a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/09/2019

We'll always have Paris, right?

Não gostei nada de ver o homem que ia no metro a mais ou menos um de mim (metro). Ele ia em pé encostado à porta que não abria em todas as estações e foi por isso que reparei nele. Era alto e magro. Todo vestido de preto. A tira-colo levava uma mala do tipo de computador, muito coçada, puída. Na cabeça um boné verde-bandeira. Olhava em frente através da outra porta, a que abria em todas as estações (inverno, primavera, verão, neste caso verão). Havia qualquer coisa nele que me estava a deixar inquieta (aquilo das estações é parvo, mas nem sempre me contenho e o que me contenho!). Eu ia sentada a um metro dele, como já disse, num banco basculante, que só se põe a fazer noventa graus com a vertical sob o peso de alguém. Felizmente veio sentar-se um homem normal ao meu lado, talvez um verdadeiro parisiense para variar dos turistas, já que trazia um cão despenteado pela trela e teclou no seu smartphone o caminho todo com ar de quem sabe o que está a fazer e isso. O cão logo se sentou no chão, claro, e ato contínuo deitou a cabeça nas patas da frente cruzadas com um grande suspiro ficando ali a ser fofinho sem querer, olhando para um lado e para o outro, levantando as sobrancelhas de cão. Se a minha filha Saminhas ali estivesse diria "tão fofo!" umas mil e quinhentas vezes.
O homem encostado à porta, de repente, tirou o boné verde-bandeira da cabeça, dobrou-o e meteu-o na mala do tipo computador, de dentro da qual retirou outro boné de padrão camuflado, juntamente com uma revista com a palavra "Guerres" na capa e fotografias de guerra. Pôs o novo boné na cabeça, desencostou-se da porta, enfiou a revista debaixo do braço e, retomando a mirada em frente, fez da mão direita pistola. Apontou-a à porta que ora ia fechada ora abria, e começou a dar tiros imaginários aos cartazes que anunciavam as datas em que a linha quatro está em obras. A cada tiro emitia um "pou!" seco. Alguns passageiros que entraram em Étienne Marcel, levaram com uns tiros destes mas, à exceção de uma mulher mais atenta, não deram por isso. O parvinho do meu coração começou a bater como se eu estivesse em perigo ou não houvesse amanhã. O homem ao meu lado continuava a conversar com o telemóvel nas mãos. O cão também nada, seguia sendo fofinho no chão mais as suas sobrancelhas sem querer enquanto eu a cada tiro, "pou!", mais nervosa. Tirando uma senhora que mudou de lugar para talvez se afastar do homem dos tiros, estava tudo nem aí.
De repente, numa feliz estação seguinte (alguém se sentirá feliz no metro de Paris?), o homem deu um passo cambaleante, depois um ou dois para o lado e com uns ajustes na espécie de caminhar lá se conseguiu alinhar com a porta aberta e saiu.
(E nesse momento, confesso, sim, alguém se sentiu feliz no metro de Paris.)

4 comentários:

  1. Julio Cortázar, um escritor argentino que viveu muitos anos em Paris, escreveu uma vez isto, sobre o metro da capital francesa: «Pero —agrega astutamente— sólo en el métro me puedo dar cuenta porque viajar en el métro es como estar metido en un reloj. Las estaciones son los minutos, comprendes, es ese tiempo de ustedes, de ahora; pero yo sé que hay otro, y he estado pensando, pensando…»
    Na viagem que descreve, sente-se o metro/relógio a estender cada minuto como se o tempo fosse expansionista -- como o universo.
    Votos de boa viagens, cara Susana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Querido xilre, muito obrigada pelo comentário.
      Muito curioso (e certo!) o trecho de Cortázar: esta viagem que faço no metro de Paris dura 16 minutos e tem - creio - 13 estações, o que dá, realemnte, quase um minuto por estação.
      O que é ainda mais curioso é que a viagem me parece durar uma hora, de tão desagradável, mas tão desagradável que é. Ou então será por eu praticamente não tirar os olhos do mapa da linha que está por cima das portas e através do qual vou confirmando todas as paragens, a ver se o metro acelera por causa disso...

      Eliminar
  2. Mas que Paris teremos? A do medo? Há coisas que perderam para sempre a inocência, cidades inteiras.
    ~CC~

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nem mais, CC. Paris dá medo, por vezes. E pena. Ou então sou eu que não sei ver magia onde ela se calhar está.
      :-)

      Eliminar