a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/10/2016

Um post não é

De manhã, estendi duas máquinas de roupa ao sol. Estender roupa faz-me sentir renovada. Eu não tenho secador de roupa porque a quero estender. E apalpar a ver que já secou e apanhá-la, cheirá-la, dobrá-la, fazer a pilha do ferro. Enquanto isso vou deitando os olhos à rua, penso que a disposição dos carros das pessoas e dos cães (e do papagaio) e também dos pombos, se ficassem quietos, é única e talvez nunca se repita ou esteja a repetir, e depois vou a escorregar para o infinito do tempo mas então vejo o rio e eu tenho quase a certeza que amo o rio. Ou seja, roço os cotovelos pela poesia da cidade enquanto trato da roupa. Sabemos que a poesia da cidade é acinzentada e esburacada do sujo dos pombos, mas para quem tiver olho e vagar à janela, acho que dá. Eu não sou muito de poesias porque tenho a cabeça dura. De vez em quando leio quatro vezes o mesmo poema e fico na mesma. Só muito poucochinhos poemas é que entram na minha cabeça dura não sei porquê (e aí é m u i t o bom, esses poemas que me cabem estão vivos e têm uma espécie de alma - mas também é esquisito). Os outros é como se estivesse a ler chinês. Paciência. Há outras situações. Há por exemplo o meu aspirador. Se bem que hoje optei por varrer a cozinha porque não tive vontade nenhuma de barulho. O meu aspirador, atenção, é silence, diz na caixa; comprei-o assim de propósito, quero o mais silencioso que houver, e havia este. E diz também no lombo dele, silence. Mas a vassoura, ainda assim, é mais. E não diz silence nela, devia dizer. A pilha do ferro que já estava de outra roupa, não a de hoje, tratei dela quase toda. O ferro não diz nada. Também podia dizer silence. Mas para não imitar o aspirador se não quisesse, trazia uma poesia na lateral. E a gente ao menos tentava enquanto o fazia deslizar pelos lençóis e calças e camisas. Acho que não custava nada.


O dia teve vinte e cinco horas mas não sobrou nenhuma para escrever um post. 

28/10/2016

Ouvi na televisão uma receita de lombo de porco assado (e resolvi imitar em parte)

Pensei em mingau, vou fazer mingau. Enquanto mingau me soa metálico, pego no nosso tacho e pouso-o no nosso fogão. Mingau acho lindo, podia ser nome de monumento, Ponte Mingau. Torre Mingau. Enquanto isso, deito o nosso leite no tacho e os flocos da nossa aveia deixo cair com suavidade no nosso leite. Aí, os flocos sumindo, vem o danado do porridge querendo reclamar do meu mingau em pensamento. E eu vou e espremo o sumo da nossa metade de um limão para dentro do nosso tacho, como dizia a receita; eu desconfio do limão fervido, cozido ou assado. Assado já me dei mal, mas este é fervido: junto o limão. Eu digo, eu sou o porridge. Ligo o botão no nosso nove do nosso fogão (só tem até ao nove), e dou início à espera (este é o meu problema na cozinha, a espera). Mas o porridge vem que não tem: Eu digo, darling, eu sou o muito porridge - the very porridge says. Aí, o calor começa a subir da nossa placa, e o leite com os nossos flocos e o sumo de limão borbulha levemente. Mexo com a nossa colher de pau e o nosso calor penetra no leite e do nosso leite passa para os flocos da nossa aveia (o sumo do nosso limão parece que sumiu - mas não), os flocos incham, o nosso borbulhar engrossa. Baixamos agora do nove para o nosso quatro e contamos cinco minutos. Enquanto isso, vamos mexendo o nosso porridge. Porridge? Eu sou o mingau, não lembra? Lindo! Metálico! Nome de monumento! Mingau!

Volvidos os cinco minutos (a espera terminada), desligamos o nosso fogão e a nossa papa de aveia está pronta. Podemos servi-la numa taça, juntar-lhe a nossa banana partida aos bocados e uma colher do nosso mel. Nossa! Que delícia!


(o problema da espera na cozinha até pode ser meu, mas de resto é tudo nosso)

24/10/2016

Pêssegos espanhóis, bolas de ténis

Eram três batatas doces magrinhas. Compridas, tortas e magrinhas. Descasquei-as, mas não to-tal-men-te. Deixei casca nas pregas mais difíceis do torto; não tem problema, ficam gourmet. Isto do gourmet, devido a ser moda, dá para justificar imensas coisas, por exemplo o medo de tirar um lanho da mão com o descascador, que aquilo é um ótimo descascador, até me está a apetecer pôr aqui uma fotografia do descascador, mas o gourmet, tipo, era aqui que íamos, dá, não dá?

(as minhas filhas dizem tanto tipo isto e tipo aquilo, que já passou para mim o tipo, era por favor desculpar)

Voltamos às batatas doces. Com elas e com uma maçã portuguesa, sim!, havia uma! - é que me ir-ri-ta comprar fruta espanhola, estou farta de fruta espanhola, os pêssegos espanhóis devem ser bons para bolas de ténis que aquilo é impossível de engolir e…. hã? ah! sim: com as batatas doces magrinhas e com a maçã portuguesa! olá pessoal!, fiz o caril de frango. O ca-ril de fran-go. Só que sem o frango. Tipo que ficou no congelador (e continua lá, com aquele frio). Ou seja, isto foi para explicar completamente o gourmet, que é: Caril de Frango sem Frango com Batatas Doces Magrinhas e Maçã Portuguesa Difícil de Encontrar. Se o título for muito grande corta-se aos bocados, põe-se a cozer e...ok, ok, está bem. 

Eu tipo gosto muito de inventar na cozinha, para afastar qualquer monotoniazinha que queira vir meter-se ali, invento, invento e depois é bom. Normalmente é bom.


E estamos quase a acabar, mas ainda me falta uma parte que não é ver programas de culinária na televisão nem nada, é: com-pre-en-der por que raio não há fruta nacional qua-se ne-nhu-ma no supermercado. Tipo alguém sabe?

23/10/2016

Isto dos blogues é nada?

Toda a gente sabe que isto dos blogues é nada. Quer dizer, alguma coisa isto é, mas vá, é pouco. É apenas um poucochinho para preencher os bocejos da vida, as incompletudes da corrente real à qual estamos amarrados desde a nascença, toda a gente sabe isso. Levar os blogues a sério, por exemplo, nunca. Fica mal, esquisito, não sabemos onde meter as mãos mesmo antes de iniciarmos a apresentação para a audiência que nos olha expectante, e agora digo o quê?

Digo que eu gosto dos blogues. É verdade, é. E até gosto muito dos blogues.

Por isso é que fiquei tão contente ao ver este de novo. E lê-lo, de novo. É que, na realidade, alguns fazem mesmo parte da nossa vida. Da minha, pronto.

A anona

Encontro-me perto das quinze horas com a minha anona. Eu sei que a anona é minha, todos sabemos, que nesta casa mais ninguém quer anonas. Encontro-me perto das quinze horas com a minha anona. Dentro do cesto, junto dos abacates e das laranjas, estas e aqueles firmes e de boas cores, uns verdes as outras fazendo jus ao nome, a minha anona agoniza. Em silêncio, deixa-se ir nas mãos da mãe natureza, essas que sendo invisíveis veiculam a entropia global, lentamente, mal se notando a entropia global. A minha anona vestiu já o castanho, toda ela de igual, é o seu finado. Por exemplo, o padrão que trazia na pele é perdido. Então, à minha anona acolho-a nas mãos, nas minhas inúteis mãos, descapazes de a salvar. Comi-a, pois foi. Uma metade de cada vez, à colher. Os caroços, tão bem dispostos pelo néctar esbranquiçado, ai brilhantes, ai tantos, ai pretos, deixei-os no prato que assistiu a tudo. Não me é costume falar de anonas. Todavia esta, degustada assim no limiar do possível, a caminho de um estado de desperdício, um precipício, um sacrifício, no seu último suspiro traz-me aqui. Onde me encontro perto das quinze horas, vertendo neste escrever o mais pequeno post de todos. Até que enfim.

(descapazes não existia)