a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

04/04/2020

Um post por dia até ao fim do Corona - 20

- Ah! Desculpe, não era para si!

Eu tinha atendido o telefone com o entusiasmo correspondente.

- Dona Esmeralda, há quanto tempo!
- Não era para si, desculpe... andava a tentar apagar o número de uma pessoa que morreu e liguei para si.
- E como eu ainda não morri, atendi. Como está?
- Olhe, sei lá. Estou! Tal como todos, nesta prisão!
- Então já não vai trabalhar?
- Ai vou, isso vou! Levo um cachecol enrolado a tapar a boca e o nariz e apanho o autocarro. Mas lá no refeitório andamos todas de máscara e luvas, tem de ser. As outras pessoas não, quando vão comer não levam máscara e sentam-se dois em cada mesa, naquelas mesas compridas, há turnos, está a ver?
- Deve ser cansativo andar de máscara todo o dia.
- Então não é?... Eu até parece que ando com a garganta esquisita. As gargantas não estão habituadas às máscaras, filha.
- Pois, acredito... Então mas ao menos vê gente, não está o tempo todo sozinha.
- Ó filha, mas eu queria ficar em casa, acho que era melhor, não acha? Sempre a lavar as mãos, de tanto em tanto tempo lavamos as mãos... eu até já tenho as minhas alcoolizadas.
Se já me estava a ser um bocado difícil gerir as gargantas não estarem habituadas às máscaras, agora é que escapou mesmo a gargalhada.
- Desculpe, Dona Esmeralda. É que ter as mãos alcoolizadas não é para todos.
Ela também se riu. 
- Ai a gente ri-se, mas isto é muito triste. Quando vou às compras, as pessoas é um passo para trás um passo para a frente, toda a gente a afastar-se, a ir de volta, é muito triste, filha.
- Olhe, mas isso do cachecol. Faz muito bem, tem é de o mudar...
- E mudo! Ainda hoje lavei dois. E como tenho cinco, é um para cada dia da semana, está tudo controlado! E olhe, combino o cachecol com a roupa, escolho o que dá melhor, e lá vou eu!
Agora rimos ao mesmo tempo. 
- Mas sabe, há uma coisa que me revolta.
- O quê, Dona Esmeralda?
- É os hospitais não terem tudo o que precisam e haver tanto dinheiro metido em estádios de futebol. A quantidade de estádios que se fizeram p'raí e ficaram às moscas, já viu? Depois vem uma coisa destas e os hospitais não têm o que precisam! Então não era de o dinheiro ter ido logo para os hospitais?

Como diria a Carla, com quem eu partilhava intervalos à beira da máquina do café com a D. Esmeralda por perto a nutrir a conversa: Já foste!

9 comentários:

  1. Deixa-me ver se agora já consigo dizer coisas aqui...
    Agora queria dizer: Olha a Dona Esmeralda! Que saudades da Dona Esmeralda!
    Se der, desato a dizer coisas que queria ter dito também noutros posts
    Ora, então, deixa cá experimentar...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olha! Já deu! Já deu! Olá, Susana!
      (Agora vou só ali, a outro post, dizer olá à tua irmã. Olha que situação tão boa de colaboração arranjaste) :-)

      Eliminar
    2. Olá Cláudia! Ainda bem que o Blogger já se pôs fino e podes comentar.
      Também eu tenho saudades da Dona Esmeralda.
      Boa semana para ti. :-)

      Eliminar
  2. O assunto é sério e a dona Esmeralda está cheia de razão, mas as mãos alcoolizadas fizeram-me soltar uma gargalhada cheia de culpa de me rir no meio de um assunto tão sério.
    Há quem solte os avós, eu soltei uma gargalhada. Pronto!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Com esta senhora difícil é não rir. Com todo o respeito, claro.
      Bom dia, irmã :-)

      Eliminar
  3. Que maravilha de diálogo. Ainda que telefonicamente. As mão alcoolizadas? Hahhahah a moda vai pegar! :)
    -
    Silêncios que me tocam a alma.
    -
    Beijo e um excelente Domingo

    ResponderEliminar