a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

18/03/2016

Os copos do bar, a serra da estrela e o miúdo

Saio do edifício e atravesso a estrada, alcanço o passeio do outro lado, ladeio os arbustos aparados que servem de sebe ao espaço comum de um prédio, contorno a curva e estou na rua principal. A tontura vem atrás de mim mas no ginásio ficou fora da coreografia quadrada, só sabe as piruetas que ali não temos e eu quase me esqueci dela, apesar de levar o medo de cair. Agarrando a folhagem do arbusto com os olhos, concentrei o cérebro no frio da noite, continuei a caminhar depressa e levei a mão ao cabelo. Puxei o elástico que o prende num rabo de cavalo como se nada fosse, isto para a despistar. Chegada à passadeira atravessei para o lado onde começa a fieira de prédios que inclui aquele em que vivo. Meto a mão dentro da bolsa da mochila e troco o elástico que me prendia o cabelo pelo molho de chaves, anseio por entrar em casa e tomar o melhor duche de todos que é este (a seguir ao ginásio).

- Olá!

Viro a cabeça e dou com o rapaz que passeia os cães, vem a sair do primeiro prédio e vem sozinho, foi decerto entregar uma encomenda de quatro patas. Sorri, como sempre.

- Olá Renato! - ele abre os braços, abre sempre os braços quando me vê, mas não me abraça, baixa-se parece que meio metro - não sou eu assim tão baixa, é antes ele assim tão alto - e dá-me dois beijos na cara, tem o capuz enfiado na cabeça. Está mais magro, está muito magro e, assim de noite, não se lhe veem as cicatrizes do rosto nem sequer o brilho dos piercings - como estás?

- Cansado.

A resposta é esta, na verdade é sempre esta quando o encontro e, sem deixar de sorrir, continua - comecei às seis para levar os cães antes de os donos saírem para o trabalho, os que não me dão chave de casa, e hoje ainda vou trabalhar, agora trabalho num bar, ali em baixo perto do rio mas é só apanhar copos, copos por todo o lado, até na casa de banho há copos, é só o que eu faço, mas esses que estão na casa de banho pego com um guardanapo (ri-se). Sem eu perguntar, explica-me o porquê do guardanapo, mas o leitor, que é esperto, não precisa de explicação, eles estão bêbados, continua, lá para as tantas já estão bêbados e às vezes o dono do bar põe-nos fora, eh! fora! (Renato faz o gesto do dono do bar a pôr os bêbados fora, uma espécie de pontapé na noite), e volta aos cães - pega no telefone, que também é esperto mas muito menos que o leitor, evidentemente, e mostra-me as fotografias da cadela arraçada de serra da estrela e do beagle (o beagle é lindo, a minha irmã a seguir a mim tem um beagle daqueles) a brincarem na relva ao sol, a esta tenho de a cansar, conta-me, é muito forte e depois, à noite, se não a canso quer brincar com o miúdo, joga às escondidas com o miúdo, joga joga, eles têm um miúdo, ainda é bébé, o casal que mora ali (aponta para outro prédio), ele é dentista, e no outro dia ela empurrou o bebé para fora da cama, ah! mas não o magoou, queria brincar às duas da manhã, eu bem lhes disse que ela ia crescer e eles não acreditavam, agora ela já me dá por aqui - a mão a marcar a altura da cadela na perna fininha. Eu estou a transpirar e começo a sentir frio, preciso do tal duche que me vai tirar uns poucos de anos ao aspeto, borrifar-me as pétalas, rosar-me as faces, quem toma duches destes sabe muito bem como é.
Por isso não lhe perguntei mais nada, ele está a sorrir e gosta do seu trabalho, agora tem dois, parece feliz o Renato, apesar da vida sem pai e sem mãe e sem ninguém, apesar dos maus tratos da infância, apesar de ser só ele e os cães e agora os copos do bar junto ao rio. Ah! E a velhota de um cão que já morreu e que o chama quando precisa de arranjar o esquentador ou mudar uma lâmpada, o Renato sorri e eu vou tomar duche.

Adeus, Renato, gostei de te ver, bom trabalho!, entrei no prédio. Subi a casa e, só quando uma nuvem de vapor já me escondia de mim própria, me apercebi que a tontura passou.

(Renato tinha tudo para estar no desemprego e levar a vida a queixar-se e a revoltar-se. Mas não foi essa a sua opção.)

9 comentários:

  1. Olá Susana, hoje sinto-me uma espécie de Renato, ao dizer-te que era bom que o mundo fosse muito melhor.

    Uma boa noite, querida Susana.
    (Que longa tontura...não é melhor ir ver?)

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    1. O Renato consegue fazer do mundo dele uma vida reconstruída.
      Tu ajudas as dos outros, pessoas ou animais, fazes o mundo melhor. :-)
      Um bom dia, querida Teresa, e obrigada.

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  2. uma vez, aliás uma longa vez, aliás uma vez tão longa que até eram muitas as vezes, andava eu com tonterias que me limitavam os dias, aliás impediam-me os dias, e o otorrinolaringologista (deves gostar desta palavra), olhou-me por cima dos óculos (dos dele) e disse-me assim:
    - a senhora vai chegar a casa, sentar os seus filhos à sua frente e dizer-lhes que afinal a mãe deles é frágil e que precisa da ajuda deles. isto é cansaço.
    então eu, cheguei a casa, sentei os filhos e disse-lhes. ouviram-me e continuou tudo na mesma. são homens, sabes, e carregam uma carga genética que valhamedeus. no entanto, eu percebi que posso ser frágil, que mo posso permitir, que posso dizer agora já chega, não posso esticar mais a corda.
    apeteceu-me contar-to. gosto da palavra otorrinolaringologista, só por isso :)

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    1. Querida ana, gostei tanto do teu comentário! Acertas em tudo. Primeiro, claro que gosto da palavra otorrinolaringologista que treinei pronunciar sem me engasgar em criança e consegui. :-) O teu disgnóstico é, claro, igual ao meu. Não tenho filhos homens, como já deves ter percebido, e por acaso as minhas filhas ajudam bastante, mas não tanto quanto eu gostaria. A fonte do meu cansaço está identificada e há-de ser extinta, a seu tempo. :-)
      Outra vez: gostei tanto do teu comentário, obrigada.
      E um bom fim de semana, beijinhos, ana.

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    2. Que bom. Vou chamar a Miss para te deixar Smiles...
      Tem uma semana muito boa!!!!
      Beijinhos

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  3. Fáxabor de ir ao médico, óbiu?????

    Beijos,Susaninha :)

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    1. Óbi, óbi, Maria, quer dizer, li, li. Aposto que se óbisse, habia de gostar da tua pronúncia (tens, não tens?) :-)
      Um beijinho, bom fim de semana.

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  4. Gostei muito que nos tivesses apresentado o Renato. Ele sabe que viver é transformar ventos, correntes e invernos em novos e auspiciosos pontos de partida. E que os sonhos verdadeiros andam pelo seu próprio pé.

    [Susaninha, vê lá isso das tonturas. Já mediste a tensão?]

    Um beijinho :)

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    1. Querida Miss Smile, o Renato já por cá andou no blogue, mas a última vez foi antes de este espaço eletrónico ter sido iluminado com o teu sorriso :-)
      E sim, ele é como dizes, é um miúdo-exemplo.
      [Não, mas é baixa, é sempre baixa :-) obrigada pela preocupação, está tudo sob controlo]
      Outro beijinho, e que tenhas um fim de semana feliz (como naquele dia em que puseste aquela canção alemã que me levou a ir ao tradutor ver o que queriam dizer aquelas ich fuhr ich não sei quê) :-)

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