a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

23/11/2019

Berlim-Lagos-Berlim

Já ontem à noite, antes de dormir, notei que ela tinha o computador aberto à sua frente. Senti que não era uma série que estava a entretê-la, que era outra a sua ocupação. Da minha cama na posição de baixo do beliche, podia vê-la com o computador, na sua cama, no outro beliche do compartimento do comboio, na posição de cima. Mas adormeci. A noite foi correndo sobre os carris ibéricos, a um ou outro chocalhar mais decidido acordo, mas realmente não passa nada. 
De manhã, já dentro da manhã, ainda Espanha não está toda feita, vou ao bar do comboio munida do meu livro beber um café com leite de vaca. A bebida está suficientemente quente para me dar tempo de terminar de ler um dos melhores livros que já vi. Capitães da Areia, do Jorge Amado. Estrondoso, belo. Não hei de largar de insistir com as minhas filhas enquanto não o lerem também. Termino a leitura e fico nostálgica ali a beber o resto do café com leite de vaca vendo-me refletida no vidro da carruagem-bar. Estou, claro, mais rica. Muito, mesmo.
Pago o euro e meio que me é pedido e volto para o meu compartimento-cama de quatro ocupantes, duas carruagens a sul. E é aqui, cheia do final dos Capitães da Areia, que entabulo conversa com ela, a única passageira restante deste compartimento. As outras duas saíram mais cedo, deixaram Espanha a meio. Disse-lhe que fui tomar café ao bar, para começar. Ela é magrinha, tem o cabelo loiro e apanhado, e deve ter uns vinte e três anos de idade. Veio a pergunta que vem sempre: porquê fazer a viagem de comboio (quando o avião custa pouco mais do que o café com leite de vaca?). Passado este tema obrigatório, perguntei-lhe onde esteve em Portugal. No Sul, diz ela, em Lagos. Fui com uma amiga que ia fazer surf e como tenho a tese para acabar, fiquei a trabalhar, enquanto ela ia para o surf. Tese de quê, eu quis saber. Medicina. É só o que me falta para acabar o curso, acabar a tese. Ena, dei-lhe os parabéns, desejei-lhe felicidades na sua vida profissional que está agora a começar. Uma nova médica de Berlim, ela vive em Berlim, que foi escrever parte da sua tese em Lagos. E agora, aqui bem perto de mim enquanto escrevo este post, a tese continua a ser escrita, na cama do beliche ao lado. Faltam vinte minutos para a viagem terminar.

12 comentários:

  1. Ah, os meninos de Jorge Amado! Também me enche(ra)m o coração!

    Beijocas, Susana :)

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    1. Bolas, e não é para menos, Maria...

      Beijinhos também, bom fim-de-semana! :-)

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  2. Os Capitães da Areia remetem-me sempre para os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, enfim, dois livros belíssimos.

    (As viagens de comboio são muito mais doces)

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    1. Os Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, está anotado! (muito obrigada)

      (são muito mais doces, e até em certa medida mágicas, plenas de aventuras)

      Querido Pipoco, tenha um ótimo fim-de-semana.

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  3. Foi o meu primero livro (de muitos que li depois) do Jorge Amado. Era um autor muito popular na minha juventude.

    Beijinho, Susana.
    🦋

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    1. Eu tenho também "Dona Flor e Seus Dois Maridos", uma edição velhinha que era da minha avó e que ainda náo li.

      Acho que a popularidade de Jorge Amado não acaba nunca. E pensar que ele escreveu os Capitães com 25 anos...

      Beijinho, Maria

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    2. Também li esse, logo a seguir a ver o filme (com a Sónia Gabriela Braga e o José Mundinho Wilker).
      E agora descobri aqui na estante um livrinho muito giro, que ele escreveu para o filho João Jorge quando este completou um ano.
      E o título do livro é: O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá (uma história de amor).
      Mais um escritor que gosta(va) de gatos, como, por exemplo, o Eugénio, o Manuel António Pina, o Borges, o Cortázar, o Luis Sepúlveda, o Leonard Cohen, a Hélia Correia, a Doris Lessing, etc. , etc.

      Beijinho, Susana.
      🍃🍁

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    3. O gato malhado e a andorinha sinhá leram as minhas filhas, ou pelo menos uma delas, para a escola. Lembro-me de a mais velha ter adorado o livro. E sim, de facto, os gatos...
      Acho que uma outra perspetiva de vida se nos abre, quando vem um gato e entra na família. 😊
      E, by the way, adoro Hélia Correia, descobri-a há pouco tempo e que descoberta Boa!
      Outro beijinho, Maria.
      🐾

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  4. Também já li. Há muitos anos. Se calhar está na altura de reler.
    Bom fim de semana

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    1. Eu estou espantada por só agora ter conhecido este livro maravilhoso!
      Boa releitura, ana! 😊

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  5. Comoveram-me tanto esses meninos entregues a si próprios, ao comando da própria vida.

    (Mais uma vez, assim de raspão, pareceu-me que estava aqui novamente uma certa gata, mais uma vez, mal vi, não fiquei embevecida nem nada...) :-)

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    1. É comovente, pois é.

      (ai esta gata.... mete-se em todo o lado, é o que é)

      :-)

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