a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/02/2014

Fazer tijolo

O licor Beirão que tenho no armário da cozinha deve ter mais de vinte anos.

Herança da despensa dos meus avós e premiado em 1929, esta segunda afirmação é o rótulo que diz não sou eu, adquiriu uma cor de tijolo suspeita.

Decido tomar um copo enquanto me sento a este volante com teclas e deixo correr o que o meu cérebro esmagado pela ambiguidade das coisas, nunca satisfeito e acelerado pelo álcool encarniçado do Beirão (a foto mostra) vai debitando.


A pergunta que se põe é por que raio quis eu um blogue quando tenho um Beirão a envelhecer para lá dos tempos ao lado da água ardente, dos vinhos da Madeira (os do Porto já meteram golo) e dos wiskies, esta última bebida tremenda para sarar feridas da pele, quiçá da alma, que nunca me deitei a essas contas.

(o licor tem o sabor do tempo, dos boiões onde envelheceu, do meu armário da cozinha, está difícil de passar do meio campo)

Por que raio quis eu um blogue quando sou pessoa de acordar com uma qualquer estação de rádio que irrompe sempre mal sintonizada, me coça os neurónios em estado de sonolência atómica até me trazer em braços para a alvorada. 

E erguer-me então lentamente para o dia com o Pinto da Costa e o treinador do Porto, há ali qualquer coisa, não me interessa mesmo nada senhores, com todo o respeito, o Porto é lindo e o vinho já sabemos, e com isto foi hoje que acordei.

Ontem foi com a música que a minha filha diz ser a nossa música e então salto, endireito-me e irrompo eu, bem sintonizada, ainda que desgrenhada, pelo quarto da minha filha adentro, pespego um beijo capaz de fazer estremecer as balizas do relvado, seja ele qual fôr, meto golo na certa, na testa morna, doce, cheirosa e lhe digo, está a tocar a nossa música na rádio, amor.

Depois fico a ver os olhos que me mostram sempre o mundo inteiro abrirem-se, emergirem do fundo dos seus sonhos de menina, sorri-me, olá mãe.

(a cor de tijolo do Beirão não passa, não vai nem a penálti)

Talvez amanhã venha o Frank Sinatra cantar-me o My Way ao acordar, descoser-me os neurónios da almofada, arrancar-me à modorra que herdei do Beirão transposto do armário onde envelheceu para dentro deste projecto de me envelhecer a mim.

Envelhecer-me está bem, mas não, ainda é cedo, sim?, pôr-me a fazer tijolo.

É que ainda vou descobrir por que raio quis eu um blogue.

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