a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/07/2019

Gatinho

Nos raros momentos em que reengreno o fluir do meu tempo com as rédeas mais a jeito nas minhas mãos engelhadas e dou ordem ao meu próprio norte - se existir, mas é possível que sim - equipo-me das ferramentas mais completas e mergulho na floresta da escrita de Agustina, na qual ainda só hesitante gatinho. Não é por falsa modéstia que digo isto, é por ser verdade que necessito de firmeza na base. De joelhos não há que me suster, já que, em todo o caso, cambaleante não irei. Avanço lentamente para não perder um crepitar, uma teia de aranha, uma pedra na iminência de rolar. Quando me sento para dar descanso aos joelhos, às mãos, à Terra de tanto girar, nem noto que avancei centímetros. Mas, como já levo a barriga cheia, ergo-me, sacudo a saia, componho o cabelo e sigo achando-me real outra vez.

(Ontem à tarde, o vento levou o guardanapo de papel que estava na mesa da esplanada rodeada de janelas de vidro, abertas para a ocasião do calor; quando logo depois me levanto para sair, procuro o guardanapo no chão intentando apanhá-lo, e vejo-o debaixo do sofá de verga ornamentado com almofadas muito bonitas, uma de cada padrão, à minha frente. Fiz o gesto rápido e necessário para apanhar o fugitivo de papel e recuperá-lo de se tornar poluição antes de a próxima rajada de vento ter outras ideias e espetei com a cabeça a todo o vapor na quina da janela aberta, perpendicular ao meu olhar e por isso materializada numa linha quase invisível. Pareceu ali toda a cidade ressaltar da investida que empreendi, involuntária. Enfim, não morri.)

6 comentários:

  1. Não há uma forma única de ler um escritor, claro, mas creio que a escrita de Agustina é melhor apreciada, assim, em porções pequenas, quase como se fossem crónicas que, por coerência, a autora decidiu juntar no mesmo molho de folhas. Mais do que qualquer outro escritor de que me recorde, ela dá ao leitor essa possibilidade de delimitar o início e o fim do ato de leitura, sem risco de perda significativa de contexto. Também é, acredito, a forma mais genuína de apreciarmos devidamente a ironia que semeia generosamente em cada parágrafo, a ironia de quem levando a sério a escrita, leva menos que a sério a maioria dos seus personagens, a quem disseca impiedosamente como a menina travessa que foi, a que destruiu por completo um baú de bonecas, para ver de que matéria eram feitas.

    [Ouch, até dói, só de ler, o devir das travessuras do guardanapo e do vento: votos de que não tenha havido consequências, cara Susana.]

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    1. Querido xilre, "Não há uma forma única de ler um escritor" e eu acho que podemos também dizer que há escritores que nos mostram diferentes perspetivas de nós próprios. Como é o caso de Agustina.
      Através dos seus textos, parece que infindos em espessura, ela vai como que assinando o bordado da nossa cultura, tanto em termos do "sentir" como do manifesto (ou não) deste sentir. Como ela conhece a natureza humana! É estrondoso!
      E essa histórias das bonecas!...

      [Já está tudo praticamente reposto, obrigada].

      E muito obrigada, também, pelo comentário. :-)

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  2. Susana, não sei se viste, tenho a certeza de que terias gostado mesmo a valer, ficarias naquele estado do post Prós e Contras, tudo o resto de parte, a aguardar vez, e, no fim, pensarias, que tinha valido totalmente a pena a entrega àquele ecrã. Falo-te de uma série de conversas entre Agustina e Maria João Seixas, uma série da RTP, não sei se estará disponível na net. Foi o meu primeiro contacto com Agustina, depois, um documentário, com testemunhos da própria, aí contava, as pessoas costumavam dizer-lhe, que gostavam tanto dela que um dia até leriam um dos seus livros e depois ria-se. E eu, só muito tempo depois, e muito a medo que me acontecesse não gostar nada de ler alguém que tinha adorado ouvir pensar, li um dos seus livros, e, Susana, gatinho, totalmente gatinho, a solução foi embrenhar-me na floresta e esquecer qualquer fio condutor de história, história, parece-me, num livro de Agustina, só assim uma forma de não fugir totalmente ao convencional, ao que se espera de um livro, história é só o pretexto para desatar a escrever com uma desenvoltura de domínio da nossa língua que deixa uma pessoa a pensar que tem de voltar para a escola, ainda por cima privilegiando a beleza, prosa/poesia, juro-te que estive sempre em modo "Ai bolas, como é possível escrever-se tão bem e a quantidade de palavras que desconheço", mas nunca, nunca aconselharia um livro de Agustina a quem, naquele momento, quisesse ter o prazer de ler uma boa história, isso de princípio, meio e fim, não existe ali, Agustina também iria em busca desse guardanapo e pronto, e talvez nem te desse o contexto aqui do teu post :-). Para mim, a solução, foi deixar-me levar, deixar-me perder. Agustina não é nada, mas mesmo nada fácil de ler, e, sim, corremos o sério risco de desistir de avançar na floresta antes de lhe sentirmos a ambiência.

    Apetece-me mesmo agradecer-te, Susana, pela oportunidade desta tertúlia mais o exercício que é disciplinar, organizar, o pensamento, (e se estou aqui a pensar milhares de coisas sobre este tema), para caber com o mínimo de lógica numa caixa de comentários.

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    1. Minha querida Cláudia, eu é que te agradeço a tertúlia em forma de maravilhoso comentário!
      Lembro-me, há muitos anos, de ver a Maria João Seixas a conversar com o Saramago e com outros, mas não me lembro de a ver conversar com Agustina.
      Já fui procurar no Youtube e não encontrei nada, mas tentarei encontrar noutras fontes. Gostaria muito de assistir a essas conversas. Vi, há uns anos, uma entrevista com Agustina na televisão (até fiz um post sobre isso) e adorei ouvi-la. Que pessoa serena, profunda, doce e ao mesmo tempo intensa!
      Com Agustina, e com outros escritores, alguns dos quais estão aqui na barra ao lado, neste blogue, eu sinto-me maravilhada, tal como me sinto perante peças musicais de Bach, Rachmaninof, Schubert, e penso sempre que parecem obras impossíveis de tão belas!

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  3. Olá Susana e Cláudia,

    Desculpem estar a meter-me na conversa, mas a série que a Cláudia refere chama-se "Ela por Ela" e são 13 programas de 25 minutos sobre Provérbios e Aforismos, realizados para a rtp pelo Fernando Lopes em 20O5.
    A Midas Filmes editou uma caixa com 2 DVD em 2008 e eu ainda consegui comprá-la em 2010 (directamente à Midas).
    Talvez com esta informação seja mais fácil encontrarem o Ela por Ela na net ou na editora.
    Vale muito a pena, era uma delícia ouVer aquelas duas Ladies a conversar de improviso.
    Susana, estou a gostar muito de andar a passear aqui pelo seu blog.
    Vou ficar cliente :)

    Maria


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    1. Olá Maria, bem-vinda! :-)
      Fez muito bem em se meter na conversa!
      Muito obrigada pela visita e pelo comentário, vou pesquisar a ver se encontro alguma coisa (pesquisei quando a Cláudia aqui escreveu e não encontrei nada no YouTube).
      (Gosto muito da sua florzinha aí) :-)

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