a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

01/12/2021

Os cães

Estão as nove horas a chegar quando me instalo do lado de fora da porta do hotel. A mala do computador tem rodas e fica melhor no chão ao meu lado. A manhã está completamente ventosa agitando os vinte e oito graus e o mar, que vi da janela do quarto, é picado pelo vento. O magro cão de quatro patas já meu conhecido aproxima-se e eu falo qualquer coisa ali, como se fosse bom dia cão. Ele cheira a mala do computador pelo lado mais batido a vento e pelo outro. Depois deita-se aos meus pés. As palmeiras empoeiradas do parque de estacionamento revoltam-se para a frente e para trás, precisamente como os meus cabelos que detestam atilhos e chapéus. Pelo meio, vejo aproximar-se o também já conhecido e magro cão de três patas. Dá - me vontade de chorar ver o animal assim, com falta de uma pata, deve ter sido um carro que fez aquilo. Também este cheirou a mala com rodas de ambos os lados. É verdade que tenho um pãozinho com doce de papaia lá dentro. Um pãozinho que adiei do pequeno-almoço. O cão de quatro patas levanta-se e vem cheirar melhor toda a minha mala. Não quero apanhar pulgas e portanto não toco nos cães. O das quatro patas, com o focinho, empurra-me a perna. O das três patas encosta-se. Afasto-me e sacudo as calças com a mão sem pulgas, quietos cães. Não lhes dou o pãozinho. Pego na mala e dirijo-me sim ao carro que me vem buscar para o trabalho, ele acaba de chegar.
Muitas horas depois, a noite já tendo acalmado o vento do dia, os vinte e oito graus descido a vinte e quatro, torno a cruzar a porta, entro no hotel. A mala com rodas também, assim como o pãozinho lá dentro.

2 comentários:

  1. Assim como se fosse uma pedra no sapato, todas as vezes que também tive de "sacudir", ficaram-me na memória. Pode passar o tempo que passar, não esqueço. E, é lixado. Passado muito tempo ainda uma pessoa se lembra, com agitação aflita, do "pãozinho" e "das festas" que não deu.
    É que, às vezes, acontece termos mesmo de sacudir. Outras, olhamos para o lado, e é pelo contrário de indiferença, é mesmo pelo motivo contrário, é pela dor que dá a tomada de consciência da nossa impotência. Por só podermos tentar mudar alguma coisa para melhor aos bocadinhos, apenas uma migalha de mudança, se tivermos sorte. E é também por isso que, às vezes, damos por nós a regressar com uma mala com rodas que mantém "o pãozinho" lá dentro, não é?
    Sei que me entenderás se te disser que, com as devidas adaptações, claro, pensei também em pessoas enquanto te escrevia...

    Uma boa semana, querida Susana

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    1. Os teus comentários, querida Cláudia, revelam a leitura cirurgicamente correta que fazes (sempre!) do estado do meu coração quando escrevi o post.
      É mesmo isso.

      E agora um olhar mais de longe, sobre os cães vadios que pululam na cidade da Praia, onde se passou a cena. O facto de haver tantos tantos cães vadios, escanzelados, com patas a menos, coxos, doentes pelas ruas recordou-me aqueles que havia em Lisboa na minha infância. Eu nem me tinha apercebido da diferença que se operou entretanto.
      Um resto de semana feliz, Cláudia ☺️

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