mergulhei-lhe os cubos de batata doce, o leite de coco e o seu granulado, os pozinhos já enunciados e o sal e tapei o tacho, reduzindo a potência outra vez. Acabei de arrumar as compras, dobrei os sacos que são feitos de tecidos laváveis muito bem conhecidos da máquina da roupa, fui metê-los dobrados dentro da mala para não esquecer, tornei à cozinha, espetei a ponta da faca num cubinho de batata doce que cedeu, já está quase, e foi a vez dos coentros, lavados e picados lá para dentro, agora são três minutos até acabar. Regressei então à energia cinética da minha filha, mostra lá meu amor, a minha filha tem uma letra muito bonitinha e muito pequenina, aquilo estava tudo arrumadinho, a vermelho o número do exercício, a lápis o resto mesmo direitinho e eu tenho de ir buscar os óculos.

O dia da mulher é todos os dias.

(e este post tem um erro, quem é a mulher que o descobre?)

(nitidamente inspirado aqui)

18 comentários:

  1. Reservei este post.
    Afinal, também gosto de reservar coisas.
    :)

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    1. Se for para o comeres mais tarde, quer dizer, para seguires a receita mais tarde, desejo-te sorte. Deste lado ficou bastante aceitável.
      :-)

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  2. Essas três mulheres não precisam de dias especialmente marcados no calendário para serem felizes.

    Beijos, Susana :)

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    1. Querida Maria, com beijos de volta confirmo que é bem verdade o que dizes.
      :-)

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  3. Um bom dia para ti, Susana. Extensivo a todos os outros dias do ano.
    Beijinho

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    1. Agradeço e retribuo com a mesma extensão, mui caro Observador. Um beijinho.

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  4. Gosto das tuas histórias escritas com aromas, sabores e afetos.
    Aqui, tudo é colorido, não há histórias escritas a preto e branco.
    A vida, a nossa vida de mulheres, é um livro com páginas de muitas cores, que se escreve todos os dias. São páginas escritas com o coração no regaço.

    Um beijinho e um dia feliz, querida Susana (gosto muito de ti)

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    1. Ah, Miss Smile, também eu gosto muito de ti.
      "é um livro com páginas de muitas cores" - e que bom é podermos mais vezes do que menos escolher essas cores.
      Espero que o teu dia esteja a ser feliz. Um abraço apertado.

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  5. Eu vinha aqui por aquilo do erro: porque é que as suas filhas lhe arremessam tangerinas?

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    1. Se a minha filha me tivesse arremessado a tangerina, o post não tinha erro nenhum. Muito bem, caro Pipoco, nota 20.
      (mas como fui eu a meter o gomo na minha própria boca, a energia cinética que ele trazia era já emprestada por mim, não veio de fora do sistema "eu")

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  6. Susana, eu vinha deliciada pelo texto fora, a imaginar cores, cheiros, sabores, movimentos, e a lembrar-me de uma palavra, polivalência. Depois, um desafio, ora, fui ver seguindo a pista mais provável e vinha toda contente, mas agora, uma pessoa cujo blog desconheço que comentou antes de mim, estragou-me o possível brilharete (ou o que me irá fazer corar de vergonha) porque deu A pista. Então, bem mais esmorecida, respondo que acho que o erro é: Se a energia cinética é a energia que um corpo adquire quando está em movimento, então a tangerina não te podia oferecer a sua energia cinética, não contém em si, sem movimento, esse tipo de energia, o movimento que fazemos a levar um gomo à boca, por exemplo, é que já é energia cinética, é isto?
    Beijinhos, Susana :-)

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    1. Cláudia, eu acho que cada comentário teu tem brilho (brilharete é pouco). Ou tem luz, como queiras. Pelo menos acende-me sempre um sorriso no rosto e normalmente outro no coração.
      Seguiste bem a pista que o comentador anterior, senhor distinto que poucos por aqui conhecem, lançou. Na realidade ele deu a resposta, mas enviesou-a como a gente já sabe que ele gosta de fazer e apresentou-a na forma de pergunta.
      Um corpo em movimento TEM energia cinética, e o gomo de tangerina veio pela minha mão à minha boca, trazia energia cinética que eu digo no post que me ofereceu, mas na verdade essa quantidade de energia tinha sido transmitida por mim, já era minha, digamos assim (se tivesse sido a minha filha a arremessar a tangerina, então sim estava certo o que eu escrevi no post). E quando acabei de escrever o post e o reli (releio sempre várias vezes), vi que essa parte não estava correta, daí o desafio (e como praticamente só mulheres comentam neste blogue, achei por bem dirigir-me a elas, ainda para mais sendo este o dia que é).
      Minha querida Cláudia, beijinhos de volta e muito obrigada pelo teu contributo. :-)

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  7. Este post não tem erro algum. Tem é muita energia potencial, isso sim.

    Bom dia, Susana

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    1. O (pequeníssimo) erro que tinha já foi acima esclarecido, portanto podemos afirmar que de facto já não tem erro nenhum.
      Muito obrigada, caro Impontual. E seja bem-vindo!

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  8. E eu vim aqui por causa de tudo. É sempre um prazer embrenhar-me nestas palavras com sabor. Resto de bom dia Susana :)

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    1. Querida GM, mas que comentário tão bom. Muito obrigada.
      Um maravilhoso resto de dia para ti também. Aliás resto de semana, que hoje já falta pouco para acabar. :-)

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  9. como o dia já passou, as flores já quase murcharam, ou se calhar não, que hoje foi de humidade e ajudou ao viço, não encontrei erros, nem energias menos cinéticas.
    tenho de fazer um curso, a minha ilteracia vai denunciar-me tanta ignorância.
    um beijinho, Susana. Não venho aqui, tantas vezes quanto desejaria. Tenho de redistribuir a minha agenda,
    Mia

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    1. Olá, Mia. A minha flor ainda não murchou, o dia esteve feioso e ela a dar-lhe cor, ali, com o pé dentro de água.
      Eu é que não encontro ignorância nenhuma em ti, Mia. Mas claro que gosto muito de cá te encontrar. :-) E vem quando puderes, as nossas agendas nem sempre nos libertam as rédeas. Eu sei como é, sofro do mesmo.
      Um beijinho :-)

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